Opinião

O artigo 149, o Supremo Tribunal Federal e o 'gato de Schrödinger'

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1 de outubro de 2020, 9h10

Em 1935, no intuito de demonstrar as dissonâncias entre a mecânica quântica e a física newtoniana, o físico Erwin Schrödinger propôs um experimento mental, posteriormente consagrado como "o gato de Schrödinger". Ele consiste em imaginarmos um gato preso em uma caixa, isolado do mundo exterior. No interior da caixa, também existe um contador geiger (que serve para medir radiação) contendo uma pequena amostra de material radioativo, além de um martelo e um frasco de veneno. Caso a substância radioativa decaia, o martelo será acionado, de modo a quebrar o frasco de veneno. O gato estará morto. Se a substância radioativa não decair, o martelo não será acionado e o frasco de veneno não quebrará. Nesse caso, o gato estará vivo.

Entenda-se que, segundo a lógica quântica, uma partícula subatômica existe parcialmente em todos os estados teoricamente possíveis, ao mesmo tempo, antes de ser medida ou observada. A esse fenômeno dá-se o nome de "superposição".

Desse modo, enquanto a caixa não for aberta e a substância radioativa não for medida ou observada, a vida do gato estará em "superposição", ou seja, o gato não estará vivo ou morto, mas vivo e morto. Por sua vez, quando a caixa for aberta e a partícula observada, as realidades paralelas possíveis colapsar-se-ão, tornando-se uma só. O gato, então, estará vivo ou morto, mas jamais ambos.

Logo se vê que, por lidar com partículas subatômicas, a mecânica quântica não segue a lógica clássica e, por conseguinte, não possui aplicação ao mundo observável. Tem-se, então, um evidente paradoxo, justamente o que eternizou até mesmo na cultura pop o exercício mental proposto por Schrödinger.

No último dia 23, o Supremo Tribunal Federal deu continuidade ao julgamento do Tema nº 325 de repercussão geral, que tratava da constitucionalidade (ou não) da contribuição destinada a Sebrae/Apex-Brasil /ABDI após a edição da Emenda Constitucional nº 33/01, que, entre outras coisas, acrescentou o §2º, III, "a", ao artigo 149 da Constituição Federal. A tese firmada foi a de que a referida contribuição foi recepcionada pela Emenda Constitucional nº 33/01 e que o rol constante do aludido dispositivo é exemplificativo. A divergência, mais uma vez, foi aberta pelo ministro Alexandre de Moraes.

Nada obstante o recente entendimento firmado pelo Pretório Excelso, a matéria, em termos jurídicos, não apresenta grande complexidade. O referido dispositivo é claro ao estabelecer que, caso as contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico tenham alíquotas ad valorem, terão por base o faturamento, a receita bruta ou o valor da operação e, no caso de importação, o valor aduaneiro. Nesse sentido, a inconstitucionalidade da contribuição a Sebrae/Apex-Brasil/ABDI, cuja natureza de CIDE é incontroversa, decorre do fato de a "folha de salários", base de cálculo prevista em lei para o tributo em questão, não constar do dispositivo constitucional analisado.

A Emenda Constitucional nº 33/01, ao individualizar as bases de cálculo possíveis para a incidência das contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico, criou um impedimento, uma verdadeira negativa de competência, à tributação de grandezas não previstas naquele dispositivo. E nem poderia ser diferente, pois a fixação de um rol meramente exemplificativo seria o mesmo que não arrolar nenhuma grandeza econômica (opção do constituinte originário), o que não traria qualquer inovação no texto magno.

Não é só. Lembre-se que, em 2013, o Supremo Tribunal Federal fixou entendimento, também em sede de repercussão geral, justamente no sentido de que o rol de bases econômicas previstas no artigo 149, §2º, III, "a", da Constituição Federal, é taxativo. Trata-se do Recurso Extraordinário nº 559.937/RS, em que se declarou parcialmente a constitucionalidade do artigo 7º, I, da Lei nº 10.865/05, por estabelecer base de cálculo que extrapolava o "valor aduaneiro" e não constava do artigo 149, §2º, III, "a".  

Nem se diga, como se tentou fazer crer, que o Supremo Tribunal Federal não se debruçou sobre esta questão naquela oportunidade. Leitura atenta ao voto da então ministra Ellen Gracie revela a existência de manifestação inequívoca no sentido de que o rol previsto no artigo 149, §2º, III, "a", da Constituição Federal taxativo. E o recurso, convém destacar, teve o seu resultado proferido "nos termos do voto da ministra Ellen Gracie (relatora)" [1], o que afasta qualquer controvérsia a esse respeito.

Mas, como se dizia, em 23 de setembro do ano corrente, de forma surpreendente, a Suprema Corte, sem reformar o precedente anterior, fixou novo entendimento, dessa vez na direção de que o rol constante do artigo 149, §2º, III, "a", da Constituição Federal, na verdade, é exemplificativo, sendo taxativo apenas para aqueles da indústria do petróleo e seus derivados, o que, data vênia, não faz o menor sentido.

A interpretação conduzida pelo ministro Alexandre de Moraes esbarra na redação do §2º (também introduzido pela Emenda Constitucional nº 33/01), o qual se refere expressamente às contribuições de sociais e de intervenção no domínio econômico de que trata o caput do artigo 149. E ninguém, imagina-se, ousaria dizer que o caput do artigo 149 abarca somente as contribuições da indústria do petróleo e seus derivados. Tanto que nem mesmo os recorridos cogitaram tal argumento em suas respectivas contrarrazões.

Sempre com muito respeito, mas as coisas precisam ser chamadas pelos seus respectivos nomes. O que se viu, em termos jurídicos, foi um verdadeiro absurdo. Prevaleceu o consequencialismo. Não o consequencialismo velado, com roupagem jurídica, mas o mais sombrio, aquele elevado ao extremo, reproduzido em alto e bom som. Afirmou-se categoricamente ser "mister que se faça uma interpretação consequencialista" (ministro Luiz Fux). Quantas décadas regredimos?

Lembre-se que o ordenamento jurídico determina que as consequências (todas elas, não só as danosas ao Fisco) sejam consideradas, mas não autoriza que elas erijam a razão jurídica. Quer-se dizer, com isso, que não se pode primeiro concluir e posteriormente buscar fundamentos para sustentar a conclusão, sob pena de inverter a ordem natural do método interpretativo e chancelar a perigosa ideia de que "os fins justificam os meios".

Ao contrário do que referiu o ministro Barroso, o voto da ministra relatora Rosa Weber não refletia uma das posições jurídicas razoáveis, mas a única: aquela conforme a Constituição. Quando a Lei das Leis determina que determinada espécie tributária deve incidir sobre as bases de cálculo A, B ou C, não é possível, a menos que haja outro dispositivo autorizando (vide artigo 195, I, "a", em relação às contribuições previdenciárias, e artigo 240) que se leia D. Nesse sentido, é sintomático que tenha justificado o seu voto "como uma razão metajurídica".

Mencione-se, ainda, o argumento proferido pelo ministro Gilmar Mendes, no sentido de que se fosse declarada a inconstitucionalidade, todas as reformas, inclusive a previdenciária, explodiriam. Não é verdade. A Constituição Federal autoriza a utilização da folha de salários como base de cálculo das contribuições previdenciárias em seu artigo 195, I, "a", o que não ocorre com as contribuições sociais e intervenção no domínio econômico com fundamento constitucional de validade exclusivo no artigo 149.

O dia 23 de setembro de 2020 entrou para a história como o dia em que um dispositivo constitucional foi considerado taxativo e exemplificativo ao mesmo tempo. Como o "gato de Schrödinger", o artigo 149, §2º, III, "a", da Constituição Federal, entrou em "superposição".
O contribuinte, definitivamente, tornou-se o bobo da corte.

 


[1] Excerto do Extrato de Ata do RE nº 559.937/RS.

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