Opinião

Considerações sobre a fatídica extinção do voto de qualidade no Carf

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1 de outubro de 2020, 11h34

Como se sabe, a conversão da MP nº 899/2019 na Lei 13.988/2020 trouxe, como inovação, o assim chamado fim do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Com a mudança, em caso de empate nos julgamentos de autuações fiscais neste conselho, a Fazenda deixou de deter o voto de qualidade, resolvendo-se a questão invariavelmente em favor dos contribuintes.

Fruto de uma alteração de última hora no texto em votação na Câmara protagonizada por líderes, a saber, os deputados Arthur Lira e Vitor Hugo — o que só as notas taquigráficas foram capazes de registrar [1] —, o dispositivo é objeto de ações diretas de inconstitucionalidade promovidas pela Procuradoria-Geral da República, pela Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal (ANFIP) e pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Com pedido de cautelar negado pelo ministro Marco Aurélio, a questão aguarda julgamento pelo Supremo Tribunal Federal.

Na prática, pouco efeito produziu até agora a referida mudança no Carf, graças ao início da pandemia e à suspensão do julgamento de processos administrativos de valores acima de R$ 1 milhão, limite depois aumentado para R$ 8 milhões. O julgamento destes processos tendem a apresentar menor incidência de empates homogêneos, além de envolverem valores menores.

Contudo, estima-se que, quando o Carf retornar às suas atividades normais, a "emenda Arthur Lira"  parlamentar a quem concedo a honra da autoria começará a produzir seus plenos efeitos exonerando de forma definitiva alguns bilhões de reais devidos principalmente por grandes contribuintes, em autuações como as de glosas de ágio.

Mas engana-se quem acredita que o tamanho da renúncia fiscal no curto prazo é apenas o pior dos efeitos dessa medida.

A mudança na prática transfere a palavra final nas questões mais polêmicas, sobretudo envolvendo altos valores, para os conselheiros representantes dos contribuintes — agentes honoríficos indicados pelas confederações econômicas e que exercem suas funções de julgadores de forma precária.

Isto se afirma porque, quando se diz que um julgamento se deu por voto de qualidade no Carf, já se presume, apesar de algumas exceções, o empate homogêneo, isto é, que todos os conselheiros dos contribuintes votaram pela exoneração da cobrança, enquanto os representantes da Fazenda, pela manutenção [2].

Nesse cenário, diante da precariedade com que os conselheiros representantes dos contribuintes exercem os mandatos — de apenas dois anos com limite de recondução, mal remunerados, impedidos de advogar e sem as mínimas garantias possuídas por agentes públicos concursados —, o Carf pode transformar-se, no médio ou longo prazo com o fim do voto de qualidade em favor da Fazenda, em algo bem pior do que já o foi à época da deflagração da dita operação zelotes.

E nem de longe, com essa afirmação, estou a colocar em questão a idoneidade dos atuais conselheiros dos contribuintes, meus colegas, naquele conselho. Pelo contrário, estou a questionar a independência é dos futuros conselheiros dos contribuintes, cujo processo de indicação não tardará e se dará numa conjuntura totalmente nova.

Se os atuais conselheiros representantes dos contribuintes foram indicados num contexto em que seus níveis técnicos em tese podiam fazer diferença nos debates das questões jurídicas mais controvertidas, os seus sucessores não precisarão de mais nada disso, e a consequência desta mudança já se pode prever.

E não se trata aqui de questionar a lisura em si dos procedimentos de indicação dos conselheiros dos contribuintes promovidos pelas confederações. Deve-se ressaltar, o comitê de seleção do Carf busca, inclusive, filtrar possíveis indicações não técnicas. Mas é questão de se querer analisar o problema aqui exposto de um ponto de vista como o da teoria dos jogos, a qual, por meio da matemática aplicada, busca prever como os agentes no futuro possivelmente se comportarão diante de uma nova lógica de riscos e recompensas. A depender do nível de sofisticação que a coisa pode tomar, há sérios riscos de nem o comitê de seleção ser eficiente no seu papel.

A se confirmar o pior dos cenários, os próximos governos sofrerão com sérios problemas relacionados à ineficiência na arrecadação de tributos federais, a qual já se agrava com os reiterados equívocos nesta área nas últimas duas ou três décadas.

Entre todos estes equívocos, podem-se exemplificar o sucateamento do fisco federal e os sucessivos programas de anistias, isenções e remissões de tributos — eufemisticamente chamados de "parcelamentos" — para aumentar a arrecadação no curto prazo em prejuízo do cumprimento espontâneo das obrigações tributárias pelos contribuintes no médio e longo prazos. Essas medidas, que representam uma verdadeira antecipação de receitas públicas de constitucionalidade duvidosa, provocam mais adiante a necessidade de aumento de impostos ou da instituição de novas formas de tributação, pois as antigas já estão comprometidas por toda a sorte de renúncias fiscais.

Além dos estímulos financeiros, os governos também são movidos em suas políticas fiscais pelos ganhos políticos, pois o retorno de curto prazo neste espectro é certo quando se atendem determinados pedidos em troca de favores cuja conta será arcada apenas pelos sucessores. E evita-se, por outro lado também, o desgaste de ter de cobrar de quem realmente deve.

Somados a todos estes erros, certamente a mudança introduzida pela "emenda Arthur Lira" em muito contribuirá para um futuro não muito distante em que reinará no Brasil a certeza de que só os estúpidos — e os assalariados — pagarão corretamente tributos federais.

A sorte da Fazenda Nacional ficará, portanto, na mão das confederações das empresas, e dependerá de estas não virem a exercer no futuro o perigoso poder que passaram a deter de, pela primeira vez em cerca de noventa anos, decidirem indiretamente quais os autos de infração fiscal poderão ser pagos.

A questão, agora, encontra-se entregue ao Supremo Tribunal Federal. Se confirmada a constitucionalidade da "emenda Arthur Lira", uma nova reflexão caberá ser feita acerca de se realmente faz ainda algum sentido a existência de agentes públicos concursados e estáveis na Administração Pública — sobretudo no Fisco, onde toda uma cadeia de atos é praticada por servidores nessa condição, mas a palavra final nas questões mais controvertidas será dada por julgadores administrativos sem qualquer estabilidade e indicados pelas próprias empresas.

A insensatez da medida, do ponto de vista da gestão de riscos, é gritante. Abriu-se na verdade uma espécie de porta dos fundos no sistema tributário federal pela qual poderá passar toda a espécie de interesse e tornará, ao fim e ao cabo, letra morta os mais básicos princípios constitucionais que devem reger a Administração Pública.

Uma possibilidade é o Tribunal de Contas da União compelir o Ministério da Economia a acabar com a composição paritária no Carf, recomendando a criação de um assento a mais em todas as turmas de julgamento de modo a restabelecer a maioria da Fazenda em seu próprio tribunal administrativo [3]. Os empates passariam a ficar restritos aos julgamentos em que houvesse ausência de conselheiro.

Isso seria em tese possível porque a composição paritária no Carf, a qual remonta a um ideal de justiça classista contemporânea à ditadura Vargas, nunca esteve prevista em lei e não encontra também eco na atual Constituição, pois em nada se harmoniza com os capítulos que regem a Administração Pública e o sistema financeiro e tributário, muito menos guarda relação com direitos fundamentais.

Por estar prevista apenas em portaria do Ministério da Economia e pelo risco de alta relevância que passou recentemente a oferecer às finanças públicas em julgamentos de resultado em empate homogêneo, a composição paritária no Carf poderá ter a sua manutenção questionada pelo TCU, pois a existência de tal instituto não se presume nem do novel artigo 28 da Lei 13.988/2020, nem de qualquer outro dispositivo legal ou equiparado.

Aliás, cabe ressaltar, sessões de julgamento com número ímpar por conta de assento vazio de conselheiro sempre foram comuns ao longo das cerca de nove décadas de existência do Carf e do Conselho de Contribuintes, fato este apenas modificado nos últimos anos diante da novidade surgida de medidas liminares concedidas em mandado de segurança determinando a estrita observância da paridade também no quórum de instalação.

Enquanto não são retomadas as atividades normais no Carf por conta da pandemia, aguarda-se, quem sabe, por alguma solução para esse problema. À medida que o tempo passar, pior será para reverter, ou mesmo para remediar, os efeitos dessa fatídica alteração legislativa.

 


[2] Especula-se aqui que a realidade de mandatos de curta duração e com limite de reconduções, instituída pós-operação zelotes, possa ter acentuado este perfil de votações.

[3] O TCU, em acórdão proferido nos autos do RA nº 01164520156, de julgamento em 4 de maio de 2016, já abordou o tema da composição paritária no Carf e do potencial conflito de interesses dela decorrente, propondo ao Ministério da Fazenda a elaboração de estudos que servissem para avaliar a sua conveniência e oportunidade, citando, inclusive, a experiência do estado de Pernambuco, que pôs fim a este modelo.

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