Opinião

Tema 1.066/STF: o excesso de prazo do INSS e o controvertido acordo com o MPF

Autor

  • Rômulo Saraiva

    é professor advogado especialista em Previdência Social pela Escola Superior da Magistratura Trabalhista da 6ª Região (Esmatra VI) e pela Escola de Magistratura Federal no Rio Grande do Sul (Esmafe-RS) e mestre em Direito Previdenciário pela PUC-SP.

30 de novembro de 2020, 10h32

Diante de tanto atraso do Instituto Nacional do Seguro Social em observar os prazos legais, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União há tempo têm se socorrido ao Judiciário para expor a precariedade estrutural da autarquia e buscar agilidade na resposta do serviço público. Em várias cidades protagonizaram o ajuizamento de ações civis públicas com o intuito de se respeitar a lei e atenuar a demora daqueles que dependem da concessão de algum benefício, sobretudo, os de incapacidade, cuja liberação está atrelada ao ato da perícia médica. Dezenas de ações foram protocoladas para, caso o instituto ultrapasse o prazo de 45 a 60 dias para fazer a perícia médica, que seja automaticamente concedido o auxílio-doença (auxílio temporário por incapacidade). Imbuído desse intuito, em Florianópolis o Ministério Público Federal também ajuizou mais uma dessas ações, que terminou chegando ao Supremo Tribunal Federal (Recurso Extraordinário nº 1.171.152/SC), e este reconheceu a relevância e a repercussão geral da matéria. Neste processo, o Parquet buscava a implantação automática do auxílio-doença em 45 dias, todavia, assinou um termo de acordo dilatando o prazo para 90 dias, condicionado a outras variáveis que congelam a fluência dos prazos, situação mais gravosa do que o próprio objetivo inicial da ação encaminhada ao STF.

A celebração do acordo — a ser homologado pelo Supremo — prevê prazo máximo de 45 dias para avaliar a viabilidade do auxílio-doença, mas antes disso é necessário esperar outros 45 dias até o médico avaliar. Por sua vez, o prazo da realização da perícia médica e da avaliação social ficará suspenso enquanto perdurar a pandemia da Covid-19, que, embora não citado no acordo, deve durar pelo menos até o dia 31 de dezembro. Se houver nova onda pandêmica em 2021, suspende-se o prazo novamente. Além disso, esses prazos de análise e de conclusão do processo administrativo só começam a valer seis meses depois da homologação do acordo judicial pelo Supremo, a fim de que se construa fluxo operacional para execução em todo país.

Na prática, a pretensão do MPF em conceder automaticamente o auxílio-doença se o agendamento da perícia extrapolar os 45 dias transformou-se num acordo que dá uma tolerância no mínimo de 120 dias ao INSS, pois, até o fim de dezembro, há a suspensão de todo e qualquer prazo em razão da própria pandemia, para somente a partir daí começarem a fluir os 45 dias da instrução e o mesmo tempo para finalizar a análise da viabilidade do processo administrativo previdenciário (PAP). Nesse aspecto, era melhor que não tivesse tido o acordo, uma vez que essa modelagem irá vincular outras ações do MPF ou DPU que tivessem o intuito de fazer cumprir a lei, cuja tolerância máxima é de apenas 30 dias, podendo ser prorrogada por igual período.

Pelo acordo formulado, o INSS, sendo representado pela Advocacia-Geral da União, compromete-se a concluir o processo administrativo de reconhecimento inicial de direitos previdenciários e assistenciais nos prazos máximos a seguir fixados, de acordo com a espécie e o grau de complexidade do benefício: 90 dias para benefício assistencial à pessoa com deficiência, idoso e aposentadorias (salvo por invalidez); 60 dias para os casos de pensão por morte, auxílio-reclusão e auxílio-acidente; 45 dias para auxílio-doença comum e por acidente do trabalho (auxílio temporário por incapacidade) e aposentadoria por invalidez comum e acidentária (aposentadoria por incapacidade permanente); e 30 dias para salário-maternidade.

Cabe salientar que o início desses prazos ocorrerá após o encerramento da instrução do requerimento administrativo, que, por sua vez, pode consumir mais 45 dias se forem necessárias a perícia médica e a avaliação social para a concessão dos benefícios, a exemplo de: a) prestação continuada da assistência social à pessoa com deficiência; b) prestação continuada da assistência social ao idoso; c) aposentadoria por invalidez, acidentária ou comum; d) auxílio-doença, acidentário ou comum; e) auxílio-acidente; e f) pensão por morte, nos casos de dependente inválido.

Ora, se a lei federal fixa o prazo máximo de 45 a 60 dias para concretizar a resposta do INSS, poderia o Poder Judiciário, com a participação de MPF, DPU, INSS e AGU, transigir — com a homologação da mais alta corte de Justiça do país — de forma diferente e mais gravosa ao estabelecido no comando legal?

Embora haja certa vaguidão da legislação em definir os prazos para o INSS se posicionar, a oscilação varia apenas entre 45 a 60 dias. Segundo o artigo 49 da Lei 9.784/1999, "concluída a instrução de processo administrativo, a Administração tem o prazo de até trinta dias para decidir, salvo prorrogação por igual período expressamente motivada". Já o disposto no §5º do artigo 41-A da Lei 8.213/1991 determina que "o primeiro pagamento do benefício será efetuado até 45 dias após a data da apresentação, pelo segurado, da documentação necessária a sua concessão".

Além de assinalar prazo superior ao legal, o acordo também traz a situação intrigante de suspender a fluência da contagem. A contagem da realização da perícia médica só deixa de ficar suspensa quando regularizar a pandemia. E nada impede o governo de prorrogar o estado de calamidade pandêmica, o que influenciaria nessa matemática.

O acordo — celebrado pelas principais mãos de autoridades jurídicas brasileiras — termina sendo desvantajoso ao trabalhador se comparado ao objetivo inicial da ação que provocou o Supremo, pois prevê uma série de gatilhos imponderáveis, a exemplo da condicionante do término da pandemia para a partir daí se dá a fluência dos prazos periciais. No processo RE 1.171.152/SC, que deu ensejo ao Tema 1066, o objetivo secundário do Ministério Público Federal, atento a escassez de médicos na instituição previdenciária, era a realização do credenciamento excepcional de peritos e Judiciário foi acionado para autorizar a contratação de médicos peritos temporários para auxílio na redução do prazo médio de realização de perícias, a fim de complementar a gestão do poder público, mas tal iniciativa foi deixada de lado no acordo.

Ações individuais
Outra consequência que poderá ocorrer em decorrência do acordo firmado é a vinculação do seu conteúdo em relação às ações individuais, tendo em vista que muitas vezes segurados discutiram em juízo o excesso de prazo previdenciário, a fim de se respeitar o fixado em lei — iniciativa que terminava surtindo o efeito prático de ter o benefício previdenciário concedido rapidamente. Além das ações individuais, a homologação do acordo terá efeito vinculante sobre as próximas ações coletivas ajuizadas pelo MPF e DPU, desde que tratem do mesmo objeto do Tema de Repercussão Geral nº 1.066: "Possibilidade de o Poder Judiciário: 1) estabelecer prazo para o Instituto Nacional do Seguro Social realizar perícia médica nos segurados da Previdência Social; e 2) determinar a implantação do benefício previdenciário postulado, caso o exame não ocorra no prazo".

Tanto as ações individuais e coletivas que discutiam o excesso de prazo do INSS foram afetadas pela suspensão do seu processamento, até o julgamento final pelo STF do Tema 1.066, e, se o acordo passar a surtir seus efeitos jurídicos, vai ser adotada essa solução jurídica como uniformizadora de conflitos similares, sejam eles individuais ou não.

Descumprimento do acordo
Um aspecto que causa preocupação é sobre a capacidade do INSS de cumprir o acordo, bem como eventual penalização da autarquia se não conseguir fazê-lo em âmbito nacional. A ponderação é factível, pois, embora o acordo traga consequências no universo jurídico, ele não tem o condão de num passe de mágica mudar a realidade precária nas agências previdenciárias brasileiras.

Os prazos assinalados no acordo são abstratos e uma espécie de meta a ser respeitada, mas as deficiências do INSS são históricas e se acumulam com o passar do tempo. Há carência de servidores públicos federais, a ponto de o governo cogitar contratar sete mil militares da reserva para suprir a demanda, bem como insuficiência de servidores administrativos e médicos. De acordo com informação do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário, estima-se que o volume do estoque de processos administrativos aguardando resposta seja de 1,5 milhão de pessoas na fila. Como se não bastasse, os servidores estão com a jornada laboral menor em função do regime de plantão praticado nas agências da Previdência Social (Portaria Conjunta SEPRT/INSS nº 8.024/2020). É uma combinação de aumento de demanda com escassez de servidores e horário de trabalho reduzido.

Apesar do acordo autorizar prazos elásticos em favor do instituto, eventual descumprimento não vai trazer maiores preocupações a quem deu ensejo à demora, pois a astreinte — sanção prevista para coagir o responsável no cumprimento da obrigação legal — fixada no acordo é excessivamente moderada.

Por incrível que pareça, o descumprimento dos prazos vai acarretar apenas que o processo administrativo seja encaminhado para a Central Unificada de Cumprimento Emergencial de Prazos, núcleo criado para monitorar o andamento do acordo, que terá a incumbência de analisar, no prazo de dez dias, o requerimento administrativo. A principal cláusula penal que deveria amedrontar o INSS é justamente para que o instituto analise algo que já era para ter feito anteriormente.

A outra implicação objetiva diz respeito ao fato de o instituto previdenciário fazer o pagamento retardado acrescido de juros moratórios e correção monetária. O acordo foi extremamente generoso com o INSS ao fixar uma sanção tímida, de forma que a penalidade em si não surte o efeito pedagógico necessário de inibir o transgressor, porquanto não é dotada de multa diária apta a desmotivar quem deu azo a inobservância do acerto. A suavidade da constrição firmada em desfavor do INSS pode, inclusive, indiretamente arrefecer a autoridade do magistrado, já que a sanção serve justamente para dar eficácia e concretude à decisão judicial homologatória.

Coisa julgada
Por fim, cabe mencionar outro ponto do acordo que chama bastante atenção. A vinculação da sua redação não afetaria apenas as ações individuais e coletivas, que estejam em andamento, mas também as ações civis públicas irrecorríveis e sepultadas pelo tempo.

O termo de acordo traz a curiosa cláusula que vincula o termo atual ao que já foi resolvido pelo Judiciário no passado: "Em relação às ações civis públicas ou mandados de segurança coletivo que já tenham transitado em julgado, que tratem da mesma matéria objeto do presente acordo, a sua homologação judicial caracterizará superveniente modificação no estado de fato e de direito, para os fins do artigo 505, inciso I, do Código de Processo Civil, limitando, assim, os efeitos dos respectivos títulos judiciais à data da homologação judicial do presente ajuste".

Os principais representantes jurídicos da Administração Pública federal, a exemplo de Ministério Público Federal, Advocacia-Geral da União, Defensoria Pública da União, Procuradoria-Geral da Fazenda e Instituto Nacional do Seguro Social, entabularam acordo que sutilmente sugere que a homologação da tratativa atual atinja de forma superveniente sobre ações civis públicas ou mandados de segurança coletivo acobertados pelo manto da coisa julgada.

Nas entrelinhas, fica perceptível a pretensão de que o novo acordo se sobreporia aos processos coletivos passados e futuros de autoria do MPF e da DPU, desde que tratassem da mesma matéria do Tema 1.066.

Por exemplo, em 2012, em Porto Alegre, o MPF ajuizou ação civil pública defendendo que o instituto deveria conceder o auxílio-doença automaticamente, caso no prazo de até 45 dias a autarquia não providenciasse perito para avaliar o trabalhador. Naquela ocasião, nos autos da ACP nº Ag 5013845-45.2012.404.0000, o relator, juiz federal Celso Kipper, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, proferiu a decisão dizendo que "a marcação de perícias médicas em prazo longínquo, muitas vezes de, aproximadamente, três meses após o requerimento administrativo, é absolutamente indefensável e abusiva". E, por isso, determinou ao INSS a concessão automática, no prazo máximo de 45 dias, sob pena de pagar multa diária de R$ 100 por benefício não pago no caso de inadimplemento parcial, ou, se total o descumprimento, o pagamento de multa global no valor de R$ 10 mil para cada dia de atraso.

Caso essa esdrúxula cláusula seja levada a efeito, inclusive transgredindo o instituto da coisa julgada e da segurança jurídica, o novo acordo se sobreporia ao que ficou resolvido na ACP gaúcha e tantas outras já resolvidas, inclusive no aspecto processual da multa.

Conclusão
Portanto, verifica-se que a essência do Tema 1.066 é controvertida, pois estabelecer prazo para o INSS realizar perícia médica nos segurados não é tarefa do Judiciário, mas do Poder Legislativo. Indiretamente, o STF está sendo provocado a opinar em matéria que foge de sua competência, que, se não ocorrer a devida cautela, pode legislar por via oblíqua na dilatação de prazo administrativo e na autorização de acordo atual relativize a coisa julgada de processos semelhantes.

Além dessas consequências, caso o Supremo homologue sem ressalva o acordo, irá submeter a todos aqueles que dependem do serviço do INSS um prazo superior ao que a própria lei brasileira dispõe, inviabilizando reclamação superveniente, pois o assunto fora resolvido pela instância máxima da justiça brasileira. Até é razoável que o Judiciário fiscalize se o INSS cumpre os prazos legais e, não sendo o caso, se utilize de meios para compelir a concessão tempestiva do benefício previdenciário. Mas foge da alçada do Supremo criar novos prazos.

O acordo foi abrangente ao regular a situação de prazos concessivos que sequer foram mencionados no processo do MPF. Embora a discussão levada ao STF aborde apenas a situação do auxílio-doença, o acordo relaciona outros benefícios. Se tal aspecto não for observado, ao proferir decisão homologatória, o julgador não estaria se atendo ao pedido formulado pelas partes e incorrido em vício ao resolver assunto não previsto na lide.

Caberá ao Supremo Tribunal Federal decidir acerca de conflitos interpretativos e controvérsias relativas ao acordo, que irá influenciar no julgamento do Tema 1.066. Caso o ministro Alexandre de Moraes homologue o acordo tal qual fora confeccionado pelo MPF, INSS e DPU será deveras prejudicial à população dependente do serviço previdenciário, em função da dilatação dos prazos administrativos além dos 45 a 60 dias legais. Aliado ao fato do valor das penalidades, a timidez na fixação das multas — que não atendem ao seu objetivo inibidor -— poderá propiciar certo relaxamento no fiel cumprimento do acordo pelo INSS, pois este padece de históricas dificuldades operacionais em atender a demanda social.

O Ministério Público Federal, o "titular da ação", era quem devia ter o zelo de equilibrar os termos do acordo, ou se fosse o caso não fazê-lo, a fim de salvaguardar melhor o interesse coletivo da sociedade, pois, como fiscal da lei, terminou descuidando da tolerância máxima legal de 45 a 60 dias, uma vez que vários prazos foram alongados, o que afasta o trabalhador ainda mais de ter de exercer seu direito fundamental e ter acesso ao seu benefício previdenciário.

Autores

  • é professor, advogado, especialista em Previdência Social pela Escola Superior da Magistratura Trabalhista da 6ª Região (Esmatra VI) e pela Escola de Magistratura Federal no Rio Grande do Sul (Esmafe-RS) e mestre em Direito Previdenciário pela PUC-SP.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!