Opinião

Método de decisão do STF e insegurança na aplicação dos precedentes

Autor

  • Cesar Zucatti Pritsch

    é juris doctor pela Universidade Internacional da Flórida (EUA) juiz do trabalho membro da Comissão de Jurisprudência e vice-coordenador pedagógico da Escola Judicial do TRT da 4ª Região.

30 de novembro de 2020, 18h15

A pergunta objeto da presente reflexão é se o próprio método de decisão do Supremo Tribunal Federal, em regra com longos votos emitidos em série e não per curiam — portanto sem consolidar em voto único os fundamentos convergentes da maioria [1] —, contribuiria para causar uma certa insegurança — quiçá até incompreensão ou resistência — na aplicação de seus precedentes pelos demais juízos, como resultado das naturais ambiguidades ou confrontos resultantes da insularidade e dispersão dos fundamentos dos votos individuais. Talvez seja a hora de repensar o método pelo qual o STF chega às decisões e as veicula, buscando tal consolidação de fundamentos em um voto majoritário, como é a tradição nos demais tribunais pátrios e, no direito comparado, na paradigmática Suprema Corte americana.

A presente reflexão tem origem em dois fatos noticiados nos últimos dias. Um é que o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, instituiu no último dia 24 uma comissão de juristas para elaborar um anteprojeto de lei que sistematize as normas de processo constitucional brasileiro [2], o que poderia ser uma importante oportunidade para remodelar o procedimento, evitando que suas decisões sejam coleções isoladas de votos e se tornem precedentes de fácil leitura e largo efeito pedagógico prospectivo.

O segundo é que, de 20 de novembro a 10 deste mês, o STF estará avaliando se há questão constitucional de repercussão geral no RE 1298647, Tema 1118 — provisoriamente delimitado como "ônus da prova acerca de eventual conduta culposa na fiscalização das obrigações trabalhistas de prestadora de serviços, para fins de responsabilização subsidiária da Administração Pública, em virtude da tese firmada no RE 760.931 (Tema 246)", preparando o enfrentamento de um antigo dilema que, em maior ou menor grau, já foi abordado na ADC 16 (2010), no Tema 246 da repercussão geral (2019) e, agora, novamente, no Tema 1118 da repercussão geral.  

Revisitar o tema da terceirização no setor público, apenas um ano após firmar o precedente relativo ao Tema 246 (cuja matéria, por sua vez, já havia sido abordada na ADC 16 em 2010), exemplifica a insegurança jurídica que já noticiávamos em artigo aqui publicado em outubro de 2019 [3], decorrente da difícil delimitação da ratio decidendi de suas decisões. O precedente firmado no RE 760.931 (Tema 246) não pacificou a matéria, recebendo interpretações divergentes. A 1ª Subseção de Dissídios Individuais do TST (SBDI1), responsável pela uniformização entre as turmas do TST, concluiu (em nosso ver, acertadamente) que o STF não havia, no Tema 246 da repercussão geral, firmado tese majoritária quanto a quem incumbia o onus probandi relativo às falhas na fiscalização dos contratos de serviços terceirizados, para fins de responsabilização do tomador público pelos débitos inadimplidos de uma empresa terceirizada financeiramente inidônea (E-RR 925-07.2016.5.05.0281, julgado em 12/12/19, rel. min. Cláudio Brandão). Tal decisão de seção uniformizadora (elencada no artigo 927, V, do CPC, como obrigatória, ensejou divergências por algumas turmas do próprio TST, e houve centenas de recursos extraordinários sobre a matéria, cujo exemplificativo agora novamente insta o STF a se pronunciar sobre a temática. 

Tal vertiginosa sucessão de decisões sobre a mesma matéria tem ligação, como dissemos, com a falta de clareza quanto à ratio decidendi em julgamentos por votos em série. Os "acórdãos", de centenas de páginas, na realidade são a soma de longos votos díspares entre si, além de debates orais. Em tal contexto, a extração da ratio decidendi é sempre um trabalho hercúleo, obrigando o operador do Direito, sobrecarregado com a labuta diária, a se contentar com o verbete abstrato "ditado" pelos ministros, nem sempre exato ou claro em relação aos limites objetivos da ratio. Para fugir de tal armadilha hermenêutica, teria o intérprete de investir muitas horas ou dias para mapear a existência de maioria de votos para os respectivos fundamentos determinantes.

No caso do RE 760.931 (Tema 246), a leitura de suas 355 laudas revela a tensão entre visões conflitantes sobre o tema, com uma apertada maioria em favor do desprovimento do recurso da União, mas ausência de conclusão majoritária quanto a quem incumbiria o ônus da prova. No atinente ao encargo probatório, o ministro Edson Fachin reportou-se às "premissas fáticas estabelecidas no acórdão recorrido", abstendo-se de revalorar as provas — postura tradicional dos tribunais superiores, pela natureza de instância extraordinária dirigida unicamente pelas questões de direito [4]. O ministro Celso de Mello adotou na íntegra o voto da ministra. Rosa Weber (pelo onus probandi da Administração) [5] e o ministro Luís Roberto Barroso observou que "cabe à Administração Pública comprovar que fiscalizou adequadamente o cumprimento das obrigações trabalhistas pelo contratado" [6]. No mesmo sentido, ainda, foi o voto do ministro Ricardo Lewandowski, asseverando que "compete à Administração Pública o ônus de provar que houve fiscalização" [7].


 

 

 

Já os ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes, ainda que entendessem ser necessário o provimento do recurso concreto para sinalizar a inviabilidade do reconhecimento de uma presunção linear de culpa, que equivaleria a uma negação do artigo 71 da Lei de Licitações [8], nenhum deles afirmou a imputação do ônus da prova ao autor. Pelo contrário, disse o ministro Gilmar Mendes expressamente: 

 

"É fundamental que se tenha presente que estamos falando, de fato, de responsabilidade subjetiva com a inversão do ônus da prova, quer dizer, cabe ao poder público contratante fazer a prova de que fez a fiscalização. A mim, me parece que se deve dizer quais são, na medida do possível, esses deveres que decorrem da própria legislação, os deveres de fiscalização" [9].

No mesmo sentido, o ministro Toffoli insistiu que ficasse consignado, ao menos em obiter dictum, que:

"É muito difícil ao reclamante fazer a prova de que a fiscalização do agente público não se operou, e que essa prova é uma prova da qual cabe à Administração Pública se desincumbir caso ela seja colocada no polo passivo da reclamação trabalhista, porque, muitas vezes, esse dado, o reclamante não tem. A Administração Pública, ao ser acionada, tem que trazer aos autos elementos que diligenciou no acompanhamento do contrato" [10].

Efetuado o árduo trabalho de garimpar os votos dos ministros em relação à questão jurídica do ônus da prova da culpa in vigilando, objeto deste breve estudo de caso, chega-se à conclusão de que inexistiu maioria da corte firmando-o contra o empregado, nem contra a Administração. Aliás, se ainda houvesse dúvida, o Pleno da corte, em sede de declaratórios, expressamente rejeitou a proposta de incluir na "tese" a imputação de tal ônus ao empregado. A maioria dos ministros acompanhou o voto do ministro Edson Fachin, rejeitando os declaratórios, por não haver omissão, obscuridade ou contradição no acórdão [11]. Como sumarizado pela ministra Carmen Lúcia, ao votar com a maioria:

"Quando a Administração Pública não cumprir também o seu dever porque a Administração não pode ser omissa, não pode ser recalcitrante, não pode ser leve e deixar que o trabalhador é que fique com o ônus , comprova-se a situação que Vossa Excelência chama de excepcional em que, comprovada essa ausência de atuação obrigatória da Administração Pública, permitir-se-ia, então, que ela respondesse".

O breve relato acima revela a dificuldade de aplicação prospectiva de precedentes materializados por votos seriados. Como deve o operador do Direito proceder, quando diante de dúvida quanto à aplicabilidade ou desdobramentos concretos de um precedente do STF? Aplicar mecânica e radicalmente a literalidade da "tese" abstrata [12]? Efetuar uma exegese ou interpretação gramatical da tese, como se lei fosse? Ou examinar o caso-piloto julgado e os fundamentos determinantes externados com maioria de votos?

A doutrina é uníssona quanto à essencialidade do cotejo entre a moldura fático-jurídica do precedente e o caso sub judice para a aplicação de precedentes [13]. Tal é, entretanto, dificultado pela sobreposição de longos votos seriados nas decisões do STF, tendendo a gerar na comunidade jurídica considerável dúvida e, frequentemente, um nível mais superficial ou equivocado de compreensão. Podemos dizer, em suma, que, quanto mais longo e fragmentado for um acórdão, menos compreendido e efetivamente lido será — pondo a perder sua finalidade pedagógica e prospectiva precedencial. Em nosso exemplo, mesmo após a ADC16 e o Tema 246 da repercussão geral, perdura controvérsia em milhares de processos no TST. A questão não se pacificou na seara laboral nem mesmo após decisão da SBDI1, pois enquanto esta enxerga na decisão do STF para o tema 246 um vazio precedencial quanto ao ônus da prova do tomador de serviços público, há ministros que permanecem julgando em contrário, entendendo que o tema 246 impõe precedente vinculante imputando ao trabalhador tal ônus probatório.

Tais visões tão díspares quanto ao mesmo precedente constituem forte indício que algo pode estar errado com o próprio método de decisão do STF, para ter a clareza necessária para que seus precedentes possam ser melhor compreendidos e seguidos. Decisões conglobadas, consolidando os votos dos vencedores, de forma mais enxuta e objetiva, tenderiam a reduzir renitentes dissensos residuais, como aquele aqui exemplificado. Veja-se que a maioria do STF, nos embargos declaratórios em face do acórdão do Tema 246, se limitou a dizer que, no acórdão principal, não houve maioria quanto ao ônus da prova, e que, portanto, não seria lícito incluir tal questão na tese. No entanto, como mencionamos, remanesce entendimento em contrário — já esposado por algumas turmas do TST e em alguns acórdãos turmários do STF julgando reclamações. Logo, o precedente não atingiu sua finalidade de pacificação da questão, deixando para magistrados e partes a tarefa de interpretar uma decisão longa e com votos discrepantes.


 

 

 

Ademais, se o fortalecimento do sistema de precedentes no país pretendia a racionalização do serviço nas cortes supremas, as decisões seriadas não agem em favor de tal objetivo. Veja-se, em nosso exemplo, que o STF não formou maioria quanto ao ônus da prova, remanescendo acesa controvérsia, objeto de milhares de recursos extraordinários em face das decisões do TST [14]. Tais recursos passam pelo filtro de admissibilidade a quo no TST, sendo escolhidos os exemplificativos e enviados ao STF. Este passa a examinar se enfrentará novamente a questão, já que não há entendimento vinculante rechaçando o caráter constitucional da matéria, nem imputando especificadamente o ônus probatório à Administração Pública. Assim, por conta da própria imprecisão da delimitação dos efeitos vinculantes de seus precedentes seriados, o STF se vê emaranhado em um contraproducente círculo vicioso, de um lado tendo de revisitar suas próprias decisões, complementando-as, por outro lado servindo como corte de controle da aplicação de seus precedentes (via reclamações).

 

Tomara que a comissão de notáveis designada pelo presidente da Câmara possa encontrar soluções para a melhoria do processo de controle de constitucionalidade no STF. Deixamos aqui registrada nossa singela sugestão — que se consolide a votação da maioria sob um relator (ou um redator designado, se vencido o relator), formando um acórdão mais legível e pedagógico, ancorado nos limites objetivos da lide e no princípio do juiz natural, cuja ratio possa ser mais difundida e melhor interpretada pela comunidade jurídica a partir do corpo do acórdão — e não de uma leitura rasa de frequentemente ambíguos verbetes de "tese" ditados abstratamente.

 

 

 

[1] Sobre a técnica de votação seriatim ou per curiam em cortes supremas, ver VALE, André Rufino do. É preciso repensar a deliberação no Supremo Tribunal Federal. Revista Consultor Jurídico – CONJUR, 01/02/2014, disponível em <https://www.conjur.com.br/2014-fev-01/observatorio-constitucional-preciso-repensar-deliberacao-stf>.

[2] Consultor Jurídico. Comissão de juristas vai elaborar projeto sobre normas de processo constitucional. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2020-nov-25/juristas-elaborar-projeto-normas-processo-constitucional?imprimir=1>.

[3] PRITSCH, Cesar Zucatti; JUNQUEIRA, Fernanda Antunes Marques; MARANHÃO, Ney. STF deixa em aberto ônus da prova para responsabilização do tomador público. Revista Consultor Jurídico – CONJUR, 14/10/2019, disponível em <https://www.conjur.com.br/2019-out-14/opiniao-stf-responsabilizacao-tomador-publico>.

[4] RE 760931/DF, fl. 179.

[5] RE 760931/DF, fl. 248.

[6] RE 760931/DF, fl. 208.

[7] RE 760931/DF, fl. 228.

[8] RE 760931/DF, fls. 249 quanto ao min. Toffoli e 229, 237 e 256 quanto ao min. Gilmar Mendes.

[9] RE 760931/DF, fl. 217.

[10] RE 760931/DF, fls. 349-350.

[11] RE 760931 ED / DF, fl. 25.

[12] Tema 246 da Repercussão Geral – O inadimplemento dos encargos trabalhistas dos empregados do contratado não transfere automaticamente ao Poder Público contratante a responsabilidade pelo seu pagamento, seja em caráter solidário ou subsidiário, nos termos do art. 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93.

[13] A doutrina pátria e estrangeira sobre o tema é examinada em nossa obra – PRITSCH, Cesar Zucatti. Manual de prática dos precedentes no processo civil e do trabalho. LTr, 2018.

[14] Sem contar as inúmeras reclamações, per saltum, diretamente ao STF, por alegada desobediência à ratio da ADC16, nos termos do artigo 988 do CPC.

Autores

  • Brave

    é juris doctor pela Universidade Internacional da Flórida (EUA), juiz do trabalho membro da Comissão de Jurisprudência do TRT da 4ª Região, autor do "Manual de Prática dos Precedentes no Processo Civil e do Trabalho" (Editora LTr), coordenador de "Precedentes no Processo do Trabalho" (RT) e coautor de "Direito Emergencial do Trabalho" (RT, no prelo).

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