Opinião

CNJ julga o valor da independência judicial

Autor

  • Marcelo Semer

    é desembargador do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo); autor de "Sentenciando Tráfico — O Papel dos Juízes no Grande Encarceramento" (Tirant lo Blanch) e "Os Paradoxos da Justiça: Judiciário e Política no Brasil" (ed. Contracorrente).

30 de novembro de 2020, 15h17

Nesta terça-feira (1º/12), o Conselho Nacional de Justiça se encontrará diante de um julgamento que explicita uma de suas funções mais importantes: a tutela da autonomia do Poder Judiciário e a independência do magistrado.

O juiz paulista Roberto Corcioli pleiteia a revisão da pena de censura que lhe foi imposta em face de decisões judiciais que, resumidamente, teriam sido proferidas "com ideologia" e provocado a soltura de presos e adolescentes apreendidos, e, com isso, supostamente, o desassossego em sua comarca — consoante declarações de autoridades locais.

Corcioli foi acusado por um conjunto de promotores de Justiça de ter uma "ideologia contra o modelo do sistema penal vigente e favorável ao desencarceramento" e, por isso, relaxar sistematicamente prisões em flagrante, conceder liberdades provisórias em crimes graves e absolver muitos réus e adolescentes infratores. Na estampa do título que se pretende revisar, consta que Corcioli teria se utilizado da doutrina do garantismo e, com isso, provocado o aumento da insegurança e o descrédito das instituições.

Como exemplos das infrações atribuídas ao juiz, o conjunto de promotores de Justiça elencou, entre outras, a aplicação da detração contra texto de lei, a absolvição pelo princípio da insignificância e até por "inexigibilidade de conduta diversa", além da fixação de pena abaixo do mínimo legal. Ele teria ainda questionado prisão e condenação com base exclusiva na palavra de policiais e declarado a nulidade de atos realizados por GCMs, pela falta de competência para a investigação. Enfim, todos temas sobre os quais a doutrina e a jurisprudência se debruçam há décadas, nem sempre no mesmo sentido.

Sendo certo que a independência do juiz tem como principal corolário o fato de que ele não pode ser punido em razão do entendimento jurisdicional que esposa, a acusação tentou atribuir o desvio a uma certa contaminação da ideologia que teria feito o juiz decidir contra a lei —embora tenham ignorado no libelo, em grande medida, a normatividade dos princípios, como se não fizessem eles também parte do direito.

Desconheço se de fato houve algum estudo aprofundado acerca de eventual aumento da criminalidade na cidade onde ele judicou — a sociologia não costuma ser pródiga em apontar causas tão determinantes para o acréscimo ou decréscimo de infrações penais; ou, ainda, se tudo transitou apenas na esfera da impressão, como é o hábito na constituição dos pânicos morais. Mas certo é que se o juiz deve decidir por princípios e não por políticas — até porque não foi eleito para isso — de diminutíssima valia, a não ser do ponto de vista retórico, é a análise das possíveis consequências de uma determinada decisão.

Pautar a decisão criminal por certas políticas, como proposto, representaria a imersão naquilo que se acostumou a chamar de ativismo. Ou judicialização da política, impensável, sobretudo, na área penal ou da conexa infância e juventude infracional. Não deixa de ser sintomático que combativos promotores ou diligentes policiais possam produzir alarde sobre decisões judiciais garantistas, no sumo do que Raul Zaffaroni denomina criminologia midiática — as diatribes chegam a ser cultuadas na mídia, embora raramente atinjam as academias. Mas que elas possam determinar decisões judiciais, aí, sim, se trataria de considerável abalo na independência do magistrado.

Dos comentários ao princípios de Bangalore, elaborado pelo Grupo Internacional de Integridade Judicial, a pedido da ONU, se extrai a importância desse predicado:

"O cerne do princípio da independência judicial é a completa liberdade do juiz para ouvir e decidir as ações impetradas na corte. Nenhum estranho, seja governo, grupo de pressão, indivíduo ou mesmo um outro juiz deve interferir, ou tentar interferir, na maneira como um juiz conduz um litígio e sentencia" [1].

Mais ainda há uma outra questão.

Se normalmente já é um esforço inglório a tentativa de distinguir de forma absoluta a técnica da ideologia (a escolha de um método de trabalho sempre parte da tomada de decisões com certa arbitrariedade), tanto mais no âmbito do Direito, que depende da interpretação que é, por essência, um ato político — carregado de  escolha de valores, poucas vezes dissociadas de leituras, lugares de fala, experiências etc. Por tudo isso, uma absoluta homogeneidade nas decisões é não só impossível como indesejada. Tanto mais em uma sociedade declaradamente pluralista.

Veja-se o caso, por exemplo, das reiteradas críticas do Superior Tribunal de Justiça à resistência dos desembargadores paulistas a cumprirem os paradigmas consolidados do STJ e até mesmo sumulados pelo Supremo Tribunal Federal. Foi um sem-número de advertências, conversas, reuniões, antes da decisão que determinou, em sede de Habeas Corpus coletivo [2], que os presos que se encontrassem condenados, por delito de tráfico privilegiado, a um ano e oito meses de reclusão, em regime fechado, fossem colocados pelos juízes das execuções criminais diretamente no regime aberto, servindo a decisão, ademais, de salvo conduto, para impedir novos excessos.

Entre os fundamentos deduzidos pelo relator, ministro Rogério Schietti Cruz, a crítica contundente a: "Uma política estatal que se poderia, não sem exagero, qualificar como desumana, desigual, seletiva e preconceituosa. Tal orientação, que se forjou ao longo das últimas décadas, parte da premissa equivocada de que não há outro caminho, para o autor de qualquer das modalidades do tráfico — nomeadamente daquele considerado pelo legislador como de menor gravidade —, que não o seu encarceramento" [3].

Acerca da crítica que havia sido formulada por Schietti Cruz em tom similar em um seminário recente, o Tribunal de Justiça de São Paulo respondeu por intermédio do culto desembargador presidente de sua seção criminal, assentando que:

"(…) Em decorrência da garantia da independência funcional, no exercício da atividade jurisdicional, o magistrado não deve estar sujeito a qualquer tipo de ordem ou injunções institucionais, cabendo-lhe seguir apenas a sua consciência, formada a partir do que dispõem as leis e a Constituição da República;
(…) O que não se pode conceber é que se retire do magistrado sua liberdade de analisar as particularidades de cada caso concreto e de decidir conforme seu livre convencimento motivado" [4].

E com relação ao criticado excesso das prisões provisórias e a plêiade de decisões que mantinham regimes mais gravosos que a lei autorizava, arrematou:

"São Paulo desponta como um dos Estados com os melhores índices de segurança do país, resultado que, em grande parte, deve-se à atuação firme e obstinada de seus magistrados, sobretudo na área criminal" [5].

Poder-se-ia dizer que a ideologia punitivista, que consagrou os excessos prisionais, para obter mais encarceramento (tenho lá fundadas dúvidas acerca dessa "efetividade" anunciada pelo senso comum), vinha sendo decidida em afronta aos paradigmas nacionais da jurisprudência. Mas jamais passaria pela cabeça de um jurista que, por tais decisões, juízes pudessem ser levados ao banco dos réus e recebessem uma tão desabonadora sanção.

Afinal, independência judicial não casa com censura fundada em atividade jurisdicional.

Da última vez que foi colocado à frente de uma questão similar, o Conselho Nacional de Justiça não hesitou. Cassou, por estrondosa maioria, a punição da então juíza Kenarik Boujikian, a quem do mesmo modo se lhe aplicara punição por decisão judicial. Coincidentemente, também por soltar presos.

Na época, o então corregedor-geral da Justiça, João Otávio de Noronha, assinalou que havia evidente contradição na sanção imposta, que buscava condenar a juíza por sua convicção jurídica: "O juiz, a qualquer instante, está autorizado a proferir decisões de natureza penal concessiva da liberdade" [6], disse o ministro do STJ.

Já a ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, encerrou a sessão afirmando que a todos os juízes é permitido proferir decisões de acordo com a convicção que têm sobre o Direito:

"Nenhum país democrático, e nenhum cidadão, pode dormir sossegado se não tiver a certeza de que o juiz foi conduzido pela convicção do Direito em determinado caso. É isto que dá a necessária segurança jurídica de direitos e liberdades" [7].

A composição do Conselho Nacional de Justiça mudou desde então. Mas supomos que a convicção de garantir a segurança jurídica de direitos e liberdades mantenha-se íntegra.

 


[1] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Escritório Contra Drogas e Crime (UNODC). Comentários aos Princípios de Bangalore de Conduta Judicial. Disponível em <https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil/Topics_corruption/Publicacoes/2008_Comentarios_aos_Principios_de_Bangalore.pdf>, acesso em 30/11/18, às 19h30.

[2] STJ, Sexta Turma: Habeas Corpus 596.603/SP.

[3] Idem.

[4] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Nota da Presidência da Seção Criminal (5/8/2020). Disponível em http://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=61813&pagina=1, acesso em 07/8/2020, às 19h00.

[5] Idem.

[6] "CNJ absolve juíza que havia sido punida por soltar presos provisórios", Agência Brasil, 29/8/2017, disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-08/cnj-absolve-juiza-que-havia-sido-punida-por-soltar-presos-provisorios.

[7] "Por 10 votos a 1, CNJ anula condenação de juíza paulista Kenarik Boujikian", Consultor Jurídico, 29/8/2017, disponível em https://www.conjur.com.br/2017-ago-29/10-votos-cnj-anula-condenacao-juiza-kenarik-boujikian.

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  • Brave

    é juiz de Direito, escritor, mestre em Direito Penal e doutor em Criminologia, ambos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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