Opinião

A lacuna trabalhista no Marco Legal das Startups

Autor

  • Fernando Abdala

    é advogado sócio de Abdala Advogados relator do Grupo de Direito do Trabalho para elaboração do Marco Legal de Startups no Governo Federal pós-graduado em Direito Constitucional pelo IDP mestrando em Políticas Públicas pelo IDP conselheiro seccional da OAB-DF gestão 2019-2021 presidente da Comissão de Direito do Trabalho e Sindical da OAB-DF gestão 2019-2021 e membro consultor das Comissões de Direito Sindical e Direitos Sociais do Conselho Federal da OAB.

30 de novembro de 2020, 17h15

Em tempos tão difíceis, temos de comemorar todas as boas notícias, sobretudo as que incentivam o desenvolvimento econômico, tal como o envio pelo governo federal de sua versão do Projeto de Lei do Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador em outubro, o Projeto de Lei Complementar PLP nº 249/2020.

A mais recente novidade a comemorarmos é a disposição do relator da comissão especial criada para analisar o Projeto de Lei Complementar PLP nº 146/2019, que trata do mesmo tema e ao qual o PLP 249 foi apenso, Vinícius Poit (Novo-SP), de apresentar o relatório nos próximos dias, bem como o alinhamento de líderes do Parlamento, governo e outras forças políticas relevantes para aprovar o projeto rapidamente.

No entanto, não podemos deixar de lamentar a falta de qualquer dispositivo que trate de matérias trabalhistas na proposta enviada pelo governo e outros temas relevantes no citado PLP.

As relações de trabalho são um dos maiores problemas no ecossistema de empreendedorismo inovador no Brasil por serem fonte de insegurança jurídica e custo incerto. Isso ocorre porque a estrutura básica normativa do Direito do Trabalho foi construída tendo como parâmetro de regulação o modelo de trabalho realizado na primeira revolução industrial. O modelo de contrato de trabalho brasileiro ainda é muito rígido, sobretudo, no que diz respeito a jornada e remuneração. Além disso, mudanças, adaptações e flexibilizações não são normalmente bem recebidas pelo Poder Judiciário, o que amplifica incertezas jurídicas.

Para tentar resolver alguns desses problemas, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e o Ministério da Economia (ME) constituíram em 2018 um grupo de trabalho para diagnóstico e construção de uma proposta de novo marco legal, que tinha quatro eixos temáticos, entre eles relações trabalhistas. Fizeram parte do grupo de trabalho representantes da sociedade civil, academia, empreendedores, investidores, outros órgãos de governo.

O grupo de relações trabalhistas apresentou dois temas merecedores de atuação legislativa. A primeira era similar ao já previsto no artigo 444 da CLT, que criou a figura do "trabalhador hipossuficiente", aquele que teria aptidão para manifestar e exercer maior autonomia da vontade na negociação de seus direitos trabalhistas. Na proposta, reduziu-se o valor da remuneração mínima prevista no §1°, para coincidir com o benefício máximo dos benefícios do Regime Geral da Previdência Social. Considerou-se que os profissionais que prestam serviços para as startups têm, em regra, maior autonomia técnica e funcional, além de alta escolaridade, ainda que possam não receber altos salários por prestarem serviços a startups, empresas em fase inicial de desenvolvimento.

Entendemos que um dispositivo dessa natureza seria muito adequado, pois, apesar de não reduzir custos, facilita a negociação entre trabalhadores e empregadores e permite maior adequação das condições de trabalho às necessidades. Os empregados considerados como mais vulneráreis, aqueles que ganham menos que o limite máximo do regime geral da previdência, continuariam a ter os mesmos direitos e obrigações. Imaginava-se que essa norma se aplicaria aos trabalhadores altamente especializados, tal como programadores e desenvolvedores, enquanto os de menor especialização, como secretárias, continuariam com a mesma proteção legal.

Um segundo ponto importante era a regulamentação de uma modalidade de remuneração flexível, que tem por finalidade reter talentos em uma startup e trazer ao trabalhador uma condição de dono, por meio da oferta de aquisição de participação societária, as chamadas Employee Stock Options.

Nessa matéria, o elemento de insegurança jurídica é a interpretação que a Justiça do Trabalho e a Receita Federal fazem do plano de aquisição de opções pelo empregado, por considerar tais ações como verbas de natureza salarial disfarçadas, sobre as quais deve incidir todos os encargos trabalhistas.

Stock Options Plan é uma espécie de plano de incentivo a longo prazo, em que a empresa dá ao funcionário a opção de adquirir ações desta por um preço predeterminado e em um período estabelecido. Além de ser uma forma de incentivo ao empregado, que passa a ser dono de ações da empresa, é também uma forma da empregadora buscar funcionários que queiram crescer com ela. No Brasil esse mecanismo está se popularizando, uma vez que a quantidade de startups aumentou significativamente

Importante destacar que para adquirir as ações da empresa o funcionário deve preencher alguns requisitos, como tempo na empresa e desempenho. Quando preenchidos os requisitos, oferece-se ao funcionário a opção de comprar as ações ou de não comprar; caso decida por comprar, ele pode continuar dono das ações ou aliená-las.

Existe no ordenamento jurídico pátrio autorização para constar nos estatutos das empresas a modalidade de stock option, conforme inteligência do artigo 168, §3º, da Lei nº 6.404/76 (Lei das Sociedades por Ações — LSA). Entretanto, o dispositivo não determina qual a natureza jurídica do stock option, o que vem causando divergências entre decisões do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

O TST já decidiu, mais de uma vez, que os valores recebidos na modalidade de stock option não possuem natureza salarial e sim mercantil, pois o funcionário estaria realizando uma compra de ativos. Para o TST, os valores recebidos decorrentes dessa compra não são uma forma de contraprestação ao trabalho, mas sim decorrentes de lucro da empresa.

Já o Carf tem entendido de maneira diversa do TST, proferindo decisões reconhecendo o caráter salarial da modalidade, argumentando que não possui onerosidade na aquisição e que o instrumento seria outorgado de forma automática aos funcionários, determinando, assim, o recolhimento dos encargos fiscais como se verba salarial fosse.  

Alguns Tribunais Regionais Federais (TRFs) já decidiram pelo caráter mercantil dos valores recebidos, como o TRF da 2ª Região, que decidiu argumentando que os valores recebidos não decorrem da relação de trabalho.

O Projeto de Lei nº 286/2015 busca regulamentar o stock option especificando situações em que a verba possuí caráter mercantil e outras em que irá possuir natureza salarial, mas não há regulamentação específica vigente. O PL nº 146/2019 também não dispôs sobre a matéria, deixando uma lacuna evidente sobre a natureza das verbas recebidas por esta modalidade, o que tem causado insegurança jurídica, visto que o TST e o Carf decidem em sentidos completamente opostos.

O grupo de trabalho montado pelo MCTIC e Economia sugeriu que a natureza dos valores recebidos a título de stock option possuam: 1) natureza não salarial quando se tratar de condição de contrato sem caráter retributivo em relação ao trabalho prestado ou, ainda, implicar em risco para o empregado; e 2) caráter salarial quando pago em complementação ao salário fixo contratado e se constituir em remuneração variável.

Nesse segundo caso, para ficar caracterizada como verba salarial, é necessária a vinculação do valor e/ou da quantidade do benefício ao desempenho ou a metas de produtividade e analisar o método de exercício autorizado no ato concessivo da premiação não implicar risco para o empregado.

A proposta do grupo de trabalho definiu ainda que nos casos em que o stock option não possuí natureza salarial ele seria tributado conforme Lei nº 9.959, de 27 de janeiro de 2000, para as operações realizadas nas bolsas de valores, ou na legislação que lhe for sucedânea. O texto proposto pelo grupo poderia resolver a grave questão da insegurança jurídica causa por decisões completamente opostas proferidas pelo TST e pelo Carf. Essas propostas ainda podem ser incorporadas ao projeto durante o processo legislativo.

O PLP nº 146/2019 propõe algumas alterações na seara trabalhista apenas de startups, tal como, aumenta o tempo de dois para quatro anos do contrato por prazo determinado. Esse novo prazo seria improrrogável. O PLP também aumenta o prazo do contrato de experiência, que passa a ser de 180 dias para as startups. O prazo de 18 meses que a Lei do Trabalho Temporário prevê para um trabalhador demitido voltar para a empresa não será aplicado as startups. Também autoriza a implementação de uma remuneração variável que levaria em consideração a eficiência e a produtividade da empresa.

O PLP nº 249/2020 do governo foi silente sobre a matéria trabalhista, e desconsiderou os esforços do grupo temático de especialistas por ele próprio constituído. O PLP nº 146/2019 ainda é tímido, deixando escapar diversas questões que necessitam de regulamentação diante do aumento e desenvolvimento de startups no Brasil.

Apensados, ambos os projetos ainda passarão por grandes debates no Parlamento, que poderá completar essa lacuna e dispor sobre os temas trabalhistas e outros tão relevantes para o ecossistema empreendedor brasileiro. Tempos difíceis são sempre tempos de esperança.

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