Segunda leitura

Diversos olhares sobre a morte de João Alberto no Carrefour

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

29 de novembro de 2020, 8h00

Ciente das paixões que envolvem o assunto e da facilidade com que se atribuem rótulos difamatórios às pessoas, deixo clara minha posição sobre o tema racismo, narrando um caso real. No dia 13 de dezembro de 2004, na qualidade de presidente do TRF da 4ª Região, proferi decisão admitindo o sistema de cotas adotado pela UFPR, na primeira ação no Brasil em que se discutiam cotas para negros.[1] Mais não é preciso comentar.

Spacca" data-GUID="vladimir_passos_freitas1.jpeg">Posta às claras a minha posição, registro que o que aqui se escreve não seguirá linha radical ou emotiva. A experiência de 54 anos no mundo jurídico, 26 dos quais na magistratura, não me permitem análises impetuosas ou raivosas. Atenção especial será dada aos aspectos antecedentes e paralelos ao fato criminoso. Vejamos.

Na quinta-feira, 19 de novembro passado, véspera do Dia da Consciência Negra, a mídia foi invadida por notícias da morte de João Alberto Silveira Freitas, com 40 anos de idade, um cidadão de cor negra, que faleceu após ter sido agredido por dois seguranças do hipermercado Carrefour, em Porto Alegre.

João Alberto era conhecido no Carrefour do Bairro Passo D'Areia, onde comparecia regularmente. A causa da chamada dos seguranças ainda não ficou bem esclarecida, porém suspeita-se que “As agressões começaram após um desentendimento entre a vítima e uma funcionária do supermercado, que fica na Zona Norte da capital gaúcha”[2].

A vítima registrava antecedentes criminais. Uma condenação a 1 ano e 20 dias de detenção por ameaça relacionada a violência doméstica[3], uma execução de pena de 3 anos (o acórdão não esclarece qual foi o crime)[4]  e um acordão que o absolve de porte de arma.[5] Estas informações são aqui colocadas para que se tenha uma visão total da ocorrência, porém, como é evidente, não justificam o crime praticado de que foi vítima.

O vídeo viralizou na mídia e o fato tomou conta dos programas de TV, da mídia escrita e das redes sociais. Protestos contra o racismo, tomadas de posições, falas de autoridades, tudo em meio a forte emoção. Na filial do Carrefour em São Paulo "alguns manifestantes entraram na loja, quebraram produtos e causaram um princípio de incêndio, que foi controlado pelos próprios funcionários da empresa".[vi]

Os dois seguranças envolvidos foram presos preventivamente no dia seguinte.[7] Posteriormente, uma funcionária do Carrefour foi objeto de prisão temporária.[8]

A primeira observação diz respeito à notória diferença do tratamento do tema nos Estados Unidos e no Brasil. Naquele país o colonizador inglês ou irlandês não se unia aos escravos, criaram-se mundos distintos que geraram uma Guerra Civil, e a  conquista de espaços deu-se através de decisões da Suprema Corte e políticas assertivas, permanecendo uma separação que o tempo não curou.

No Brasil foi diferente. Aluísio de Azevedo, na obra "O Cortiço", entre outras coisas, narra as peripécias do português Jerônimo, casado com a portuguesa Piedade, homem disciplinado e trabalhador, que não resiste aos encantos da mulata Rita Baiana.[9] Este exemplo da mescla entre colonizadores e escravas, resultou um enorme contingente da população com raízes negras, muito embora muitos, disto, nem tenham conhecimento. E por isso, exatamente por isso, não existe um ódio racial como nos EUA.

No entanto, disto não decorre que aqui não exista racismo. Existe, sim, com certeza. Não como no passado. O racismo persiste, certamente em nível menor por conta da própria miscigenação e de forma mais velada. Precisa, por óbvio, ser combatido.

Vejamos os fatos à luz do Direito Penal.

Multiplicam-se os vídeos sobre a ocorrência. Um deles, mais completo, revela os fatos anteriores, que motivaram a chamada de seguranças. A vítima, sem opor resistência, estava sendo retirada do estabelecimento comercial, sob a vigilância dos dois seguranças. Na saída, porém, desfere um soco no que estava à sua direita e, em seguida, é dominada por ambos. Daí se segue uma luta em que ela foi colocada no chão.[10] A posição em que foi posta e a pressão sobre ela exercida, resultaram na sua morte por asfixia.[11]

A delegada de Polícia atribuiu aos dois acusados o crime de homicídio, pedindo que fosse decretada a prisão preventiva. O juiz de Direito de plantão ressaltou que a ação de ambos não se justificava pela agressão anterior e, decretando a prisão, observou que "não há como se afastar, de plano, o dolo homicida na conduta, pelo menos na sua forma eventual".[12]

Aí está o que será discutido. A denúncia, certamente, atribuirá aos acusados o crime de homicídio qualificado, argumentando que, no mínimo, o dolo foi eventual (artigo 121, § 2º, inciso III do Cód. Penal), com pena de 12 a 30 anos de reclusão. A defesa sustentará inexistência de dolo e, supletivamente, a possível existência do crime de lesão corporal seguida de morte, cuja pena é de 4 a 12 anos (artigo 129, § 3º, do Código Penal).

Mais complexa é a situação da agente de fiscalização do Carrefour que acompanhou os seguranças. A autoridade policial pediu sua prisão porque "No vídeo, a funcionária de camisa branca, calça preta e crachá pede para a testemunha interromper a gravação. 'Não faz isso, não faz isso senão vou te queimar na loja'".[13] A discussão jurídica terá como ponto central se, assim agindo, ela colaborou para que se consumasse um homicídio. A decisão dependerá das provas, se a conduta da funcionária ficou nesta frase ou se extrapolou, já que será impossível ingressar na sua mente e saber o que ela desejava.

Com respeito a eventual crime de racismo (preconceito de raça ou de cor), previstos na Lei 7.716, de 1989, até o presente momento não foi reconhecido pela autoridade policial.

Vejamos agora as consequências do ponto de vista civil.

A morte ocorreu com a participação de pessoas contratadas pelo Grupo Vector, empresa terceirizada trabalhando a serviço do Carrefour. A responsabilidade civil não suscita discussões, é evidente que o empregador responde por atos dos seus agentes (artigo 932, inciso III do Cód. Civil). Em casos de abordagem de segurança por suspeita de furto, a jurisprudência vem reiteradamente condenando os supermercados.[14]

Evidentemente, neste caso possivelmente haverá um segundo conflito, desta feita entre o Carrefour e a Vector. Mas é preciso lembrar que o artigo 929 do Código Civil dispõe no parágrafo único que "A mesma ação competirá contra aquele em defesa de quem se causou o dano (artigo 188, inciso I)".

Finalmente, há o aspecto preventivo. Atualmente as empresas não se limitam a cumprir a lei, há um consenso que lhes cabe a responsabilidade ambiental, social e de governança (ESG é a sigla em inglês). Na responsabilidade social, inclui-se uma política de respeito às diversas regras éticas e normativas existentes, entre elas a de bem capacitar os empregados para situações de emergência.

Ninguém desconhece que não é fácil administrar incidentes em supermercados e que as pessoas contratadas para tanto são de formação cultural média. No entanto, é preciso fazer tudo e mais um pouco para dar-lhes orientação para todos os tipos de situação, inclusive psicológica, para que saibam se conter no momento de ódio.

A encerrar, registra-se a louvável agilidade e discrição das autoridades envolvidas e a esperança de que a morte de João Alberto sirva para que situações semelhantes não se repitam.


[1] UFPR pode reservar vagas para negros e alunos do ensino público. Consultor Jurídico, 14/12/2004. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2004-dez-14/justica_autoriza_ufpr_reservar_vagas_negros. Acesso em 25/11/2020.

[3] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul TJ-RS – Apelação Crime : ACR 70078998200 RS, Relator Ingo Sarlet, j. 28/11/2018. Disponível em: https://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/665809837/apelacao-crime-acr-70078998200-rs/inteiro-teor-665809930. Acesso em 26/11/2020.

[4] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul TJ-RS – Agravo : AGV 70054770672 RS, Relator Aristides Albuquerque Neto, j. 20/6/2013. Disponível em:

https://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/113072861/agravo-agv-70054770672-rs/inteiro-teor-113072871. Acesso em 26/11/2020.

[5] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul TJ-RS – Apelação Crime : ACR 70038037784 RS, Relator Marcel Esquivel Hoppe, j. 22/9/2010.

[6] Agência Brasil. Protesto contra morte de João Alberto em SP tem princípio de incêndio. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-11/protesto-contra-morte-de-joao-alberto-em-sp-tem-principio-de-incendio. Acesso em 26/11/2020.

[7] https://www.topmidianews.com.br/geral/justica-decreta-prisao-preventiva-de-segurancas-pela-morte-de-negro-no/137870/

[8] Correio Braziliense, 19/11/2020. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2020/11/4890995-fiscal-do-carrefour-e-presa-e-sera-indiciada-por-homicidio.html

[9] Aluizio de Azevedo. O Cortiço. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1937.

[10] Globo.com. Rio Grande do Sul. Funcionária de supermercado abordada por João Alberto diz em depoimento que ele 'parecia estar furioso com alguma coisa. Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2020/11/22/funcionaria-do-supermercado-onde-joao-alberto-foi-morto-presta-depoimento.ghtml. Acesso em 26/11/2020.

[11] GZH Segurança. Perícia aponta asfixia como provável causa da morte de João Alberto Freitas. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/seguranca/noticia/2020/11/pericia-aponta-asfixia-como-provavel-causa-da-morte-de-joao-alberto-freitas-ckhqp3zsk006c01hxfummicsb.html. Acesso em: 7/11/2020.

[12] Hora do Povo. Justiça determina prisão preventiva de assassinos de João Alberto. Disponível em:

https://horadopovo.com.br/justica-determina-prisao-preventiva-de-assassinos-de-joao-alberto/. Acesso em 27/11/2020.

[13] Estadão. Polícia prende fiscal do Carrefour por envolvimento na morte de João Alberto. Disponível em: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,policia-prende-fiscal-do-carrefour-por-envolvimento-na-morte-de-joao-alberto,70003526788. Acesso em 27/11/2020.

[14] TJPR, Apelação Cível n.º 774095-0 8.ª Câmara Cível, Relator Juiz Substº de 2º grau Osvaldo Nallin Duarte, j. 28/6/2011. Disponível em: https://tj-pr.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/20205652/apelacao-civel-ac-7740950-pr-0774095-0/inteiro-teor-104847772. Acesso em 27/11/2020.

Autores

  • Brave

    é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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