Fundação Casa

Reduzir maioridade penal não significa colocar jovens no sistema prisional

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29 de novembro de 2020, 7h34

O governo de São Paulo nomeou, no início de outubro, o advogado criminalista e professor de Direito Penal Fernando José da Costa como novo secretário da Justiça e Cidadania do estado, substituindo Paulo Dimas Mascaretti. Com o cargo, Costa também assume a presidência da Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação Casa).  

Spacca

Em entrevista à ConJur, o secretário elogiou o trabalho de seu antecessor, disse que irá investir em inclusão digital e que pretende focar boa parte dos seus esforços na Fundação Casa (antiga Febem) e na divulgação de serviços gratuitos desconhecidos por parte da população de São Paulo. 

"Por ser advogado criminalista, ter feito pós-graduação em Direito Penal e por entender bem do assunto, vejo com muita preocupação o trabalho à frente da Fundação Casa e tenho muita vontade de fazer um bom trabalho. É um trabalho de valorização do servidor, daquelas pessoas que prestam um importante serviço de atenção aos jovens", afirma. 

O novo secretário já defendeu, em diversas ocasiões, a redução da maioridade penal para 16 anos. Disse, no entanto, que isso não significa que colocar jovens em penitenciárias seja o melhor caminho. Embora também tenha dito no passado não acreditar na reeducação dentro do cárcere — tanto para jovens quanto para adultos — , afirma que a ressocialização é muito mais fácil em um ambiente socioeducativo.

"Hoje é cientificamente impossível você sustentar que um adolescente — não só no Brasil, mas no mundo — não saiba que matar ou traficar é proibido. Ele sabe. Se ele sabe, ou nós mudamos o conceito de responsabilidade penal ou temos que encarar a realidade e responsabilizá-lo criminalmente. O fato de tornar alguém responsável por um determinado ato não significa que ele tem que cumprir a punição no sistema penitenciário. Eu não cheguei nesse estágio, até por verificar o importante trabalho que é feito na Fundação Casa."

A secretaria mantém relações institucionais com o Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Ordem dos Advogados do Brasil e instituições ligadas à cidadania e aos direitos humanos. Também propõe políticas públicas para promover o acesso à Justiça e a cidadania. 

Leia a entrevista na íntegra: 

ConJur — Quais são as suas principais metas na secretaria?
Fernando José da Costa —
A secretaria tem um trabalho institucional muito importante. Ela faz a ponte entre o governo e os poderes públicos: Judiciário, Ministério Público, OAB, Defensoria Pública, entre outros. Existe também a atuação voltada ao auxílio e orientação da população carente. Pretendemos dar continuidade a um trabalho que já era muito bem feito. Precisamos, no entanto, melhorar a inclusão digital, facilitando o acesso aos serviços prestados pela Secretaria. Há muitos serviços que são feitos e que as pessoas desconhecem. Um exemplo é o Centro de Integração da Cidadania (CIC). São dezenas de unidades e muitos pensam que o CIC é semelhante ao Poupatempo, mas não é isso. São feitos RGs, segunda via da certidão de nascimento, de óbito, carteira de trabalho, entre outros. Mas desempenha um trabalho social muito importante. Oferece, por exemplo, cursos de especialização e atividades físicas. Na pandemia, nós tivemos cursos de costura para a produção de máscaras. Participaram, entre outros, costureiras brasileiras e imigrantes. As pessoas que faziam o curso ainda recebiam R$ 1,20 por produção. Foram distribuídas mais de 120 mil máscaras. Também há o Conselho Tutelar, que faz um importante trabalho dentro do CIC, orientando famílias quando há conflitos envolvendo crianças e adolescentes; temos unidades do Procon dentro dos CICs; Defensoria Pública; e Juizado Especial de pequenas causas. A pessoa vai ao CIC e recebe orientação social e jurídica, considerando que muitas vezes ela desconhece os direitos que tem. Até o final do ano, teremos aplicativos para comunicar o trabalho feito pela secretaria. A pessoa poderá saber o que precisa levar para fazer seus documentos. Ela poderá agendar o dia e o horário de atendimento, para não ficar esperando. Também terá um chat, para comunicação online. 

ConJur — O senhor disse que pretende priorizar a Fundação Casa. Por quê?
Costa —
Porque na secretaria temos aproximadamente 200 funcionários. Já na Fundação Casa há quase 13 mil funcionários e 134 centros que cuidam de aproximadamente 5 mil crianças e adolescentes — os chamados "jovens", que ali recebem medidas socioeducativas, semiliberdades e liberdade assistida. Na pandemia, as semiliberdades foram substituídas, por determinação do Judiciário. Tais medidas são hoje cumpridas nas residências. Por ser advogado criminalista, ter feito pós-graduação em Direito Penal e por entender bem do assunto, eu vejo com muita preocupação o trabalho à frente da Fundação Casa e tenho muita vontade de desempenhar bem a minha função. É um trabalho de valorização do servidor, daquelas pessoas que prestam um importante serviço de atenção aos jovens.

Na fundação também queremos fazer um trabalho de inclusão digital. Queremos mudar um pouco a pedagogia, sem deixar de lado ou desvalorizar o que já existe, mas estimulando as atividades do futuro. É um ponto delicado e que precisa ser muito bem tratado. Cerca de 50% dos adolescentes que lá se encontram cumprem medidas pelo ato infracional de roubo. No caso do tráfico de drogas, são 34%. Assim, nós temos 85% relacionado ao tráfico e ao roubo. Isso significa que a grande movimentação desse tipo de crime é a falta de dinheiro e de oportunidade de trabalho. Segundo estudos, 50% dos reincidentes cometem infrações nos primeiros seis meses [após estarem em liberdade]. Isso acontece por causa da falta de auxílio do estado. A ajuda por meio de cursos reduziria essa margem em aproximadamente 15%. Haveria redução de mais 15% por meio do apoio pedagógico, da simples orientação. Com isso em vista, estamos investindo, em 2021, R$ 2,4 milhões. O valor vem de um fundo criado por meio de emendas parlamentares. Estamos fazendo um pregão. Queremos ajudar os jovens depois que eles deixarem a Fundação, dando assistência inclusive para o pagamento de transporte, para que eles possam fazer entrevistas de emprego. Queremos dar vestimenta e todo tipo de incentivo para que eles se coloquem na sociedade e não voltem a praticar atos infracionais. 

ConJur — Não há dados recentes sobre reincidência. Continua em torno de 22%?
Costa —
Sim, aproximadamente. Mas temos também os índices de agressões aos adolescentes e de indisciplina dentro da Fundação Casa. Eles são baixos. O trabalho que está sendo feito há muitos anos é bom. Mas o mundo mudou. Os hábitos e costumes estão mudando muito rapidamente e mudaram também com a pandemia da Covid-19. A gente precisa estar em proximidade com isso, principalmente porque a Fundação trata de jovens, de pessoas que erraram, mas que estão pagando pelos seus erros. Muitas vezes, esses erros não são ocasionados por culpa exclusiva deles, mas por culpa da sociedade, do local em que habitam, por usos e costumes, problemas familiares. Eles merecem uma nova chance, uma nova oportunidade. 

ConJur — Como estão os casos de coronavírus na fundação? 
Costa —
Desde o início da pandemia a Fundação Casa segue as diretrizes do Centro de Contingência, formado pelo governo de São Paulo. Ela também respeita as diretrizes da Organização Mundial da Saúde. Desde o início foram suspensas as visitas presenciais, mas foram muito estimuladas as visitas online. Então os familiares continuam tendo contato com os adolescentes, por meio da videoconferência, de WhatsApp, de mensagens, cartas, telefonemas, entre outros. Muitos preferem esse tipo de contato, porque podem ver as famílias dentro de suas casas. Eles acabam se sentindo mais próximos do lar, vendo seus quartos, a sala, os animais domésticos. Medidas de contenção também foram tomadas, como a distribuição de máscaras, álcool em gel e o isolamento. Todos os servidores do grupo de risco foram retirados dos centros e desempenham suas funções de casa. Quando um adolescente chega, ele fica 14 dias em isolamento. São realizados os testes nos jovens e nos servidores para verificar se eles estão contaminados. Não tivemos nenhuma grande infecção porque tomamos rapidamente todas as medidas necessárias. 

ConJur — Advogados, Defensoria e o próprio Ministério Público dizem que SP tem juízes muito punitivistas nas Varas da Infância e da Juventude e que as internações de jovens, que deveriam ser excepcionais, acabam se tornando quase uma regra. O senhor também tem essa percepção?
Costa —
Não tenho. No Judiciário, Ministério Público, advocacia e Defensoria há pessoas mais liberais e pessoas mais rígidas, mas não tenho uma imagem punitivista com relação aos juízes. O relacionamento que a secretaria tem com o Tribunal de Justiça de São Paulo em temas relacionados às crianças e adolescentes é muito bom, de muita transparência. Eles sabem da importância que a Fundação Casa tem, sabem da importância do Judiciário na aplicação ou não das medidas socioeducativas e quais são as finalidades dessas medidas: educar, conscientizar, preparar o jovem para uma nova etapa da vida. Assim, não vejo essa tendência punitivista. 

ConJur — Como a secretaria combate a homofobia e a discriminação racial?
Costa —
 Temos a Coordenadoria de Política da Diversidade Sexual; Coordenadoria de Política da Mulher; Coordenadoria de Política da População Negra; da População Indígena; e da Defesa da Cidadania. Todas elas desempenham uma função de conscientização, de esclarecimento sobre os direitos que a sociedade possui. Há um trabalho também de combate à LGBTfobia, combate à discriminação de portadores de HIV, entre outros. No caso da Coordenadoria de Política da Diversidade Sexual, desde o início de 2016 nós já tivemos mais de quinhentos processos. São processos administrativos julgados por uma Comissão Especial que trata de assuntos ligados às várias formas de discriminação. Do começo para cá tivemos cerca de 150 punições, que podem ser aplicadas contra pessoas físicas e pessoas jurídicas. Em alguns casos as multas podem chegar a até R$ 83 mil. No caso de pessoas jurídicas, a punição pode ser, inclusive, a suspensão da atividade perante o estado. Também há uma parceria com o Judiciário que tem como objetivo mediar conflitos entre o infrator e o ofendido. Caso não haja acordo, começa um processo administrativo que pode redundar em absolvição ou em condenação. Isso não significa que as pessoas não podem buscar o Poder Judiciário. Mas é uma saída para não judicializar conflitos. 

ConJur — Para além dessas medidas conciliatórias, como a secretaria pretende ampliar o acesso à Justiça?
Costa —
Um dos eixos é a inclusão digital. Isso vem sendo feito progressivamente com a digitalização. Assim, todas as partes conseguem ter acesso aos autos, podem participar dos processos peticionando e requerendo pleitos. Teleaudiências estão sendo feitas na Fundação Casa. O governador João Doria é um defensor da teleaudiência. Quando uma audiência é feita presencialmente, é necessário força policial e transporte. Muitas vezes a audiência não ocorre porque faltou uma testemunha ou outro acusado. Hoje, com o uso da tecnologia, você consegue fazer o mesmo trabalho sem esse tipo de custo e sem lentidão. Se conversarmos com os presos ou com os adolescentes da Fundação Casa, a grande maioria diz que prefere a teleaudiência. Por outro lado, para ampliar o acesso à justiça é necessário aumentar a quantidade de funcionários públicos, de defensores públicos e, talvez, de servidores, juízes e promotores. Mas o orçamento do estado evidentemente tem as suas limitações.

ConJur — O senhor já se posicionou algumas vezes em favor da redução da maioridade penal para 16 anos. Mantém essa posição?
Costa —
Eu sempre defendi a redução da maioridade penal. No momento em que a pessoa sabe o que é certo e o que é errado, ela tem que ser responsabilizada. Em 1940, quando foi criado o nosso Código Penal vigente, se entendia que o menor de 18 anos não tinha amadurecimento suficiente para entender o que era correto ou incorreto, então ele era considerado inimputável e não respondia por seus atos. É claro que de 1940 para 2020 isso mudou. Eu continuo entendendo que os adolescentes com 16 e 17 anos sabem que matar, por exemplo, é errado. Aqueles que não têm esse amadurecimento são inimputáveis, mesmo com 20, 40 ou 50 anos. Pessoas que têm um problema mental, que não conseguem perceber que praticar uma conduta ilícita é errado, elas não têm motivo para sofrer uma punição, essa é a linha de raciocínio. 

Por outro lado, eu nunca invadi o tipo de punição que as pessoas precisam ter. Esse é um ponto, e eu vejo agora, presidindo com muita honra a Fundação Casa, que deve ser mais bem discutido. Na fundação, os jovens iniciam uma medida socioeducativa que pode ter até três anos de duração. Com isso, eles podem ficar na Fundação até os 20 anos [caso tenham começado a cumprir a medida com 17 anos]. Eu posso defender que as pessoas são responsáveis pelos seus atos e, ao mesmo tempo, que elas podem receber medidas socioeducativas até 21 anos, ou penas em estabelecimentos diferenciados. Vou usar a lei de drogas como exemplo. Usar droga é crime, muitas pessoas não sabem que fumar maconha é uma conduta criminosa. Só que, para o usuário, não tem pena de prisão. As penas são alternativas, de advertência, medida socioeducativa, realização de cursos, comparecimento a palestras ou prestação de serviços à sociedade. O ponto que eu defendo é: nós temos os adolescentes e o Poder Judiciário, mas também temos a sociedade como um todo e as vítimas dos atos infracionais. Não é fácil o estado responder aos últimos que a pessoa que praticou determinado ato infracional não vai responder criminalmente. Eu preferia dizer e responder como estado: "Essa pessoa vai responder pelo seu ato, ela era capaz, era madura e vai responder pelo seu ato". Aqui há a separação: o usuário vai responder pelo seu ato. A segunda etapa é definir a punição.

O fato de tornar alguém responsável por um determinado ato não significa que ele tem que cumprir a punição no sistema penitenciário. Eu não cheguei nesse estágio, até por verificar o importante trabalho que é feito na Fundação Casa. Eu poderia amanhã defender — e isso eu quero fazer com mais amadurecimento — que todos os jovens de até 21 anos cumpram medidas socioeducativas, já que o tratamento é muito positivo e o índice de reincidência é muito baixo. Hoje é cientificamente impossível você sustentar que um adolescente — não só no Brasil, mas no mundo — não saiba que matar ou traficar é proibido. Ele sabe. Se ele sabe, ou nós mudamos o conceito de responsabilidade penal ou temos que encarar a realidade e responsabilizá-lo criminalmente. 

ConJur — O senhor disse, em entrevista dada à TV Record em 2015, que "o sistema prisional não reeduca, nem o menor nem o maior". Como equacionar essa posição com o fato de que o senhor preside uma instituição socioeducativa?
Costa —
O índice de reincidência do menor é muito baixo, porque enquanto nós temos mais de 250 mil pessoas presas no sistema prisional de São Paulo — falando de adultos —, há cerca de 5 mil menores recebendo medidas socioeducativas. Desses, 400 estão em semiliberdade e hoje se encontram em casa. Antigamente você tinha poucos centros com muitos adolescentes. Hoje você tem mais centros, com poucos adolescentes. A ocupação da Fundação Casa hoje é em média de 50% a 60%. Assim, há um tipo de trabalho muito mais intenso com o menor do que com o adulto. Eu consigo dizer que é muito mais fácil você acreditar na ressocialização na Fundação Casa do que no sistema penitenciário. Falando agora dos adultos, com menos prisões, com menos presos e uma quantidade razoável de agentes, vai ser muito mais fácil de acreditar na ressocialização. Também não podemos confundir a realidade de cinco anos atrás com a realidade de hoje. O comandante da Secretaria de Administração Penitenciária, Nivaldo Cesar Restivo, é uma pessoa muito interessada no assunto, que tem conhecimento das dificuldades e dos desafios. Sem dúvida nenhuma, eu consigo te dizer que se esse programa continuar, em dez anos nós teremos uma significativa redução da reincidência nos sistemas prisionais. E eu vou poder dizer a você e à sociedade que eu acredito na ressocialização dentro do sistema prisional brasileiro.

ConJur — Sua defesa da diminuição da maioridade penal se dá, em parte, por acreditar que a pena intimida o infrator. Penas mais duras diminuem a criminalidade?
Costa —
O fator intimidativo é pequeno. Estudos apontam que muitas pessoas praticam atos infracionais ou crimes por acreditaram que não serão pegos e que não terão que responder pelos seus atos. Esse é um problema que existe há décadas. 

ConJur — Jovens irão votar nas eleições municipais. Essa medida ocorre dentro da própria Fundação Casa. Como aconteceu isso?
Costa —
A Fundação realiza uma importante campanha para que os jovens que cumprem medidas socioeducativas saibam da importância da sua participação política na sociedade. A partir dos 18 anos a votação é obrigatória. Dos 16 aos 18, é facultativa e ocorre na Fundação Casa. Temos 359 jovens inscritos para a votação. Por tal motivo, estamos organizando cursos, debates e instruções para que eles entendam o papel do prefeito, do vice-prefeito e dos vereadores.

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