Embargos Culturais

"Um defeito de cor", de Ana Maria Gonçalves

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

29 de novembro de 2020, 8h00

Spacca
Em 1844, o Instituto Histórico e Geográfico do Brasil lançou concurso com o objetivo de premiar projeto sobre como se deveria escrever a História do Brasil. Karl Friedrich von Martius venceu a contenda. O naturalista alemão submeteu à comissão julgadora uma dissertação, argumentando que a História do Brasil deveria se centrar no encontro entre índios, portugueses e africanos. O sábio, no entanto, enfatizava a preponderância do europeu. Afirmava que “o sangue português, em um poderoso rio, deverá absorver os pequenos confluentes das raças índia e etiópica”. Imputava uma inferioridade a índios e africanos. Elogiava entradas e bandeiras.

A proposta de von Martius é passo fundante de um ponto de vista historiográfico infelizmente dominante. Uma interpretação de fundo racial, que Lilia Schwartz analisou, em “O espetáculo das raças”. Trata-se do papel de cientistas e instituições na construção do discurso racial no Brasil. Nossa história expressa-se como narrativa de conquista e de imposição, embalada por um imaginário heroísmo português. Essa construção ideal do passado é endossada pelos destinatários da fábula. É uma história de conquista europeia. Os conquistados acreditaram. Mas há quem conteste. Também quero contestar.

O rompimento radical com esse paradigma é o ponto central de “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves. Trata-se de romance com consistência técnica e criativa que justifica atenção e tempo para suas quase mil páginas (947, para ser exato). A autora (que é mineira, é de Ibiá) nos apresenta uma bem fundamentada História do Brasil, sob a visão do escravizado. É a versão do dominado. A autora não se rende à vitimização ou à pieguice. É um livro forte. Um livro que conta uma história forte. Narrado em primeira pessoa, por quem sabe do que e de quem está falando. Seguindo a recomendação de uma colega[1], me entusiasmei com o livro, mas me intimidei com a extensão. Rendi-me. Por uma semana, acordei mais cedo e dormi mais tarde. Valeu a pena. Vivi uma experiência estética e moral inigualável. Recomendo.

“Um defeito de cor” é a história de Kehinde, que nasceu no Daomé, em 1810. Tem uma irmã gêmea. Falava iorubá. A família foi violentada. Com a avó e com a irmã, foi para o litoral. Capturada, ameaçada por guardas violentos que carregavam lanças e tochas, viu-se escravizada. A narrativa da viagem é de derrubar. Ana Maria Gonçalves escreve com precisão: “O tumbeiro apitou e partiu pouco tempo depois que paramos de ouvir barulhos na parte de cima, quando acabaram de acomodar todos os homens”. A narradora estava com a avó e com a irmã gêmea. Consta-nos que “vistos do alto, devíamos estar parecendo um imenso tapete, deitados no chão sem que houvesse espaço entre um corpo e outro, um imenso tapete preto de pele de carneiro”.

Calor, sufoco, fome, sede, humilhação. Era o vômito, o corpo contra o chão duro, molhado, frio. Um homem quebrou a perna numa escada, os ossos se destacavam, rasgando a pele. Os escravos eram batizados. O religioso que cuidava da salvação das almas do navio distribuía nomes, pelos quais os violentamente convertidos seriam conhecidos no porto de chegada. Doentes eram retirados dos porões e jogados ao mar. Havia negros que se faziam de brancos, que se achavam brancos, e que agiam com a violência dos brancos. Eram os capatazes.

O livro é uma enciclopédia de temas africanos, que nosso cânon historiográfico negligencia. Estudamos as guerras médicas, ou a batalha de Argel, ou as investidas de Nabucodonosor, ou a guerra dos 30 anos, ou a derrota de Pirro, ou César no Egito, ou a captura de Joana D’Arc, mas não nos preocupávamos com o contexto africano e com a diáspora do sofrimento. A autora nos aproxima de Iemanjá, Oxum, Exu, Ogum, Xangô, e outros eguns. Na mesma página faz menção a vários grupos distintos, a exemplo dos jejes, fons, hauçás, igbos, fulanis, maís, popos, tapas, achantis e egbás. Em generosas notas de rodapé explica esse mundo fascinante. No navio, muçulmanos oravam as cinco preces diárias, desconcertados (creio) buscando um horizonte de Meca, para onde deveriam se voltar.

Desembarcaram no Brasil. A narradora apresenta o mercado. Há pormenorizada descrição da venda, e da primeira chibatada. Machuca, só de ler. No Brasil, a narradora passou a ser chamada de Luísa. Essa identificação com a mãe do abolicionista Luís Gama é uma das chaves interpretativas desse impressionante livro. Luís Gama foi vendido como escravo, aos 17 anos. Triunfou como grande advogado e abolicionista fundamental. Luísa serviu à sinhazinha, Ana Felipa. Em “Um defeito de cor” tem-se número expressivo de personagens. Há o “sinhô” José Carlos, marido da sinhazinha, que violentou Luísa, bem como a um negro que pretendia proteger a violentada. Pareceu-me a cena mais forte do livro. Luísa engravidou. Nasceu-lhe um primeiro filho. A narradora, em forma de vingança, conta-nos o fim de José Carlos.

Luísa viveu inicialmente na Ilha de Itaparica. Da senzala, visitou Salvador. Descreve com muita realidade o Palácio do Governo, a Cadeia Pública, a Casa da Moeda, a Câmara Municipal, o Paço da Catedral, a Ordem Terceira de São Francisco, o Largo do Pelourinho. Conta-nos a agitação da independência na Bahia. Coloca-nos um problema historiográfico central: o que os escravos poderiam comemorar com a escravidão? Qual o sentido do sete de setembro para quem estava na senzala? O leitor avisado não pode se esquecer que a Bahia resistiu ao grito de D. Pedro, que houve guerra, que houve uma figura de destaque, a Sóror Joana Angélica, que enfrentou soldados, ameaçando-os com firmeza: “Parai aí senhores soldados! Antes de cumprirdes os vossos pérfidos desígnios tereis que passar sobre o meu cadáver!”. A guerra da Bahia é o tema do heroico “Dois de julho”, verso com o qual se abre o Hino da Bahia, e que também é tema de ode de Castro Alves. 

Com a morte patrão que  violentou a então escrava passou a viver em Salvador, onde ganhou a vida (e a alforria, que comprou) trabalhando como escrava de ganho. Vendia cookies. O modo presenteísta como a autora coloca os cookies, torna a narrativa tão próxima de nossos tempos. Ganha verossimilhança. Luísa passou a viver com um comerciante português, de quem teve um filho. O mais forte da história segue a partir do desaparecimento do menino. Toda a vida de Luísa parece ser a busca do rapaz, que a exemplo de Luís Gama, teria sido vendido pelo pai. Esteve em São Luís, no Rio de Janeiro, onde andou pela Rua do Ouvidor e pelo Morro do Castelo. Viu capoeiras. Descreve as máscaras de ferro com as quais se reprendiam escravos que bebiam. Esteve em São Paulo, em Santos, em Campinas.

Trinta anos depois de ter aportado no Brasil, e agora em outra condição, retornou para a África. Percebeu que era tratada como “brasileira”. Foi até o Lagos. Retornou para o Brasil. Ao longo da narrativa revê-se sob prisma enriquecedor a história brasileira do século XIX. A Revolta dos Malês, ocorrida em 1835, com a participação também de escravos de religião muçulmana, é descrita com pormenores. Ao que consta, “malês” decorria de uma forma de se falar “imalê”, que em ioruba faz referência a “muçulmano”. O argumento central do livro, do ponto de vista da origem e da sustentação da narrativa, pode ser associado à participação de Luísa nesse importante movimento social que agitou a Bahia.

O título do livro, “Um defeito de cor”, decorre de prática burocrática comum do Brasil colonial. Negros interessados na obtenção de privilégios e de graças, do Estado ou do Clero, a exemplo de ordens sacerdotais, precisavam requerer dispensa de consideração de cor, como condição para fruição do favor. O requerente indicava, assim, um “defeito” em sua condição originária, cuja descaracterização era fundamental para a mobilidade social, nesse sentido negociada.

Se alguma classificação for possível pode-se pensar “Um defeito de cor” como uma autobiografia ficcional, com fortíssimos ingredientes de informação histórica. No prólogo do livro e em riquíssimas entrevistas e intervenções (há uma palestra de Ana Maria Gonçalves na Academia Brasileira de Letras disponível no youtube) a autora explica-nos a noção de “serendipidade”, enquanto motor explicativo do livro, do esforço, do estudo e da empreitada.

Com origem no inglês (serendipity) a expressão teria sido primeiramente usada por Horace Walpole, significando as descobertas que fazemos, inesperadamente, quando outras coisas buscamos. A autora conta que buscava um livro em uma livraria – estava em São Paulo – e que literalmente lhe caíra um livro de Jorge Amado, um roteiro sentimental das ruas de Salvador. Em uma passagem, o grande mestre de nossa literatura desafiava: “(…) não tenhas, moça, um minuto de indecisão. Atende ao chamado, e vem”.

Foi o que mudou a vida de Ana Maria Gonçalves, que logo em seguida estava em Itaparica, e depois em Salvador. Vários anos de pesquisas e de sucessivas redações. O livro ganhou prêmios, inclusive o prestigiadíssimo Casa de las Américas. A autora é engajada, militante, tem posições firmes. Temos muito que aprender com seu livro: técnica literária, estruturas narrativas, composição de personagens, História do Brasil e da África e, principalmente, uma nova forma de nos compreendermos.


[1] Devo a recomendação a Renata Fernandes Barroso, colega na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional em Brasília, leitora compulsiva.

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