Opinião

Os recursos repetitivos e a maturidade da controvérsia no STJ

Autores

29 de novembro de 2020, 7h12

Segundo o artigo 1.036 do Código de Processo Civil, é requisito para a afetação de recursos especiais (ou extraordinários) à sistemática dos repetitivos a multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito. Em outras palavras, a matéria de direito sobre a qual o tribunal superior firmará tese vinculante (artigo 927, III, CPC) deve estar efetivamente espraiada nos tribunais locais. Trata-se de uma aferição quantitativa.

Até então, nenhuma novidade. Apenas se repetiu a letra da lei.

O interessante, contudo, é notar que, ao lado desse requisito meramente quantitativo, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça tem caminhado para a adoção de critérios com contornos qualitativos que buscam refinar a seleção de controvérsia para a adoção do rito dos repetitivos.

O debate mais aprofundado sobre essa sistemática remonta à Proposta de Afetação do Recurso Especial nº 1.686.022/MT, quando, no fim de 2017, os ministros identificaram que a matéria objeto daquele apelo havia sido enfrentada, de forma colegiada, apenas uma única vez no tribunal.

Por esse motivo, o ministro Luis Felipe Salomão, que inaugurou a tese vencedora, julgou que o tema não estava suficientemente discutido no tribunal, já que não havia entendimento amadurecido sobre a matéria. Nessa situação, considerou que seria temerário atribuir à controvérsia os efeitos de repetitivo. Da mesma forma, o ministro Marco Aurélio Bellizze, ao endossar esse entendimento, ressaltou ser imprescindível um amadurecimento da questão jurídica nas turmas do tribunal antes de pronunciamento vinculante [1].

Desde então, a jurisprudência da 2ª Seção tem caminhado para uma triagem mais criteriosa na escolha de recursos e controvérsia que darão ensejo à formação de tese vinculante.

O próprio ministro Marco Buzzi, que havia ficado vencido no julgamento aqui mencionado, tem esclarecido que a submissão de uma matéria ao rito dos repetitivos exige processos com um exame qualificado da controvérsia, o que se dá, entre outros meios, por intermédio da sustentação oral dos advogados das partes [2]. Em sua visão, somente assim se alcança a abrangente e ampla argumentação de que trata o artigo 1036, §6º, do CPC [3].

Essa postura também tem sido bem pontuada pela ministra Nancy Andrighi. Em prestígio à segurança jurídica, a ministra tem ressaltado que deve ser demonstrada a maturidade do debate nas 3º e 4ª Turmas antes da afetação, "a fim de que todos os fatores envolvidos no exame da controvérsia sejam apreciados em sua correta amplitude" [4]. Por isso, a ministra aponta que a 2ª Seção adotou o posicionamento de somente afetar ao rito dos recursos repetitivos os temas que já tenham sido objeto de jurisprudência firme e consolidada nas turmas [5].

A nosso ver, é salutar que, ao lado de requisitos quantitativos, a jurisprudência do STJ sedimente também requisitos qualitativos para a submissão de recursos ao rito dos repetitivos. Daí a ideia de exigir a maturidade da controvérsia. A submissão ao rito dos recursos repetitivos exige a prévia reflexão do tribunal sobre a matéria, para que todas as nuances estejam bem debatidas, sob pena de que pontos sensíveis da controvérsia escapem à análise da corte.

A maturidade da controvérsia comporta feições objetivas e subjetivas. De um lado, como critério aferido de forma objetiva, há de se considerar a existência do exame qualificado mencionado pelo ministro Marco Buzzi: julgamentos presenciais com sustentações orais dos advogados das partes e, preferencialmente, a participação de entidades da sociedade civil, na qualidade de amici curie (que, no novo CPC, não mais se limitam a participar de processos objetivos). De outro, também pressupõe um exame subjetivo, com base na profundidade das discussões sobre a matéria ocorridas na corte.

Por certo, não é possível tratar a afetação de recursos à sistemática dos repetitivos apenas com critérios quantitativos, de mensuração fácil e imediata. Nem é assim que a lei rege o tema. A possibilidade de que haja certa margem de discricionariedade na seleção da controvérsia encontra respaldo não apenas no referido artigo 1.036, §6º, do CPC, mas também no regimento interno do STJ, segundo o qual poderá ser rejeitada a afetação de recurso cuja matéria não for apta ao julgamento repetitivo (artigo 256-F, §4º).

É lícita, portanto, e bem-vinda, a existência de alguma discricionariedade na escolha dos repetitivos. O que, vale dizer, não é estranho no mundo jurídico, especialmente quando se trata de tribunais superiores — a que por vezes é dada certa margem de escolha dos processos que serão submetidos a seu julgamento. É o que ocorre, por exemplo, com o conhecido writ of certiorari, principal mecanismo processual pelo qual a Suprema Corte americana seleciona os casos que irá julgar. Isso permite que a corte escolha e concentre esforços nas matérias mais sensíveis ao momento, o que também pode se mostrar benéfico ao STJ.

Em síntese, a postura de não afetação ao rito de repetitivos, quando ainda pendente um amadurecimento necessário da controvérsia, é positiva. Com isso, preservam-se a segurança jurídica e a cautela, ao passo em que se permite que a questão seja analisada a partir dos mais diferentes matizes e ângulos, os quais vêm à tona com a progressiva análise de novos casos concretos.

 


[1] STJ, ProAfR no REsp nº 1.686.022/MT, rel. min. Marco Buzzi, Red. p/ acórdão min. Luis Felipe Salomão, 2ª Seção, j. em 28/11/2017, DJe 5/12/2017.

[2] STJ, REsp nº 1.822.420/SP, rel. min. Marco Buzzi, j. em 16/12/2019, DJe 18/12/2019.

[3] "Art. 1.036. (…) § 6º Somente podem ser selecionados recursos admissíveis que contenham abrangente argumentação e discussão a respeito da questão a ser decidida."

[4] Voto da min. Nancy Andrighi em STJ, ProAfR no REsp nº 1.836.823/SP, rel. min. Moura Ribeiro, 2ª Seção, j. em 18/2/2020, DJe 21/2/2020.

[5] Voto da min. Nancy Andrighi em STJ, ProAfR no REsp nº 1.818.487/SP, rel. min. Antonio Carlos Ferreira, 2ª Seção, j. em 29/10/2019, DJe 5/11/2019.

Autores

  • Brave

    é professor adjunto de Direito Administrativo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor e mestre em Direito Público pela Uerj e Master of Laws pela Yale Law School (EUA).

  • Brave

    é advogado associado do escritório Binenbojm & Carvalho Britto Advocacia.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!