Opinião

A reforma administrativa e o devido processo legislativo

Autores

  • Bruno Fischgold

    é sócio do escritório Fischgold Benevides Advogados e representa os integrantes da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público no Mandado de Segurança nº 37.488 em tramitação no Supremo Tribunal Federal.

  • Larissa Benevides

    é sócia do escritório Fischgold Benevides Advogados e representa os integrantes da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público no Mandado de Segurança nº 37.488 em tramitação no Supremo Tribunal Federal.

  • Ana Sylvia Pinto Coelho

    é sócia do escritório Fischgold Benevides Advogados e representa os integrantes da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público no Mandado de Segurança nº 37.488 em tramitação no Supremo Tribunal Federal.

28 de novembro de 2020, 6h05

No dia 3 de setembro deste ano, o Poder Executivo apresentou ao Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional nº 32/2020, que visa a alterar diversos dispositivos que regem a estrutura administrativa do Estado brasileiro. Desde que foi apresentada, a reforma administrativa vem despertando intensas discussões, porquanto sua aprovação impactará significativamente tanto a realidade profissional dos servidores públicos quanto a vida dos usuários de serviços públicos. A guerra de narrativas sobre o tema, que já era intensa, assumiu dimensão inédita, com a disponibilização de pesquisas com resultados díspares acerca do tamanho do aparato estatal, das distorções existentes, dos indicadores de eficiência, entre outros.

Trata-se de debate absolutamente necessário e indispensável ao exercício da soberania popular, que se realiza em diferentes fóruns. Não se pode esquecer, todavia, o protagonismo do Poder Legislativo no estágio atual da discussão e, nesse sentido, a importância da obtenção de documentos, dados e estatísticas oficiais com as quais os parlamentares precisam contar para exercer o mister legislativo com a qualidade que se espera. De fato, é sempre importante reconhecer a relevância da participação política dos atores não estatais na construção da solução legislativa, mas a institucionalização do Direito exige também uma dose significativa de institucionalização da informação. Dados oficiais importam muito quando se deseja mudar tão radicalmente o funcionamento da Administração Pública.

Tais premissas revelam-se essenciais na análise do direito dos parlamentares ao devido processo legislativo na discussão da reforma administrativa. Ainda que as cláusulas do devido processo tenham significativo grau de abstração e generalidade — especialmente quando se trata da qualidade do procedimento de criação das normas —, é inegável que somente estarão preservadas na deliberação parlamentar quando todas as informações relevantes estiveram disponíveis para problematizações, questionamentos, comparações e validações. Não por acaso, a Constituição Federal, no seu artigo 60, §2º, estabelece que a proposta de emenda constitucional será discutida e votada.

Evidentemente, uma reforma com a dimensão da apresentada pelo governo federal foi construída com base em diversos pareceres, estudos, manifestações jurídicas, cálculos atuariais. O ministro da Economia, por exemplo, afirmou na Exposição de Motivos nº 00047/ME que a emenda não acarreta impacto orçamentário-financeiro imediato, mas que "no médio e no longo prazos, inclusive, poderá resultar na redução dos gastos obrigatórios, possibilitando incremento nas taxas de investimento público no país". Em manifestações públicas, inclusive dirigidas a parlamentares, estimou entre R$ 300 bilhões e R$ 500 bilhões a economia para os cofres públicos ao longo de dez anos. Decerto, tais números não foram criados pelo ministro da Economia, mas, sim, decorrem de estudos da equipe ministerial.     

Nesse cenário, chama a atenção a resistência do governo federal em apresentar os documentos que embasaram a proposta de reforma administrativa. Desde que a PEC nº 32/2020 foi apresentada, cidadãos, órgãos de imprensa e parlamentares tentam acesso às informações que, pela própria natureza administrativa, estão concentradas nos órgãos do Poder Executivo, notadamente no Ministério da Economia. Não obstante a clareza da Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011), invocada repetidas vezes, subsistem dúvidas acerca do grau de transparência com o qual vem se trabalhando.

Inicialmente, o Ministério da Economia alegou que os documentos que embasaram a PEC nº 32/2020 eram sigilosos por terem natureza preparatória. Afirmou, assim, que somente seriam divulgados depois de concluídos os trabalhos parlamentares. O argumento era tão frágil que foi logo abandonado. A estratégia seguinte foi a de apresentar alguns documentos produzidos, bem como a criação, em 22 de outubro, de página eletrônica no próprio portal institucional do Ministério da Economia, onde, supostamente, a matéria seria tratada com a publicidade exigida. A análise dos documentos apresentados, todavia, revela que o problema não foi resolvido. Além de processos administrativos mencionados não estarem na documentação divulgada, não há, por exemplo, nenhum demonstrativo do tão falado impacto orçamentário e financeiro estimado pelo Poder Executivo.

Ora, é evidente que os parlamentares não podem analisar e discutir a PEC nº 32/2020 sem acesso a todos os pareceres, estudos e manifestações que embasaram a proposta. O acesso à informação é elemento base do devido processo legislativo. Daí a importância da atuação da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público, que vem cobrando a suspensão da tramitação da PEC nº 32/2020 enquanto os deputados e os senadores responsáveis pela definição do funcionamento do aparato estatal brasileiro nos próximos anos não tiverem, em mãos, todas as informações necessárias à discussão adequada da matéria.

A máquina administrativa é cara e ineficiente? O número de servidores cresceu descontroladamente nos últimos anos? O gasto com pessoal em relação ao PIB é o maior da história? Tais perguntas devem ser respondidas pelo Parlamento, mas, para tanto, o Executivo precisa dar a sua parcela de contribuição. Sem esta, caberá ao Poder Judiciário intervir e proteger as regras do jogo deliberativo democrático.

Vale recordar que, quando o Supremo Tribunal Federal apreciou a publicação de biografias não autorizadas, a ministra Cármen Lúcia reafirmou o direito à liberdade de expressão com o inesquecível "cala a boca já morreu". Talvez este seja o momento de a Suprema Corte decretar a morte do pique-esconde por sua manifesta incompatibilidade com a ordem constitucional brasileira.

Autores

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    é sócio do Torreão Braz Advogados, mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB e autor do livro Direito Administrativo e Democracia – A Inconstitucionalidade do Princípio da Supremacia do Interesse Público.

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    é sócia do escritório Fischgold Benevides Advogados e representa os integrantes da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público no Mandado de Segurança nº 37.488, em tramitação no Supremo Tribunal Federal.

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    é sócia do escritório Fischgold Benevides Advogados e representa os integrantes da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público no Mandado de Segurança nº 37.488, em tramitação no Supremo Tribunal Federal.

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