Opinião

Leis inconstitucionais produzem efeitos? O caso adverso da Lei dos Puxadinhos no Rio

Autor

  • Sonia Rabello

    é jurista professora colaboradora do Lincoln Institute of Land Policy (EUA) no Programa de Capacitação para América Latina ex-procuradora-geral do município do Rio de Janeiro e professora titular na FDir/UERJ (aposentada).

27 de novembro de 2020, 19h48

Durante as duas últimas semanas, a Secretaria de Urbanismo da Prefeitura do Rio vem publicando inúmeros despachos de aceitação de valores para conferir licenças de edificações com base na Lei dos Puxadinhos, apesar de esta lei já ter sido suspensa por inconstitucionalidade pelo órgão especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, na sessão do último dia 9. Ainda assim, só após essa decisão do tribunal já contabilizamos mais de 130 deferimentos publicados.

É uma aposta meio enlouquecida, tanto da prefeitura quanto dos interessados; e, certamente, a prefeitura alegará que continua despachando os pedidos de licença por não ter sido ainda intimada da decisão, apesar de seu representante legal ter estado na audiência e ouvido pessoalmente a sentença da corte. Uma alegação com base em uma formalidade legal, mas que não legitima boa-fé no cumprimento das decisões judiciais, se essa for a hipótese.

E qual é a aposta? A prefeitura e os interessados apostam que, ao constituírem situações administrativas anteriores à intimação da decisão judicial (de suspensão da lei por inconstitucionalidade), haverá a condescendência de se permitir tudo o que tiver sido pedido, deferido e publicado. Ou seja, o que já está fica, mas depois não pode mais, o que desmoraliza a eficácia da decisão judicial. Seria para "inglês ver"?

Apostam no instituto da modulação da aplicação da decisão judicial, que permite que o tribunal, por "razão de segurança jurídica ou excepcional interesse social", permita a continuidade de certos efeitos irreversíveis de uma lei inconstitucional.

Acontece que, nesse caso, a licença é o primeiro passo de uma construção de interesse privado individual, que iria ser feita com base em uma lei inconstitucional e contrária ao interesse público geral da população. Portanto, o que será irreversível e impossível de se modular é o interesse social, já que o dano é ao interesse público, ao urbanismo da cidade.

É princípio geral do Direito que leis inconstitucionais não têm validade, pois são tidas como inexistentes. Portanto, algo que não existe não pode produzir efeitos, nem gerar direitos.

Ao permitir, excepcionalmente, a permanência de efeitos de uma lei inconstitucional pela modulação, há de se ter muita parcimônia para que as decisões da Justiça, que já têm dificuldade de serem cumpridas, não se desmoralizem em função da esperteza de alguns, que constrangem os tribunais, viabilizando situações fáticas, aproveitando-se da morosidade dos comunicados e das formalidades excessivas dos procedimentos judiciais.

Ora, no caso da Lei dos Puxadinhos, a Prefeitura do Rio já tinha conhecimento pleno do questionamento de sua inconstitucionalidade desde quando estava sendo votada na Câmara de Vereadores. Depois de aprovada, e sancionada pelo prefeito no dia 19 de agosto de 2020 (Lei 219/2020), houve a propositura de inconstitucionalidade pelo Ministério Público (RJ) em 28 de agosto, apenas uma semana após a promulgação da referida lei.

Portanto, mesmo que a liminar de suspensão da lei tenha sido decidida pelo tribunal apenas em 9 de novembro, 73 dias após o início da ação, todos os pedidos administrativos concernentes à lei questionada deveriam, por precaução, terem sido deferidos pela prefeitura/Secretaria de Urbanismo (SMU), ao menos desde o dia 28 de agosto, com o aviso de sub judice. Isso é o que qualquer gestor de boa-fé faria para prevenir e dividir responsabilidades do risco junto aos solicitantes interessados.

Se isso não foi feito, não seria por ignorância ou inocência administrativa, mas, talvez, para constranger com supostas situações "já adquiridas", tornando a futura decisão judicial ineficaz. Se foi feito (o aviso), então todas as construções que estão sendo feitas com uma licença ineficaz (porque baseada em lei suspensa por inconstitucionalidade), essas construções já deveriam ser imediatamente suspensas e paralisadas para que o interesse público urbanístico prevaleça sobre os interesses privados individuais.

Se a prefeitura, via SMU, continua publicando despachos de deferimentos, mesmo 15 dias após a decisão do tribunal (291 deferimentos só no mês de novembro), certamente não serão esses gestores que zelarão pelo interesse público, notificando os interessados para paralisarem as construções baseadas em lei suspensa pelo tribunal!

Acrescente-se ainda que os tribunais sabem muito bem que produzir leis inconstitucionais, especialmente nos âmbitos municipal e estadual, é uma prática reiterada desses Legislativos. Com essas leis inconstitucionais, os legisladores enganam seus eleitores com pseudoprojetos do agrado deles, sabendo que, mais adiante, o tribunal derrubará a lei por inconstitucionalidade. Eles não se importam em atolar os tribunais com isso, nem de enganar os eleitores, já que não há nenhuma punição (nem por responsabilidade, nem pecuniária) a esses maus legisladores por enganar o eleitorado, nem por sobrecarregar os serviços da Justiça. Agora, se a aplicação da modulação for cada vez menos excepcional, essa prática legislativa condenável pode ser cada vez mais estimulada!

Aplicar a lei é duro. Que dirá cumpri-la e fazê-la cumprir. Já dizia o ditado, que se tornou popular, mas anda um pouco esquecido: dura lex, sed lex (a lei é dura, mas é lei). Se não for assim, aqueles que acreditam que é para cumpri-la se sentirão cada vez mais enganados.

Por isso, é urgente ouvir o cronista Stanislaw Ponte Preta do Brasil. velho que queremos deixar para trás: "Ou restaure-se a moralidade ou locupletemo-nos todos". Ou não?

Autores

  • é jurista, professora colaboradora do Lincoln Institute of Land Policy (Mass. EUA) no Programa de Capacitação para América Latina e ex-procuradora geral do município do Rio de Janeiro.

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