Opinião

Sobre a (in)segurança jurídica na locação garantida por fiador

Autores

  • Nelson Pietniczka Junior

    é é advogado mestrando em Direito pela Universidade Positivo pós-graduado em Direito Médico e Odontológico pela Universidade Corporativa Anadem pós-graduado em Direito Imobiliário pela Universidade Positivo formado pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) sócio-diretor do escritório Nelson Pietniczka Junior Sociedade Individual de Advogados com atuação em áreas de arbitragem médico e imobiliário.

  • Yara Letícia Cruz de Oliveira

    é acadêmica de Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e estagiária do escritório Nelson Pietniczka Junior Sociedade Individual de Advogados.

27 de novembro de 2020, 12h11

Dentro do mercado imobiliário, facilmente se vê as administradoras exigindo para a condição de fiador de um contrato de locação qualquer pessoa que possua condições econômicas com renda em pelo menos três vezes o valor da locação, somada a existência de um bem imóvel próprio registrado em seu nome.

Tais requisitos são aplicáveis a todos os tipos de locação, mas, no atual cenário, o que chama atenção para esse debate e entendimento é a fiança prestada em locação de imóvel comercial.

Em decorrência da crise do Poder Judiciário, como bem pontuou Humberto Theodoro Junior [1], o cenário do Poder Legislativo buscou, com a proposta do Código de Processo Civil, vigente desde o ano de 2015, introduzir ao sistema brasileiro normas e conceitos aplicáveis ao common law dentro do civil law, nascendo um sistema misto, em que os precedentes possuem equivalência legislativa, ou, em outras palavras, a fonte do Direito deixa de ser somente a lei para ser, também, a jurisprudência pátria.

Dentro das obrigações instituídas pelo Legislativo, destaca-se a imposição da obrigação de os tribunais manterem suas jurisprudências estáveis, conforme diz o artigo 926 do CPC, que obriga os tribunais a manter suas decisões coerentes, com edição de súmulas lastreadas em seus precedentes.

Já quanto aos magistrados de instância inicial, obrigou o legislador a estes demonstrarem em suas decisões fundamentos pelos quais não aplicam entendimento superior invocado pela parte, quer seja pela superação do referido entendimento pelo próprio tribunal superior ou a sua distinção ao caso em julgamento, sob pena de se considerar sem fundamento a decisão prolatada.

Sob essa base jurídica, tínhamos até o ano de 2019 um estável entendimento jurisprudencial quanto à possibilidade de penhora do bem declarado como sendo "de família" por parte do fiador. Eram inúmeros os fundamentos que consagravam tal conduta, assertiva em nosso entendimento.

A Lei 8.009/1990 é clara em declarar que a impenhorabilidade não alcança as dívidas decorrentes de contrato de locação. Se não bastasse tal expressa previsão, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 612.360, editou o Tema 295, considerando constitucional a penhora do bem imóvel do fiador em contrato de locação. Em sequência, o Superior Tribunal de Justiça sumulou no ano de 2015 a Súmula de nº 549, declarando válida a penhora, súmula esta que está em vigência naquela corte.

Imperioso se faz destacar que o Tema 295 do STF, a Súmula 549 do STJ e o artigo 3º, inciso III, da Lei 8.009/1990 encontram-se em plena vigência, não tendo sido revogadas, derrogadas ou alteradas.

Dentro do sistema normativo jurídico brasileiro, seria de fácil constatação de que o tema da penhorabilidade seria facilmente resolvido, quer pelo sistema civil law, como também pelo common law, atendendo à função normativa das disposições legais.

Ocorre que, infelizmente, em nosso país, todo e qualquer caso é relativo. Basta uma virgula, um ponto, um interesse maior para que se faça uma pequena exceção e trazer, novamente, uma completa desestabilização no mercado imobiliário, como o julgamento do RE 605.709, ao trazer a público que toda a jurisprudência lançada pelos tribunais superiores estava equivocada, pois no Tema 295 e na Súmula 549 não se tratava de locação comercial, mas residencial.

Brechas, lacunas, legislação patológica… São inúmeros os sinônimos que podemos utilizar (e são utilizados pelos julgadores) para dar fundamento ao entendimento exarado naquele julgamento.

Faz-nos lembrar, então, que os ensinamentos realizados por Canotilho [2] não se devem mais respeito, pois "os princípios da protecção da confiança e da segurança jurídica podem formular-se assim: o cidadão deve poder confiar em que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições jurídicas e relações, praticados ou tomadas de acordo com as normas jurídicas vigentes, se ligam os efeitos jurídicos duradouros, previstos ou calculados com base nessas mesmas normas. Estes princípios apontam basicamente para (1) a proibição de lei retroactivas; (2) a inalterabilidade do caso julgado; (3) a tendencial irrevogabilidade de actos administrativos constitutivos de direitos"

Apontar como fator distintivo entre o RE 612.360 e o RE 605.709 a destinação do imóvel objeto da locação é, sem sombra de dúvidas, desestimular os cidadãos a confiarem em seus atos, pois não se sabe mais quais serão seus efeitos. O que é legal hoje, amanhã pode não mais ser.

Sobre essa destinação distintiva, cediço analisar que em momento algum, de fato, houve o apontamento da locação residencial ou comercial. Não só no julgamento do RE 612.360 STF, ou ainda, na Súmula 549 do STJ, mas também, na regra base que originou tais entendimentos (Lei 8.009/1990).

Uma vez declarada constitucional a exceção prevista pelo inciso III do artigo 3º da Lei 8.009/1990, conforme Tema 295, é claro que é possível a penhora do bem de família do fiador, independentemente da destinação da locação.

Em igual entendimento, junto ao RE 1.249.296/RS, o Ministério Público Federal, representado por seu subprocurador-geral da República, Wagner Natal Batista, pontuou que: "(…) Portanto, o entendimento adotado no RE 605.709 não altera a orientação firmada sobre o tema em sede de repercussão geral no RE n° 612.360 — Tema 295. Se essa Excelsa Corte entende que a penhora do bem de família do fiador de contrato de locação residencial não ofende o art. 6º da Constituição da República, mesma orientação deve ser aplicada às hipóteses que envolvem contrato de locação comercial".

Na atualidade, já ao final do ano de 2020, verifica-se uma total desestabilização da jurisprudência exarada pelo Superior Tribunal Federal. São várias decisões monocráticas apontando que é impenhorável, mas também várias decisões autorizando a penhora. Inclusive, a 1ª Turma diverge entre seus representantes, pois, afinal, a quem deve se dar a razão entre todos os seus ministros, não é mesmo?

Importante trazer a vertente que busca pela manutenção da jurisprudência aplicada, sob o enfoque de ser possível a penhora do bem de família do fiador. Nesse ponto, deixa claro o ministro Luiz Fux, relator do julgamento dos embargos de declaração no agravo regimental na reclamação de nº 38.822/SP, ao declarar que: "O entendimento do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que o art. 3º, VII, da Lei 8.099/1990, ao tratar da garantia qualificada, não fez qualquer diferenciação quanto à natureza do contrato de locação, dessa forma independe se a garantia é residencial ou comercial".

Enalteço ainda o entendimento proferido pelo ministro Barroso ao dizer que "o valor constitucional contraposto, Vossa Excelência tem razão, não é o direito de moradia. Porém, a lógica de baratear o custo da fiança, na locação residencial, também se aplica, ao baratear o custo da locação, na locação comercial, porque não temos de pensar no grande empresário. Há pequenos empreendedores que também precisam de fiador para a locação, aliás, esses são os que mais precisam. Portanto, em última análise, a gente penalizaria o pequeno empresário em favor de um fiador que assumiu espontaneamente uma obrigação. Por essas razões, eu me convenci de que também deveria se aplicar à locação comercial a mesma lógica, embora eu seja capaz de intuir o sentimento de Vossa Excelência, de que direito de moradia não tem o mesmo status de livre-iniciativa, conquanto ambos sejam valores constitucionais".

São alguns dos recentes julgamentos que a cada dia ganham maior força em nossa jurisprudência para minimizar o impacto do RE 605.709, podendo citar RE 1260497 AgR-ED, publicado em 6/7/2020; Rcl 38822 AgR-ED, publicado em 8/9/2020; Rcl 38822 AgR, publicado em 13/5/2020; e RE 1279756, publicado em 3/9/2020, entre outros.

Assim, enfrentamos mares inesperados, consubstanciados em uma crise judiciária, em que não há entendimento entre os próprios membros das cortes superiores, os quais decidem como bem entendem, sem respeitar o tribunal ao qual se encontram vinculados, ensejando no homem médio receio, medo, pavor de praticar qualquer ato que a legislação permita, mas, em decorrência de uma possível interpretação futura, poderá ser condenado.

É dever dos nossos julgadores obedecerem às normas e obrigações instituídas pelo legislador, afinal, estamos dentro de um sistema de freios e contrapesos, cabendo ao Judiciário aplicar a lei (civil law) e não conceder entendimentos esparsos e forçosos a respeito de matérias que a legislação não tenha previsto, respeitando a regra geral quando não haja uma regra específica, limitando-se ao caráter de aplicar a lei ao caso concreto, sem qualquer distinguing, pois ao Poder Judiciário não compete legislar, mas julgar.

 


Referências bibliográficas
— CANOTILHO, J. J. GOMES. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almeida, 1995.
— JÚNIOR, Humberto Theodoro. Common Law e Civil Law. Aproximação. Papel da Jurisprudência e Precedentes Vinculantes no Novo Código de Processo Civil. Demandas Repetitivas. Genjurídico. 2019. Disponível em: <http://genjuridico.com.br/2019/02/06/common-law-e-civil-law-aproximacao-papel-da-jurisprudencia-e-precedentes-vinculantes-no-novo-codigo-de-processo-civil-demandas-repetitivas> Acesso em: 16 de novembro de 2020. 

 

Autores

  • Brave

    é advogado especialista em Direito Imobiliário pela Universidade Positivo e sócio diretor do escritório Nelson Pietniczka Junior Sociedade Individual de Advogados, com atuação em áreas de arbitragem, civil e imobiliário.

  • Brave

    é acadêmica de direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e estagiária do escritório Nelson Pietniczka Junior Sociedade Individual de Advogados.

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