Limite Penal

A constante (e inconstitucional) presença do in dubio pro societate no STF

Autores

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

  • Paulo Thiago Fernandes Dias

    é advogado doutorando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) mestre em Ciências Criminais pela PUCRS pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Gama Filho professor de Direito Penal e Direito Processual Civil na Universidade Ceuma e professor de Direito Penal e Direito Processual Penal na Unisulma.

27 de novembro de 2020, 8h01

O Supremo Tribunal Federal, no último dia 10 de outubro, por intermédio de sua 2ª Turma, no julgamento da ação de Habeas Corpus nº 180144/GO, cuja relatoria ficou a cargo do ministro Celso de Mello, decidiu, em apertada síntese, que a decisão de pronúncia, relevante ato decisório que fecha a primeira fase do procedimento do júri, não pode se basear em elementos de informação obtidos, exclusiva e unilateralmente, durante a fase de investigação preliminar. Assentou-se também que o in dubio pro societate não confere legitimidade a referido ato decisório, já que frontalmente desprovido de envergadura constitucional [1].

Spacca
Legenda

Essa decisão reforça o que já havia sido decidido pelo Supremo Tribunal Federal em 2019, também por sua 2ª Turma, no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo nº 1.067.392/CE, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, responsável pelo voto vencedor. Novamente sobre o in dubio pro societate, vale apontar que "(…) além de não possuir amparo normativo, tal preceito ocasiona equívocos e desfoca o critério sobre o standard probatório necessário para a pronúncia" [2].

Diante da incontestável qualidade dos argumentos utilizados nos julgados acima, com destaque para os votos proferidos pelo ministro Gilmar Mendes, e dos vários e bons trabalhos publicados sobre a temática, ainda se faz necessário discutir e criticar decisões, peças acusatórias como também livros [3] que emprestam validade ao in dubio pro societate? A resposta só pode ser positiva. Explica-se.

Se na 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal o in dubio pro societate começa [4] a ser devidamente rechaçado, especialmente em se tratando de decisão de pronúncia, no âmbito do procedimento do Tribunal do Júri (bifásico), na 1ª Turma desse mesmo tribunal superior a posição ainda é diversa. De acordo com pesquisa livre realizada no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal, verificou-se que, de 2019 até o fechamento deste texto, o in dubio pro societate continua sendo aplicado pela maioria dos ministros do órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro [5].

Se tal cenário, por si só, já demanda preocupação, informa-se que o in dubio pro societate, para além da decisão de pronúncia e até mesmo de outros atos decisórios no âmbito do processo penal (tais como o recebimento da denúncia), vem servindo como fundamento para o acolhimento de ações de improbidade administrativa [6] e até no âmago de processos de impeachment, evidenciando, com isso, a sua aplicação indiscriminada [7].

Ocorre que o in dubio pro societate não se presta a fundamentar qualquer ato decisório proferido em respeito ao texto da Constituição da República e à ciência jurídica. Simples. Essa regra é absolutamente desprovida de enunciado [8]. E tal carência se apresenta cristalina em toda e qualquer invocação do in dubio pro societate, dado que a economia argumentativa salta aos olhos, não passando de uma "(…) 'pedalada' motivacional (…)", isto é, um "(…) significante vazio e manipulador da devida análise dos requisitos legais" [9].

O in dubio pro societate, por certo, não passa de mera camuflagem, por meio da qual se almeja ocultar a falta de fundamentos fáticos, teóricos, normativos e racionais do ato decisório [10]. Não por acidente, quando aplicado, o in dubio pro societate se revela sempre apoiado na negação de direitos fundamentais, como se uma sociedade complexa como a brasileira, em todos os casos em que chamada a atuar, optasse, inapelavelmente, pela medida mais gravosa à pessoa que luta por sua liberdade.

Ademais, há de se tirar o chapéu para tal expediente retórico. É que a dúvida de uma pessoa (a que julga o fato), apesar de subjetiva, é resolvida a partir de uma crença que essa pessoa possui acerca do desejo de um ente abstrato (sociedade ou coletividade). Interesse tal que sequer é demonstrado empiricamente no julgamento que culmina com a aplicação do in dubio pro societate. Não se conhece a metodologia empregada. Simplesmente se chega à decisão, seguida de uma tradução literal da regra em comento, sem a demonstração do caminho percorrido.

No caso da decisão de pronúncia, burla-se, por completo, a etapa de valoração probatória quando o in dubio pro societate é aplicado e, com isso, negligencia-se da análise da suficiência dos indícios de autoria. Não se sabe como foi a prova efetivamente valorada pelo(a) julgador(a). "O in dubio pro reo, nesse contexto, apresenta-se como limite normativo à livre apreciação da prova, pois impede que o julgador tome alguma decisão desfavorável ao acusado, em situações nas quais há fatos duvidosos" [11].

Com o devido respeito, se o ato decisório não é motivado ou o é de forma precária, ele é por todo autoritário. E se assim o é, sua inconstitucionalidade é manifesta. Pois, se a Constituição da República consagra a presunção de inocência ou de não-culpabilidade [12], da qual o in dubio pro reo é uma de suas regras basilares, somente a presunção de culpabilidade, nos termos da engenharia processual autoritária, validaria a regra do in dubio pro societate [13].

Essa lógica autoritária também alimentou o Código de Processo Penal Fascista italiano (1930), influenciado pelos principais nomes da Escola Tecnicista, destacando-se Manzini, que considerava o "(…) in dubio pro reo, si es falso en cuanto al derecho penal, lo es más aún por lo que hace al derecho procesal penal. En efecto, en la duda, nada autoriza a inclinar la ley en favor del imputado: ni la razón, ni el derecho" [14].  

Ocorre que nossa tradição jurídica também se ocupou da missão de ojerizar a presunção de inocência, optando por um desenho autoritário de processo penal. "O nosso código, filho dileto do código Rocco da era Mussolini, acabou por espalhar, pelos mais longínquos rincões da nossa doutrina, a pútrida semente do ideário fascista, sempre pronta para solapar direitos e garantias, em nome de pretensos 'interesses da sociedade'" [15].

Mas o que é a aplicação do in dubio pro societate nos dias atuais, apesar de sua natureza autoritária? Como juíze(a)s, professore(a)s, escritore(a)s, advogado(a)s, promotore(a)s e parlamentares seguem reproduzindo em suas falas e atividades uma regra jurídica e politicamente inválida? "Há muitas vozes repetindo a mesma frase” [16]. Uma repetição irrefletida (acredita-se).

Ironicamente ou não, coube ao festejado jurista Nelson Hungria, então ministro relator do RHC 32769, aplicar pela primeira vez no Supremo Tribunal Federal [17] o autoritário in dubio pro societate [18], repelindo o in dubio pro reo, o qual, segundo Hungria, só vigorava na etapa da sentença. Essa mesma explicação superficial costuma acompanhar o in dubio pro societate, a quando de sua aplicação em sede de decisão de pronúncia. Será que nada mudou de 1953 a 2020?

Por fim, este texto se encerra com a lição de humildade extraída do voto do ministro Ricardo Lewandowski no julgamento do RHC nº 151475, quando se desculpou por ter aplicado o in dubio pro societate nas decisões que proferiu: "Sendo assim, proscrita a aplicação do falacioso in dubio pro societate e eu até me penitencio, porque, muitas vezes, eu apliquei esse brocardo, e hoje verifico que está totalmente equivocado, porquanto a presunção de inocência ou não culpabilidade vai até o trânsito em julgado da decisão condenatória, conforme previsão na Carta de Direitos de 1988. Vale dizer, além de não encontrar qualquer amparo constitucional ou legal, o referido brocardo poderá infringir o desvirtuamento do próprio sistema bifásico do procedimento do Tribunal do Júri, que pressupõe repiso existência de indícios suficientes de autoria ou de participação do requerido a exigir, portanto, fundamentação mínima do conjunto probatório coligido em juízo" [19]. Que tenhamos coragem de rever as práticas.

Confira o livro aqui e o podcast explicativo aqui.

 


[1] Nos termos da ementa: “(…) A regra “in dubio pro societate” – repelida pelo modelo constitucional que consagra o processo penal de perfil democrático – revela-se incompatível com a presunção de inocência, que, ao longo de seu virtuoso itinerário histórico, tem prevalecido no contexto das sociedades civilizadas como valor fundamental e exigência básica de respeito à dignidade da pessoa humana (HC 180144, Relator(a): Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 10/10/2020, Processo Eletrônico DJe-255, divulgado em 21-10-2020, publicado em 22-10-2020).

[2] ARE 1067392, relator(a): Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 26/03/2019, processo eletrônico Dje-167, divulgado em 01-07-2020, publicado em 02-07-2020.

[3] Só a título de nota, Bonfim sustenta que o in dubio pro societate é a contraposição teórica do in dubio pro reo, sendo o primeiro aplicável em hipóteses específicas e para as quais não se exige um juízo de certeza para a prolatação do ato decisório: recebimento da peça acusatória e pronúncia (BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 97).

[4] A cautela se justifica em razão do Acórdão proferido no RHC 151475 AG.REG, Relator(a): Cármen Lúcia, Segunda Turma, julgado em 03/09/2019, Processo Eletrônico DJe-255, divulgado em 21-11-2019, publicado em 22-11-2019. Nesse Acórdão, a despeito de devidamente reprovado pelos Ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, o in dubio pro societate serviu como fundamento implícito para o voto da ministro Cármen Lúcia e de forma expressa para a decisão do ministro Edson Fachin, ocasião em que se manteve uma decisão de pronúncia baseada apenas em elementos de informação coletados durante a fase pré-processual.

[5] A pesquisa desconsiderou decisões monocráticas, concentrando-se apenas em Acórdãos. Por coincidência, todos os Acórdãos têm como objeto a decisão de pronúncia. Dito isso, foram analisados os seguintes julgados: a) ARE 1244706 AG.REG, relator(a): Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 20/12/2019, processo eletrônico Dje-029 divulgado em 12-02-2020, publicado em 13-02-2020 (decisão unânime); b) ARE 1216794 Agr-Ed, relator(a): Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 27/09/2019, processo eletrônico Dje-220, divulgado em 09-10-2019, publicado em 10-10-2019 (decisão unânime); c) ARE 1220865 AG.REG, relator(a): Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 27/09/2019, processo eletrônico Dje-220, divulgado em 09-10-2019, publicado em 10-10-2019 (decisão unânime); d) HC 174400 AG.REG-segundo, relator(a): Roberto Barroso, Primeira Turma, julgado em 24/09/2019, processo eletrônico Dje-275, divulgado em 11-12-2019, publicado em 12-12-2019, destacando-se o fundamento do voto proferido pelo min. Luiz Fux, conforme p. 33.

[6] DIAS, Paulo Thiago Fernandes; ZAGHLOUT, Sara Alacoque Guerra. A aplicação do in dubio pro societate nos feitos cíveis e criminais e o (des)prestígio à presunção de inocência. Boletim do IBCCRIM, São Paulo: ed. 322, ano 27, set./2019.

[7] RAVAZZANO, Fernanda. O impeachment e o in dubio pro societate: devido processo legal pra quê(m)? Canal Ciências Criminais, 30 ago. 2016. Disponível em: https://canalcienciascriminais.com.br/o-impeachment-e-o-in-dubio-pro-societate-devido-processo-legal-pra-quem/. Acesso em 07 ago. 2020.

[8] CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de processo penal: comentários consolidados e crítica jurisprudencial. – 6. ed.- São Paulo: Saraiva, VitalSource Bookshelf Online, 2014, p. 838. MORAIS DA ROSA, Alexandre: KALED JR, Salah. In dubio pro Hell. Florianópolis: EMais, 2020.

[9] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Apresentação à 1ª ed. In: DIAS, Paulo Thiago Fernandes. A decisão de pronúncia baseada no in dubio pro societate: um estudo crítico sobre a valoração da prova no processo penal constitucional. Florianópolis: EMais, 2018, p. 17.

[10] NARDELLI, Marcella Mascarenhas. A prova no tribunal do júri: uma abordagem racionalista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019; LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2020.

[11] MARCANTE, Marcelo. Limites à atividade probatória. Florianópolis: EMais, 2020, p. 49.

[12] Não se nutre qualquer apreço por referida fórmula, já que, nos termos do magistério de Gloeckner, a expressão presunção de não-culpabilidade é uma criação de Giovanni Leone, possuindo definição distinta da presunção de inocência (GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal. V. 1. Florianópolis: Empório do Direito/Tirant lo Blanch, 2018, p. 315).

[13] “(…) tampoco podemos prestar asentimiento a la doctrina alemana bosquejada en un clima totalitario, que partiendo de una presunción de culpabilidad por el solo hecho de la existencia de una acusación, pretende resolver la situación de duda en daño del acusado: in dubio pro societate; doctrina aberrante y contraria al buen sentido que trata de superar la imposibilidad de pronunciar una condena, proponiendo que se condene igualmente en el pretendido interés de la sociedad. Pero qué sociedad podría quedar satisfecha de condenas dictadas a ciegas sobre posibles inocentes?” GUARNERI, Jose. Las partes en el proceso penal. México: Publicaciones de la Universidade de Puebla, 1954, p. 306/307.

[14] MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. Tomo I. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1951, p. 153.

[15] WEDY, Miguel Tedesco. Apresentação à 2ª ed. In: DIAS, Paulo Thiago Fernandes. A decisão de pronúncia baseada no in dubio pro societate: um estudo crítico sobre a valoração da prova no processo penal constitucional. 2. ed. Florianópolis: EMais, 2020.

[16] GESSINGER, Humberto. Ninguém=ninguém. In: HAWAII, Engenheiros do. Gessinger, Licks & Maltz. Rio de Janeiro: RCA Records, 1992.

[17] Conforme pesquisa realizada no sítio eletrônico do STF, quando o termo “in dubio pro societate” foi pesquisado no campo referente à jurisprudência.

[18] O mantra autoritário foi expressamente invocado para justificar a decretação de prisão preventiva (RHC 32769, Relator(a): Nelson Hungria. Tribunal Pleno, julgado em 30/09/1953, DJ 20-05-1954 PP-05554 EMENT VOL-00169-01 PP-00283 ADJ 10-01-1955 PP-00067).

[19] STF – RHC 151475 AG.REG, Relator(a): Cármen Lúcia, Segunda Turma, julgado em 03/09/2019, Processo Eletrônico DJe-255, divulgado em 21-11-2019, publicado em 22-11-2019, (p. 30).

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