Veracidade relativa

Lavratura da escritura não comprova quitação da dívida pelo imóvel, diz STJ

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27 de novembro de 2020, 8h23

A fé pública conferida à escritura lavrada em cartório para a transferência de propriedade de imóvel não serve para atestar de modo absoluto e intangível a veracidade do que é tão somente declarado de acordo com a vontade e boa-fé das partes. Assim, não serve para afastar a execução de dívida particular pela compra do bem, se há provas de que ela ainda não foi quitada.

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Escritura foi lavrada com valor fictício antes da quitação do valor pactuado em contrato
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Com esse entendimento, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso de uma empresa que esperava comprovar a inexistência de dívida pela compra de um imóvel rural com base na escritura pública.

O caso começa com a compra do imóvel por um particular, que antes de fazer a transferência da propriedade em cartório, a revendeu ao custo de R$ 870 mil. A empresa compradora pagou R$ 350 mil à vista e requereu a lavratura da escritura, sob justificativa de que precisava do bem para dar de garantia em um financiamento.

Assim, o vendedor autorizou e constou como anuente na transferência do domínio em escritura, direto dos proprietários originais para a empresa, ainda que a dívida não tivesse sido quitada.

Quando entendeu que não receberia o restante do dinheiro, o vendedor ajuizou execução de título extrajudicial, que foi embargada pela empresa sob alegação de dívida inexistente. Como prova, apresentou a escritura lavrada, cujo valor registrado de forma fictícia é de R$ 180 mil.

A empresa sustentou que o documento goza de presunção absoluta de veracidade e que, comprovando o pagamento, não pode ser contestado, tornando inexigível qualquer valor pretendido em ação executória.

Rafael L.
Ministro Marco Buzzi afastou tentativa da compradora de usar a escritura para escapar de honrar a dívida completa pela compra
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As instâncias ordinárias afastaram os embargos porque o vendedor trouxe provas aos autos de que a dívida não tinha sido quitada, conforme o contrato de compromisso de compra e venda. Relator, o ministro Marco Buzzi manteve o entendimento.

Isso porque, segundo explicou, a fé pública é princípio do ato registral que protege a inscrição dos direitos, e não dos fatos a eles ligados. Assim, qualquer inexatidão existente não se confirma pela simples existência do documento. Não à toa, o artigo 219 do Código Civil indica que as declarações em documentos assinados não eximem os interessados em sua veracidade do ônus de prová-las.

“O atributo da prova plena que a parte pretende atribuir à escritura de modo a desconstituir a exigibilidade do crédito executado não é possível dar a tal instrumento, pois nele não consta ter sido realizado o pagamento algum na presença do servidor que presidiu o ato no cartório. Não existe relação direta ou prejudicial entre o que foi declarado no instrumento notarial e a obrigação de pagar assumida no contrato particular em execução”, concluiu.

O valor registrado na escritura, substancialmente inferior ao do contrato de compra e venda, também não se presta a afastar a dívida. Isso porque toda escritura deve ter o preço do bem, para cálculo do ITBI. É mera formalidade. E as partes concordaram em usar valor fictício para reduzir a carga tributária. “Coisas da vida”, comentou o ministro Buzzi.

“Em consequência, a presunção de veracidade do documento público subsiste até que seja feita a prova, se assim o for, em sentido contrário”, resumiu. O entendimento foi unânime, seguido pelos ministros Antonio Carlos Ferreira e Raul Araújo. Não participaram do julgamento os ministros Luís Felipe Salomão e Isabel Gallotti.

REsp 1.288.552

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