Opinião

A eficácia do direito fundamental geral de liberdade durante a crise da Covid-19

Autor

  • Eduardo Henrique Ferreira

    é advogado da União especialista em Direito Constitucional Aplicado com capacitação para o ensino no magistério superior pela Faculdade Damásio de Jesus especialista em Direito Administrativo e Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes (UCAM) e especialista em Direito Imobiliário e Direito Empresarial pela Faculdade Única.

27 de novembro de 2020, 18h25

1) Introdução
O direito à liberdade é expressamente mencionado no preâmbulo e assegurado no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, sem distinção de qualquer natureza, aos brasileiros e estrangeiros residentes no país.

Não obstante o tratamento específico das inúmeras manifestações do aludido direito fundamental, tais como a liberdade de locomoção (artigo 5º, XV), a liberdade de manifestação do pensamento (artigo 5º, IV), a liberdade de consciência e de crença (artigo 5º, VI) e a liberdade de expressão (artigo 5º, IX), é possível conceber um direito geral de liberdade.

Robert Alexy (ALEXY, 2015, p. 341/345), em sua teoria dos direitos fundamentais, elucida que não há somente o direito a determinadas liberdades, mas também um direito geral de liberdade, compreendido como a proteção da liberdade geral de ação, situação e posição jurídicas. Desse modo, todos possuem, prima facie, o direito à ação ou abstenção consoante à sua vontade, caso nenhuma restrição ocorra a posteriori.

A discussão quanto à eficácia do direito fundamental em questão, sobretudo diante das circunstâncias políticas, econômicas e sociais, ganha considerável relevo em face da pandemia causada pela patologia denominada Covid-19, a qual deu ensejo ao reconhecimento do estado de calamidade pública no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020 (disponível aqui), com efeitos até 31 de dezembro, para os fins do artigo 65 da Lei Complementar nº 101/2000. Assim, não apenas a condição calamitosa, mas também a insuficiência de recursos públicos e, por conseguinte, a inefetividade de políticas públicas afetam diretamente o status da liberdade (HOLMES, 2019, p. 69-78).

Por meio do debate jurídico sobre em que medida o direito geral de liberdade pode ser assegurado diante das limitações impostas pela calamidade pública vivenciada, à luz da lei da ponderação desenvolvida por Robert Alexy e, consequentemente, das possibilidades fáticas (adequação e necessidade) e jurídicas (proporcionalidade em sentido estrito), indaga-se qual a sua eficácia e como tal circunstância extraordinária demanda a reformulação da atribuição de pesos aos direitos fundamentais colidentes no caso concreto, para fins de definição das políticas públicas a serem concretizadas pelo poder público, como o auxílio-emergencial instituído pela Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020.

Nesse contexto, sobreleva-se a perspectiva de que, a despeito das restrições ao direito geral de liberdade decorrentes de questões de saúde pública e orçamentárias, deve ser preservado um conteúdo mínimo do direito fundamental em voga, cuja plasticidade é imprescindível perante alterações tão abruptas e violentas das circunstâncias fáticas.

Aludida exigência demanda a redefinição dos pesos atribuídos na ponderação de princípios no âmbito dos direitos fundamentais, notadamente em relação ao direito geral de liberdade, aos direitos prestacionais e à implementação de políticas públicas para a garantia de ambos, com vistas à aderência à realidade social.

Dessa forma, o escopo deste estudo é examinar a colisão entre o direito geral de liberdade e as restrições provocadas pela atual calamidade pública sob o prisma da redefinição dos pesos de determinados direitos fundamentais no caso concreto e os custos orçamentário e social das políticas públicas desenvolvidas.

2) Direito fundamental de liberdade x estado de calamidade pública
Em 20 de março de 2020, o Congresso Nacional editou o Decreto Legislativo nº 6/2020, reconhecendo o estado de calamidade pública no Brasil, com efeitos até 31 de dezembro, para os fins do artigo 65 da Lei Complementar nº 101/2000, em razão da pandemia causada pela enfermidade denominada Covid-19.

Não obstante o referido decreto legislativo ter mencionado somente repercussões para o orçamento público, o ato dimensiona a grave crise de saúde pública, econômica e institucional vivenciada, por meio da qual irromperam diversas restrições, exigências e necessidades públicas que interferem diretamente no direito fundamental de liberdade.

Segundo André de Carvalho Ramos (RAMOS, 2020, p. 101), a restrição dos direitos fundamentais pode ocorrer, pois, em virtude de disposição expressa na Constituição ou com fundamento em restrição implícita decorrente do sopesamento com outros direitos e/ou interesses.

De forma mais direta, constata-se uma vulnerabilidade da liberdade de locomoção, prevista no artigo 5º, XV, da Carta Constitucional, em virtude das medidas sanitárias inerentes ao enfrentamento do novo coronavírus (SARS-CoV-2), patógeno causador da Covid-19, dispostas, entre outros atos normativos, na Lei 13.979/2020 ("Lei Nacional da Quarentena"), regulamentada pelo Decreto nº 10.282/2020 e pela Portaria MS nº 356/2020, tais como a utilização de máscaras faciais de proteção individual, a utilização frequente de álcool em gel e outros higienizadores e o isolamento social.

Do mesmo modo, o direito fundamental à liberdade religiosa, no qual se incluem o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção dos locais de cultos e suas liturgias, foi drasticamente restringido em favor da saúde pública, porquanto limitada a aglomeração em locais religiosos e controladas as solenidades relativas ao luto.

Discute-se, inclusive, a possibilidade de responsabilização penal pelo descumprimento das medidas de enfrentamento à emergência de saúde pública, com fulcro nos artigos 268 e 330 do Código Penal, que correspondem, respectivamente, aos tipos penais de infração de medida sanitária preventiva e crime de desobediência.

De outro lado, a configuração do Estado brasileiro, em sua forma federativa de Estado, sistema de governo e regime político, condiciona a natureza e eficácia das medidas engendradas. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal decidiu, no julgamento da medida cautelar requerida na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.341/DF, que as ações adotadas para o enfrentamento do novo coronavírus são de competência concorrente dos Estados, Distrito Federal, municípios e União.

Em um estado de anormalidade como o experimentado, a melhor compreensão do direito geral de liberdade perpassa pela distinção entre tradicional liberdade jurídica, compreendida como autorização para se fazer ou deixar de fazer algo, e a liberdade fática ou real, correspondente à capacidade efetiva de  autodeterminação, incluindo a disponibilidade de condições materiais e intelectuais para o seu exercício.

Sobre a referida dicotomia, Daniel Sarmento (SARMENTO, 2016, p. 196/197) leciona que: "A liberdade não deve ser concebida como a mera ausência de constrangimentos externos impostos pelo Estado à ação dos agentes, mas como a possibilidade real de cada pessoa concreta tomar decisões sobre a sua própria vida e de segui-las. Foi sob essa perspectiva que diversos filósofos e juristas contemporâneos justificaram a garantia do mínimo existencial, fortes no argumento de que, sem o atendimento de certas condições materiais básicas, se esvazia por completo a liberdade pela inviabilidade do seu efetivo exercício no mundo real. O argumento também tem ressonância na jurisprudência constitucional comparada. A Suprema Corte de Israel, por exemplo, reconheceu um direito à subsistência com dignidade, afirmando que 'sem condições materiais mínimas, uma pessoa não tem a capacidade de criar, de ter aspirações, de fazer escolhas e de exercitar as suas liberdades'".

Nas situações de agravada anormalidade, a liberdade jurídica, quando desacompanhada das condições mínimas para a fruição da liberdade fática, assegurada diretamente pelos direitos fundamentais, converte-se em uma fórmula vazia que não fornece os pressupostos necessários para o livre desenvolvimento da personalidade humana, sua dignidade e a autodeterminação.

Nesse passo, é imperiosa a adoção de políticas públicas que assegurem os pressupostos suficientes para garantir o gozo da liberdade fática ou real, por meio de reformas legislativas pontuais, regulamentação de condutas, incentivos financeiros e aprimoramento dos serviços públicos prestados.

Como forma de assegurar condições mínimas de dignidade humana à parcela da população brasileira necessitada e, por conseguinte, garantir o núcleo essencial da liberdade fática ou real, o governo federal editou, por exemplo, o artigo 2º da Lei 13.982/2020, criando o denominado "auxílio-emergencial" no valor de R$ 600 mensais ao trabalhador que cumpra os requisitos previstos, durante o período de três meses.

No entanto, diversas outras medidas, sobretudo de natureza política e econômica, são imprescindíveis para resguardar a população das nefastas consequências da crise de saúde enfrentada, estimulando as condições materiais de sobrevivência e fomentando a emancipação intelectual dos cidadãos, o que, naturalmente, impõe elevados gastos públicos.

Nesse panorama de frequentes colisões entre bens, valores ou princípios constitucionais, o recurso à lei de sopesamento é adequado para apurar, consoante as circunstâncias do caso concreto, qual direito fundamental deve ser assegurado em detrimento dos demais, que devem ceder, e em que medida deve a sua extensão ser garantida.

O sopesamento de princípios deve ser desenvolvido com base na máxima da proporcionalidade, que pode ser desmembrada em três máximas parciais: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

No presente quadro de restrições a direitos e garantias fundamentais, o sopesamento de princípios de direitos fundamentais compõe, portanto, relevante instrumento para apurar a correção das providências adotadas pelos Poderes Executivos federal, estadual e municipal, viabilizando um controle rígido e criterioso de seus fundamentos fáticos e jurídicos, por meio da estrita observância dos critérios materiais e procedimentais contemplados na Carta Constitucional, na perspectiva dogmática dos direitos fundamentais.

Nesse sentido, o dever de proteção estatal, decorrente do próprio desenho constitucional dos direitos fundamentais, configura fundamento para limitações a determinados direitos e garantias fundamentais em razão do estado de calamidade decretado, desde que após cauteloso exame da máxima da proporcionalidade e preservado o seu núcleo mínimo.

Tais circunstâncias demonstram, portanto, que a tensão entre direitos fundamentais possui dinamicidade, devendo ser revista quando alteradas a realidade social, especialmente diante da brusca modificação provocada pelo estado pandêmico instaurado.

Para tanto, a estruturação lógica do sopesamento é moldada pela fórmula do peso, segundo a qual quanto maior o grau de não-satisfação ou afetação de um princípio de direito fundamental, maior deve ser a importância da satisfação do princípio colidente.

Nesse contexto, a reestruturação do sopesamento e do peso concreto atribuído ao direito geral de liberdade e, por conseguinte, a sua justiciabilidade, sobretudo para preservação do conteúdo mínimo, constitui elemento fundamental para a garantia de sua eficácia em patamar acima do tolerável diante da conjuntura de crise sanitária, econômica e institucional e das necessárias intervenções restritivas pelo poder público.

3) Conclusão
A situação extraordinária de calamidade pública, reconhecida pelo Decreto Legislativo nº 6/2020, nos convoca a rever a valoração do peso dos direitos fundamentais no caso concreto, frente à súbita e violenta alteração das circunstâncias políticas, econômicas e sociais, haja vista o caráter obrigatoriamente dinâmico e casuístico da técnica do sopesamento.

Assim, o direito fundamental de liberdade ganha novos contornos, com um atrofiamento temporário imposto pela obrigatoriedade de adoção de medidas sanitárias preventivas, acompanhado da atribuição de um peso maior à liberdade fática ou real, garantindo-se um patamar mínimo exigido essencialmente pelo postulado da dignidade da pessoa humana, princípio fundamental e vetor de todo o sistema constitucional brasileiro, nos termos do artigo 1º, III, da Constituição Federal de 1988.

Nesse aspecto, as limitações pontuais aos direitos específicos de liberdade, como a liberdade de locomoção e a liberdade de consciência e de crença, impostas pela Lei 13.979/2020 (Lei Nacional da Quarentena), quando analisadas sob a perspectiva da fórmula do peso e da importância da satisfação dos princípios colidentes encontram fundamento no próprio direto geral de liberdade, por se tratarem de medidas necessárias para a preservação sustentável e de longo prazo da liberdade fática ou real.

Entretanto, se por um lado situações extraordinárias com imanentes restrições a direitos fundamentais justificam medidas limitativas desses direitos, por outro deve haver uma rígida definição de seus limites ("limite dos limites"), preservando-se o núcleo essencial consagrado constitucionalmente, sob pena de se deflagrar, ao lado da grave crise social, uma crise constitucional.

Dessa forma, é imperiosa uma redefinição razoável e proporcional dos pesos atribuídos na ponderação de princípios de direitos fundamentais, especialmente na relação entre o direito geral de liberdade e os direitos prestacionais em face da implementação de políticas públicas para a garantia de ambos, com vistas a garantir a sua eficácia mínima no estado de calamidade pandêmico experimentado globalmente.

 


Referências bibliográficas
— ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2015.

— HOLMES, Stephen. O custo dos direitos: por que a liberdade depende dos impostos / Stephen Holmes e Cass R. Sustein; tradução de Marcelo Brandão Cipolla. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2019.

— RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 7. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

— SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. rev. atual. e ampl. – Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2009.

— SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. Belo Horizonte: Fórum, 2016.

— SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª ed.– São Paulo: Malheiros Editores, 2017.

Autores

  • é advogado da União, especialista em Direito Constitucional Aplicado com capacitação para o ensino no magistério superior pela Faculdade Damásio de Jesus, especialista em Direito Administrativo e Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes (UCAM) e especialista em Direito Imobiliário e Direito Empresarial pela Faculdade Única.

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