Opinião

Existem, sim, juízes no Brasil

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26 de novembro de 2020, 16h14

Em artigo publicado nesta revista eletrônica no último dia 24 de novembro, defendendo a necessidade de isenção da magistratura, o juiz Otávio Amaral Calvet imputa ao Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região prejulgamento de questões trabalhistas em casos concretos.

O artigo já inicia com um erro básico: confunde imparcialidade com isenção ideológica e, nesse sentido, simplesmente ignora todos os estudos, doutrinas, filosofias que se debruçam sobre o tema. Ignora até mesmo o conceito das palavras que utiliza.

Imparcialidade é o ato de não assumir o lugar da parte e, pois, não julgar a partir da identificação pessoal com determinada situação concreta. Isenção é "falta de comprometimento moral; desinteresse". Em sentido figurado, o dicionário aponta, ainda, isenção como "demonstração de desprezo; indiferença, desdém". Isenção ideológica é a ausência de ideologia.

Para afirmar que alguém é isento de ideologia é preciso ignorar também o conceito de ideologia.

Ideologia, como ensina Ovídio Baptista ("Processo e Ideologia"), é um conceito apresentado na obra de Francis Bacon, um dos preconizadores do racionalismo. Bacon aponta quatro idola que nos impediriam de chegar à essência das coisas, por criar "pré-juízos". Na obra, de 2004, Ovídio alerta para o fato de que tratar opositores como ideológicos pressupõe sermos detentores da "verdade única", elemento central do pensamento conservador. Aponta como marca da modernidade a "ideologia da neutralidade", que naturaliza a realidade que o próprio sistema elabora, de modo que toda a pessoa que destoar dessa realidade será acusada de ideológica. É, pois, um argumento autoritário.

No âmbito do processo, segundo Ovídio, "essa naturalização da realidade tem uma extraordinária significação", apontada pelo professor como um dos pilares do sistema: "É através dela que o juiz consegue tranquilidade de consciência, que lhe permite a ilusão de manter-se irresponsável" (BAPTISTA DA SILVA, p. 16). E conclui que os dois principais compromissos ideológicos inerentes a essa compreensão do Direito e da missão do Poder Judiciário são: "A ideia de que o juiz somente deve respeito à lei, sendo-lhe vedado decidir as causas segundo sua posição política" e a "tirania exercida pela economia sobre o resto", um "sonho racionalista" que "possui um imenso componente autoritário, correspondendo a um modelo político propenso mais às tiranias do que a um regime democrático, como hoje tornou-se fácil perceber" (Idem, pp. 22-5).

Impressionante a atualidade da lição. No artigo publicado no dia 24, sob o argumento de que a magistratura deve observar "sobriedade no falar", Calvet imputa ao TRT da 4ª Região "prejulgamento", afirmando ter fixado "uma pauta abstrata de valores e conceitos que, depois, irá apreciar ao julgar o caso concreto".

A pauta, no caso, é o antirracismo. E realmente essa é uma pauta que, aliás, me faz ter orgulho de pertencer a esse tribunal. Se é abstrata, como afirma o articulista, não está relacionada ao caso concreto, outro equívoco básico que faz perder-se o próprio fundamento da crítica. Também não compromete, evidentemente, a imparcialidade em eventual julgamento de questão trabalhista.

O articulista acusa o tribunal de "expressar sua revolta, externalizar seus sentimentos, mormente quando se conecta com o evento pessoalmente", como se o erro estivesse na manifestação pública de repúdio a um assassinato que foi filmado, do início ao fim, e que torna nítida a existência de um racismo estrutural que nos atravessa. E não na omissão diante de todo o flagelo social que faz com que trabalhadores precarizados se arvorem a justiciar um cliente de uma grande rede de supermercados, que há menos de quatro meses foi notícia por haver coberto o corpo de um empregado que morreu no ambiente de trabalho, com guarda-sóis, para seguir em funcionamento.

O mínimo que se espera de um Tribunal do Trabalho em uma realidade democrática é a indignação e o firme posicionamento diante de atos que banalizam a morte.

Note-se que o autor refere que não se trata de concordar ou discordar da afirmação de que houve um brutal assassinato revelador do racismo que estrutura nossa sociedade, fazendo lembrar a frase célebre de Lacan: "O desejo enquanto real não é da ordem da palavra e sim do ato".

É preciso refletir sobre a escolha que fazemos acerca dos lugares discursivos e políticos onde colocamos nossa energia. Em uma realidade marcada pela violência, pelo desemprego que atinge parcela significativa da população economicamente ativa e pela apatia diante do flagelo da Covid-19, que já provocou, apenas em números oficiais, mais de 170 mil mortes em nosso país, é muito simbólico que se gaste energia com a crítica à ideologia, em lugar da denúncia da barbárie, como se todos não fôssemos seres políticos, sociais e, portanto, ideológicos.

Ou por acaso há isenção ideológica em um texto em que o autor sugere ser possível "a arguição de suspeição para os futuros julgamentos em tal jurisdição pelas empresas envolvidas"?

Em lugar de se preocupar com o fato de que alguma juíza ou juiz do TRT-4 possa julgar ações trabalhistas decorrentes do tenebroso episódio, a preocupação deveria voltar-se ao evento em si, a revelar tenhamos ultrapassado mais uma barreira de civilidade, capaz de comprometer todas as conquistas sociais que nos separam hoje de um ambiente de barbárie.

Impressiona a dificuldade na compreensão da nota pública do TRT-4, pois em momento algum imputa-se às pessoas que espancaram João Alberto "motivação racial". Ao contrário, o recado é claro: "Sem prejuízo da devida apuração dos fatos, é importante salientar que João Alberto era um homem negro, vivendo em uma sociedade marcada pelo racismo estrutural, que tende a naturalizar violências praticadas contra a população negra e indígena. Salientamos, assim, a necessidade de políticas públicas e institucionais — aí incluídas as empresas privadas — que tragam à tona o debate racial. Como nos ensina o professor doutor Silvio Almeida, "as instituições que não tratarem de maneira ativa e como um problema a desigualdade racial irão facilmente reproduzir as práticas racistas já tidas como 'normais' em toda a sociedade".

Talvez seja esse convite à reflexão que tanto incomode.

O que dignifica a função da magistratura não é a covarde omissão ou a inércia que mal se disfarça sob a desvirtuada noção de isenção ideológica. Comportar-se de forma prudente é tornar claro à sociedade que um Tribunal do Trabalho repudia atos de morte por espancamento e reconhece a existência de racismo estrutural.

Causa estranheza, portanto, que depois de tantos avanços, sobretudo no âmbito da ciência processual, ainda estejamos sonhando com juízes neutros, desconectados da realidade, alheios às questões sociais.

Se tal pensamento foi sustentado à época de Montesquieu e sob a lógica de um direito pautado pelo falso paradigma da igualdade, é certamente anacrônico em um Poder Judiciário inscrito na ordem democrática e contaminado por valores que não estão à disposição do intérprete, pois presentes no texto da Constituição da República. 

Com algo concordamos, vivemos mesmo tempos difíceis, diante dos quais nenhum ser humano pode calar-se, exerça ou não a função jurisdicional.

Não é apenas em Berlim: há juízes também no Brasil, e eles não são cegos, surdos ou imunes à realidade. São seres políticos, comprometidos com a ordem constitucional e com toda a carga ideológica que ela contém.

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  • Brave

    é juíza do Trabalho do TRT-4, presidenta da AJD (Associação Juízes para a Democracia), doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direitos Fundamentais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/RS) e pós-doutoranda do programa de Ciências Políticas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS).

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