Opinião

A defesa criminal militar: os seus desafios e algumas proposições

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26 de novembro de 2020, 6h04

Não resta dúvida de que o campo de atuação da defesa criminal é marcado pela vastidão. Diante das inúmeras possibilidades, o agir defensivo pode ser destacado nas midiáticas operações policiais, nas tratativas realizadas em gabinetes visando a celebração de acordos de colaborações premiadas, nas apaixonadas e apaixonantes tribunas da defesa do plenário do júri, nas enérgicas intervenções em audiência de custódia; porém, dificilmente se mostra possível imaginar espontaneamente na defesa — pública ou privada — no âmbito da Justiça Penal Militar. O objetivo deste texto é constituído por duplo prisma, qual seja, problematizar sobre essa questão, daí a necessidade de enunciar os desafios da defesa criminal militar, bem como apresentar algumas proposições.

Todavia, antes mesmo de enfrentar o objetivo declarado, que nada mais decorre do desprestígio da defesa criminal militar, é imprescindível realizar um recuo reflexivo, que tem duas balizas e apontam para o cenário vigente de dificuldade no agir defensivo criminal.

De um lado, não se pode ignorar que, por mais que se possa questionar os preconceitos e os prejulgamentos dos demais atores jurídicos, advogados e defensores públicos são seres humanos inseridos em uma sociedade autoritária. A aprovação no exame de ordem ou em concurso público, por si só, não os imuniza dessa realidade marcada pela debilidade democrática. A despeito desses defensores lutarem diuturnamente pela efetivação do devido processo legal e das garantias fundamentais, é sabido que, na seara privada, essa batalha não provoca o mesmo gasto de energia, quando não é abandonada. O difícil ato de reconhecer esses elementos é importantíssimo para o exercício da defesa. E, caso se mostre impossível superar desconfianças e juízos antecipatórios, é imperioso se afastar da defesa daquela causa.

De outra banda, não basta simplesmente abandonar os preconceitos e o prejulgamentos para que a defesa criminal possa ser exercida de forma digna. Essa é uma premissa, é necessário avançar. O defensor criminal, ainda que inserido na chamada pós-modernidade, precisa romper com marca tão cara aos tempos atuais: a cultura do descarte. Como consequência disso, deverá considerar o seu defendido como uma pessoa, um sujeito de direitos, e não como uma fonte de sua renda. Em outros termos, deverá adotar o cuidado como o seu guia de exercício profissional.

No que se refere ao cuidado como agir relevante — e mandatório para a superação desse momento de predomínio de uma técnica de morte — relevante se mostra colacionar o pensamento elaborado por Leonardo Boff:

"O cuidado somente surge quando a existência de alguém tem importância para mim. Passo então a dedicar-me a ele; disponho-me a participar de seu destino, de suas buscas, de seus sofrimentos e de seus sucessos, enfim, de sua vida. Cuidado significa então desvelo, solicitude, diligência, zelo, atenção, bom trato. Como dizíamos, estamos diante de uma atitude fundamental, de um modo de ser mediante a qual a pessoa sai de si e centra-se no outro com desvelo e solicitude (…) A atitude de cuidado pode provocar preocupação, inquietação e sentido de responsabilidade" [1].

Em uma época marcada pelo empobrecimento da subjetividade e cada vez mais se vangloria a ignorância, tal como aponta Rubens Casara [2], a postura assumida por Sobral Pinto na primeira metade do século XX, mais especificamente na defesa de um comunista após a Intentona Comunista, demonstra que não se está a defender algo revolucionário ou inédito:

"Natalina censurou seu irmão por haver se tornado advogado de Prestes. 'Nunca', Sobral escreveu em resposta, 'me afirmei tão nitidamente cristão como quando aceitei o patrocínio'. Explicou que ninguém deve deixar de ter o conforto do apoio e da defesa (….)" [3].

Superadas essas questões que possuem uma coloração mais genérica, é preciso assinalar que o primeiro desafio da defesa criminal militar decorre do atual estado de desconhecimento da Justiça Militar. Mesmo com a sua constitucionalização e crítica realizada por parte da sociedade civil, vide as recomendações 21 e 22 contidas no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade [4], que, respectivamente, apontaram para o fim da Justiça Militar estadual e a incompetência da Justiça Militar federal para julgar civis, a comunidade jurídica não devota maiores esforços reflexivos sobre essa Justiça especializada. O Código de Processo Penal Militar fornece um claro e evidente exemplo desse desleixo, pois nos últimos 20 anos, ao contrário do que se sucedeu com o Código de Processo Penal, não sofreu qualquer alteração significativa. Tanto é verdade que a principal "reforma" processual penal militar se deu por obra do Supremo Tribunal Federal, que, ao julgar o HC 127.900/AM, determinou a realização do interrogatório ao término da instrução.

Além desse desconhecimento da Justiça Militar, a defesa criminal militar tem como desafio o patrocínio de interesses de um réu que foi treinado em uma lógica que não reconhece o direito. É o espírito do guerreiro que moldou toda a formação do militar. Se não bastasse toda a produção da indústria cultural que divulga o herói como aquele que não mede esforços para aniquilar o elemento tido como malvado, a carreira do militar é pautada na lógica de que se trata de um combatente a serviço do bem para a sociedade, custe o que custar.

A partir dos estudos descoloniais, Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior traz algumas importantes considerações sobre o ethos guerreiro:

"Tem-se a polícia que mais mata e a que mais morre, porque não se moldou uma abordagem não bélica e brutal, convertendo-a em uma instituição que não é respeitada, mas temida e odiada. Nas provações físicas durante os cursos, estimula-se a competição de alunos em um ambiente de medo e apreensão, de modo a incutir nessa barbárie, literalmente na força, o 'ethos' guerreiro. Ao final do curso/jornada, não há aprovados. Há sobreviventes, com todos os prejuízos psicológicos que isso acarreta" [5].

Rosivaldo Toscano é um doutor em Direito e magistrado; daí, alguns poderão questionar o seu entendimento por não conhecer a realidade militar. Rodrigo Nogueira, por sua vez, é um ex-policial militar do Estado do Rio de Janeiro que, ao realizar seu relato sobre a sua formação, não destoa em nada do que foi citado:

"O que existe é, mais uma vez, um programa para mascarar a ineficácia do sistema de formação policial militar. As aulas de direitos humanos são superficiais, e as de direito criminal, civil e administrativo, inexistentes. Como se pode formar um policial sem lhe ensinar o básico das leis? Sem um pouco de filosofia, sociologia? A princípio, só uma lei é observada com atenção: não roube, espanque ou mate se alguém estiver vendo ou filmando. De resto, pode tudo" [6].

Ora, o defensor não exerce funções próprias de um sacerdote ou autoridade religiosa. Ele não quer que o defendido venha lhe confessar o crime para pleitear ou mesmo conceder uma absolvição; no entanto, esse espírito bélico impede ou, pelo menos, dificulta o estabelecimento de um diálogo. Os personagens utilizam idiomas distintos. Um personagem luta pelo Direito enquanto o outro foi forjado pela possibilidade plena de superação do império da lei, pois uma questão maior deveria ser solucionada: a guerra contra os inimigos construídos.

A adoção do modelo escabinado não pode ser desprezada na descrição dos desafios da defesa criminal militar. Conceitos jurídicos indeterminados acabam por se tornar a oportunidade legal para o uso performático de argumentos morais e metajurídicos por parte de quem não possui formação jurídica.

Diante dessa singela descrição, resta o incômodo questionamento: o que deve ser feito? Ao se voltar para uma postura propositiva, quatro são os pontos que merecem ser ressaltados como tentativa de transformação da defesa criminal militar.

O exercício da vigília sobre preconceitos e prejulgamentos deve ser contínuo, sendo certo que essa atividade não pode ter como foco exclusivo os magistrados e membros do Ministério Público. O defensor criminal necessita realizar constante autoavaliação e, se não conseguir superar essas questões, precisa reconhecer a sua incapacidade para atuar no caso.

Na hipótese de o réu ter sido testemunha de acusação em processo penal que atuou o defensor, ainda que as mais diversas críticas possam ser feitas àquele testemunho, o passado deve ser lá deixado. Esse é um exemplo claro da necessidade de superação de preconceitos e prejulgamento, o que, no final, atinge a defesa de militar como um todo.

Não pode o defensor criminal militar deixar de acolher o seu defendido. Ainda que o número de atendimentos no dia seja enorme ou o caso se mostre complexo, não pode abandonar o "sentido de responsabilidade". A vida do defendido é importante para ele.

O defensor criminal militar precisa reconhecer a existência de um espírito guerreiro que moldou toda a formação do seu defendido e que agora se encontra na condição de réu. Não se está aqui a postular pela isenção de responsabilidade do defendido. Caso comprovada a sua culpabilidade, deverá ser sancionado nos termos do ordenamento pátrio. Mas, as ações do réu, inclusive para com seu defensor, devem ser compreendidas em um cenário autoritário que aprova muitas das posturas ilícitas praticadas por militares. Não custa lembrar que o Brasil possui uma realidade inusitada voltada para a desinformação em direitos, pois os principais professores de Direito Penal, Direito Processual Penal e criminologia são apresentadores de programas de rádio e televisão sensacionalistas.

Outrora, havia o interesse da defesa criminal na Justiça Militar porque ali eram julgados os considerados como subversivos, os que se insurgiam contra o regime de força. Os tempos são outros, ainda que néscios postulem pela obnubilada intervenção militar constitucional, se vive em uma democracia formalmente estabelecida. Porém, no Sistema de Justiça Criminal, réu não possui adjetivo. Reconhecer os desafios da defesa criminal militar e propor algumas trilhas é um indicativo de que neste país todos devem, de fato, ser defendidos. 

 


[1] BOFF, Leonardo. Saber cuidar. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 103.

[2] CASARA, Rubens. Bolsonaro. O mito e o sintoma. São Paulo: Contracorrente, 2020. p. 31.

[3] DULLES, John W. F. Sobral Pinto: A consciência do Brasil. A cruzada contra o regime Vargas (1930-1945). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 93.

[5] SANTOS JÚNIOR, Rosivaldo Toscano. A guerra ao crime e os crimes da guerra. Uma crítica descolonial às políticas beligerantes no sistema de justiça criminal brasileiro. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 121.

[6] NOGUEIRA, Rodrigo. Como nascem os monstros. A história de um ex-soldado da Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2013. p. 78.

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