Opinião

A obra rabiscada e o direito de autor

Autor

  • Mário Pragmácio

    é doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional (PUC–Rio) professor do Departamento de Artes e da pós-graduação em Cultura e Territorialidades da UFF e conselheiro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

25 de novembro de 2020, 12h09

Carlinhos Maia é um comediante e influenciador digital que tem inúmeros seguidores nas redes sociais. Só no Instagram, contabiliza 20 milhões de perfis que o seguem. Para manter essa audiência, digna de veículos tradicionais, Maia cria conteúdos diários, como é de praxe nesse meio, misturando cenas do cotidiano com verve humorística.

Há cerca de um ano, numa sequência de stories do seu perfil oficial, Carlinhos Maia concebeu uma performance em que terminava rabiscando uma obra de artes plásticas exposta num quarto de hotel no qual estava hospedado em Aracaju, Sergipe. Em seu texto humorístico, roteirizado ou improvisado, Maia demonstrava medo com o fato de a mulher representada no quadro não ter rosto; e que ele iria resolver isso de uma vez por todas para, então, dormir tranquilamente naquele hotel. Os stories acabam com Maia desenhando um rosto com traços infantis, à caneta, sobre a obra, pondo fim ao temor da mulher sem face. Poderia Maia fazer isso, exercendo a sua liberdade de expressão artística?

Ao ser questionado por inúmeros seguidores pelo seu ato, Carlinhos Maia se defendeu argumentando que, obviamente, tinha pedido autorização à dona do quadro, no entender dele, a proprietária do hotel onde estava hospedado. Aliás, vale ressaltar que esses acordos prévios entre empresas e influenciadores são muito comuns no mercado do entretenimento digital, a fim de divulgar alguma marca ou serviço.

No entanto, do ponto de vista do direito de autor, Carlinhos Maia está equivocado, pois a dona do hotel é proprietária apenas do suporte da obra — do corpo mecânico da obra intelectual, e não do corpo místico. Isto é, do conteúdo intangível, o que gerou um ruído sobre quem poderia autorizar aquela intervenção no bem cultural.

Depois da repercussão do caso, Laudice Rocha se apresentou como autora e detentora do corpo místico da obra intelectual, dizendo: "Não autorizei a vandalização, que feriu a alma e me expôs de maneira absolutamente constrangedora". Diante da ausência de autorização prévia e expressa da autora, o que poderia acontecer com Carlinhos Maia?

Laudice Rocha anunciou que iria judicializar esse caso, com grandes chances de êxito, pois teve o direito à integridade da obra — um direito moral de autor — violado frontalmente. E não é só Carlinhos quem pode responder. Se comprovado que houve autorização indevida de quem era o detentor do suporte material da obra, a dona do hotel poderá também ser responsabilizada solidariamente pelos danos causados pela violação ao direito moral da autora.

O direito à integridade permite que Laudice se oponha a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicar a obra ou atingir a honra ou reputação da autora. A artista não gostou de ver o descaso "da pessoa em questão pelo sentimento expressado na obra, que é o patrimônio moral do artista".

Vale dizer, em outra hipótese, que Laudice, ela mesma, poderia fazer tal intervenção, desenhando um rosto ou qualquer outra alteração na obra criada por ela, exercendo, assim, outro direito moral de autor pouco conhecido no mercado, chamado de direito de modificação da obra.

Mas a lição que pode ser extraída desse caso é que, mais uma vez, a confusão recorrente e generalizada entre corpo místico e corpo mecânico da obra ocasionou violações gravíssimas de um direito fundamental, demonstrando, assim, que se torna cada vez mais urgente e necessária a difusão de noções básicas de direitos autorais para a criação de conteúdo digital.

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    é professor do Departamento de Arte da UFF, conselheiro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), mestre em Museologia e Patrimônio, especialista em Patrimônio Cultural e doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional.

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