Opinião

Breves notas sobre decisões teratológicas

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25 de novembro de 2020, 18h59

É recorrente, na prática forense (mormente em tema de Habeas Corpus e de mandado de segurança) [1], a alusão à teratologia, ou não, da decisão guerreada. Daí o relevo da questão trazida à reflexão no presente estudo, à luz, principalmente, do magistério jurisprudencial edificado sobre a matéria.

De saída, cumpre investigar o que nesse conceito fluido/abrangente se contém. No léxico [2], o vocábulo teratologia liga-se ao estudo das deformações ou anomalias no desenvolvimento do feto ou embrião.

Pois bem. Trasladando essa definição para o Direito, tem-se uma profusão de possibilidades, sendo timbrada de teratológica, segundo a arguta compreensão do ministro Hamilton Carvalhido, "a decisão absurda, impossível juridicamente" (STJ, AgRg no RMS 31.285/SP, DJe 12/5/2011). Com alcance parecido, o ministro Castro Filho atribui tal figurino ao decisório passível de enquadramento como uma aberratio juris (STJ, RMS 20.793/RJ, DJ 10/4/2006).

Tais perspectivas conduzem ao entendimento de que versam sobre decisões que escapam à interpretação equilibrada do texto legal, descambando para a arbitrariedade.

Fértil em definições, o escólio pretoriano assinala inserir-se, também nessa categoria, aquela decisão cuja ilegalidade é "reconhecível de pronto" (TJ-SC, HC 2004.003100-9, j. 2/3/2004), ou, ainda, aquela que, por estar em confronto com o ordenamento jurídico, em sentido diametralmente oposto ao conteúdo da norma, "abusa do poder jurisdicional" (TJ-SC, Agravo 4000645-84.2018.8.24.0000, j. 19/4/2018).

Não faltam, porém, precedentes que a associam à possibilidade de provocação de danos irreparáveis ou de difícil reparação (STJ, REsp 462.403/SC, RMS 4.822/RJ, 13.336/SP, 20.793/RJ; TJSC, MS 8.552, DJSC 25/7/95).

No campo doutrinário, colhe-se nota de artigo da lavra de Adilson Abreu Dallari [3], para quem "decisões teratológicas são frontalmente conflitantes com o princípio da razoabilidade". E arremata: "Deve ser havido como teratológica, qualquer decisão precipitada, tomada sem o devido cuidado, sem medir as consequências no mundo fático, que leve à desarmonia, à invasão de competências e ao fomento do conflito e da desordem jurídica".

Traçadas essas coordenadas, impende, doravante, buscar nos repositórios jurisprudenciais exemplos práticos dessas decisões anômalas alvos de reproches pelas cortes pátrias. Principia-se pelo HC 341.117/ES, relator ministro Nefi Cordeiro, DJe 15/8/2016.

Esse lugar de destaque na vertente exposição justifica-se pelo que de simbólico ostenta o aresto em vitrine, ao veicular como tema central a carência de fundamentação do decisum de tribunal de segundo grau, o que esbarrou no crivo do STJ.

Sinteticamente, houve fundamentação exclusivamente per relationem, o que ensejou a nulidade do acórdão condenatório por ausência de fundamentação, mediante o implemento, de ofício, da ordem de Habeas Corpus.

Resumo: decisões carentes de fundamentação — o que é muito comum [4] na prática forense — podem, sim, atrair a pecha de teratológicas/nulas. Passo seguinte, vale referenciar acórdão do TJ-SC, prolatado no mandado de segurança nº 2002.006933-2, relator desembargador Mazoni Ferreira, j. 4/9/2003.

O vício nele debatido também era chapado — decisum extra petita: "Decisão interlocutória que determina expedição de mandado de imissão de posse em ação anulatória de ato jurídico".

Ao aferir "teratologia e ilegalidade manifesta", dado que a posse não foi objeto de debate na demanda (mercê de a ação proposta não possuir caráter dúplice), implementou-se a ordem.

Noutro caso, colhido da corte estadual mineira, a teratologia emergiu da ausência de intimação do réu para a sessão do júri, implicando em ofensa ao direito à autodefesa (TJ-MG, HC 1.0000.16.074753-1/000, rel. des. Adilson Lamounier, j. em 25/10/2016).

Ainda trilhando o escólio do TJ-MG, desta feita em decisão em desfavor do jus libertatis, atendeu à irresignação Parquet, que impetrou mandado de segurança contra a soltura do acusado, do que aflorou a concessão da ordem, mercê de se tratar de "decisão não motivada, em expressa violação ao artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, baseando-se a soltura do réu em ato processual inexistente, gerando consequência notadamente ilegal e abusiva, necessária a concessão do Mandado de Segurança para ratificação da liminar que determinou a expedição de mandado de prisão em desfavor do acusado". (TJ-MG, MS 1.0000.18.125645-4/000, rel. des. Edison Feital, j. 19/2/2019).

Exemplo mais curioso de teratologia advém do TJ-RS, cujo quadro fático restou assim resumido no julgado: "È teratológica a decisão que concede a liberdade provisória ao preso preventivo pelo fato de ser filho de policial e também impõe a este último o dever de fiscalização", malferindo "o princípio da intranscendência e também da isonomia, caracterizando-se, pelo vício de fundamentação, prejuízo ao devido processo legal…" (TJRS, MS nº 70080109838, rel. Julio Cesar Finger, j. 21/2/2019).

Encerrando esse rápido apanhado de decisões marcadas pela nota da teratologia, invoca-se outro precedente gaúcho, no bojo do qual se concedeu o writ para cassar a decisão fustigada, com espeque no argumento segundo o qual "o livre acesso ao Poder judiciário significa o direito do autor da ação a escolha de seu domicílio para a propositura da ação, tratando-se de relação de consumo, nos termos do artigo 101, I, do CDC", pelo que "a decisão que declina da competência de ofício é ato ilegal do magistrado caracterizada pela negativa de jurisdição, uma vez que detém também competência para instruir e julgar a presente demanda" (TJ-RS, MS nº 70078475191, rel. Giovanni Conti, j. 20/07/2018).

Com essas considerações, conclui-se que são variados os matizes das decisões tidas por teratológicas, não havendo como definir, a priori, um figurino estanque de possibilidades justificadoras dos remédios heroicos encartados no rol de direitos fundamentais da Carta Republicana.

E, sendo assim, presente dúvida razoável sobre o cabimento, ou não, do writ, que as cortes, sem melindres [5] nem compromisso cego com o eficientismo (os tentadores/retumbantes dados estatísticos [6]), dignem-se de apreciar o mérito dessas impetrações [7], senão por simples imperativo de justiça, em obséquio ao novel princípio da primazia do julgamento do mérito [8], que reclama esforço em prol de uma prestação jurisdicional completa e materialmente justa, e não em favor da prolação de decisões guiadas pelo traço da comodidade e da rapidez, que é o que mais se tem visto na prática forense.

Encerra-se com as sempre oportunas palavras de Rui Barbosa [9]: "Quem dá às constituições realidade, não é, nem a inteligência, que as concebe, nem o pergaminho, que as estampa: é a magistratura, que as defende".

 


[1] No bojo de ação rescisória, embora com menos frequência, também: "para que a ação rescisória fundada no art. 485, V, do CPC, seja acolhida, é necessário que a interpretação dada pelo 'decisum' rescindendo seja de tal modo teratológica que viole o dispositivo legal em sua literalidade. Ao revés, se a decisão rescindenda elege uma dentre as interpretações cabíveis, a ação rescisória não merece prosperar" (FUX, Luiz. Curso de Direito Processual Civil, Forense, 2ª ed., Rio de Janeiro, 2004, p. 849/850).

[2] Dicionário brasileiro de língua portuguesa – michaelis.uol.com.br

[3] DALLARI, Adilson Abreu. Decisões teratológicas são conflitantes com o princípio da razoabilidade. Coluna Interesse Público. Revista Consultor Jurídico, 29 de junho de 2017.

[4] Mormente diante do abominável/arraigado chavão segundo o qual o julgador não está obrigado a responder, um a um, os argumentos esgrimidos pelas partes.

[5] Em matéria recente da ConJur, intitulada "Corte Especial discute se cabe mandado de segurança contra acórdão do próprio STJ” (18/11/2020), registra-se que o ministro Luis Felipe Salomão, no julgamento do MS 25.474, teria feito esta colocação: “A questão da teratologia imbrica com a da subjetividade. É uma questão delicada, às vezes envolve cassar a decisão de outro colega. A gente viu há pouco a repercussão que isso tem".

[6] O artigo de autoria de Airton Florentino de Barros, intitulado "STJ se ocupa com relatórios de produtividade e não julga", datado de 19/10/2020, enfrenta, com precisão e desassombro, uma realidade irrefragável, verbis: "Mais lastimável ainda é constatar que, sem se dar conta de sua extrema relevância para a sociedade, aquela corte superior tenha se deixado cair nessa armadilha que enaltece a economia e coloca em segundo plano o direito do cidadão e a justiça". E prossegue, de forma irrepreensível, em sua constatação: "Deveria a respeitável corte, como órgão superior do Poder Judiciário, data vênia, velar pela excelência não dos números de decisões proferidas, mas dos resultados sociais de sua atividade-fim, ou seja, pela eficiência da prestação jurisdicional, no sentido de, na solução dos litígios, dar a cada um o que é seu, não prejudicar ninguém e zelar pela dignidade da própria Justiça, para, enfim, por meio de seus julgamentos, promover a efetiva ordem pública e, por consequência, a tão esperada paz social".

[7] …como um direito fundamental vincula o Estado (aí pensado não só o Poder Executivo, mas também, e especialmente, o Judiciário e o Legislativo) a conferir a essa figura a maior eficácia possível. […] Elimina-se, com isso, a possibilidade de outorgar qualquer interpretação ao procedimento do mandado de segurança — não extraída diretamente do texto constitucional — que possa limitar, inviabilizar ou neutralizar seu uso em caso específico. Mais do que isso, torna-se inconstitucional qualquer negligência do Estado em conferir a este instrumento a mais ampla, irrestrita, eficaz e adequada aplicação [6]. A garantia constitucional do mandado de segurança, então, exige do Estado proteção maximizada, impondo-lhe o dever de: a) criar leis que disciplinem seu procedimento de modo a torná-lo célere, amplamente acessível (subjetiva e objetivamente [7]), eficaz; e b) conferir, especialmente pelo Poder Judiciário, interpretação aos dispositivos que tratam do mandado de segurança, que seja sempre a mais favorável ao cabimento, à tramitação e à efetivação desse instrumento. (CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz. (Coords). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013).

[8] …o órgão deve priorizar a decisão de mérito, tê-la como objetivo e fazer o possível para que ocorra. (DIDIER, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 17ª ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 137). Em sentido convergente, em tema de exame meritório de mandado de segurança, vale conferir: MS 20.295/DF, rel. min. Herman Benjamin, DJe 29/11/2016.

[9] BARBOSA, Rui. Obras completas, vol. XXII, Tomo I, Rio de Janeiro: Ministério da Educação e da Saúde, 1952, p. 179.

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