Opinião

A jornada de trabalho aplicável aos policiais civis de São Paulo

Autor

  • Gabriel Rissato Leite Ribeiro

    é auditor fiscal da Receita Federal ex-analista tributário no mesmo órgão ex-policial civil pós-graduado em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e especialista em Negócios Internacionais pelo Centro Universitário Cidade Verde (UniFCV).

25 de novembro de 2020, 13h38

De acordo com o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo, Lei nº 10.261/1968 (artigos 117 e 118), o horário de trabalho nas repartições será fixado pelo poder público de acordo com a natureza e as necessidades do serviço, podendo ser antecipado ou prorrogado pelo chefe da repartição, nos casos de comprovada necessidade. O registro de entrada e saída dos funcionários públicos é realizado diariamente por intermédio de folha de ponto, usualmente com vigência mensal (artigo 120 da Lei nº 10.261/1968, c/c artigo 6º do Decreto nº 52.054/2007).

Tratando especificamente do horário de trabalho e registro de ponto dos servidores públicos estaduais, temos o Decreto nº 52.054/2007. Segundo a norma, a jornada de trabalho padrão dos servidores sujeitos à prestação de 40 horas semanais será cumprida, obrigatoriamente, em dois períodos dentro da faixa horária compreendida entre 8h e 18h, de segunda a sexta-feira, com intervalo de duas horas para alimentação e descanso, podendo tal horário ser prorrogado ou antecipado, dentro da faixa compreendida entre 7h e 19h, desde que mantida a divisão em dois períodos e assegurado o intervalo mínimo de uma hora para alimentação (artigo 3º).

Os policiais civis de São Paulo, de todas as 14 carreiras de que tratam a LC nº 492/1986 e a LC nº 494/1986, estão sujeitos ao regime especial de trabalho policial (RETP) instituído pela Lei nº 10.291/1968 e aplicado pela LC nº 207/1979 (Lei Orgânica da Polícia do Estado de São Paulo). De acordo com os diplomas legais (artigo 1º, §1º, da Lei nº 10.291/1968 e artigo 44 da LC nº 207/1979), o regime em escopo caracteriza-se, entre outros elementos, pela prestação de serviços em condições precárias de segurança, cumprimento de horário irregular, sujeição a plantões noturnos e a chamadas a qualquer hora. Apesar de ter sido suprimida pela LC nº 1.249/2014, havia ainda a indicação de que o RETP deve ser cumprido em jornada mínima de 40 horas semanais de trabalho. A disposição em tela segue sendo ratificada no portal eletrônico da Coordenadoria de Recursos Humanos do Estado.

Conforme o disposto no artigo 5º do Decreto nº 52.054/2007, em adição à jornada ordinária (que chamaremos aqui de horário de expediente), foi também regulado o regime de plantão, aplicado aos servidores pertencentes às atividades-fim da área de segurança pública lotados em locais nos quais os serviços são prestados de forma ininterrupta (24 horas diárias). Nesse regime, haverá a prestação diária de 12 horas contínuas de trabalho, respeitado o intervalo mínimo de uma hora para alimentação, e 36 horas contínuas de descanso. São, assim, dois os modelos aplicáveis aos policiais civis no tocante a jornada de trabalho, a depender do tipo de serviço público desenvolvido por seu setor e/ou unidade:

a) Expediente (40 horas semanais), de segunda a sexta, entre 7h e 19h e com uma a duas horas de almoço;

b) Plantão (média de 42 horas semanais), em escala de 12 horas de trabalho para 36 horas de descanso.

Com a leitura do referido acima, depreende-se que, independentemente da jornada adotada, a carga horária média a que se submeterá o policial civil sempre se situará entre 40 e 44 horas semanais. Isso porque todos os trabalhadores urbanos e rurais, servidores públicos ou não, são amparados por proteção constitucional destinada a assegurar condições mínimas para garantir a manutenção de sua saúde física e mental (artigo 7º, inciso XIII, da Constituição Federal de 1988). De modo a não sobrecarregar ou extenuar os policiais, eventuais extrapolamentos à jornada de 44 horas semanais, decorrentes, exemplificando-se, de convocações extraordinárias por necessidade de serviço amparadas pelo RETP, deverão sempre ser objeto de compensação, sob pena de responsabilização funcional dos dirigentes do órgão.

Tal entendimento foi, inclusive, externado em decisão judicial relativamente recente (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo — Vara do Juizado Especial Cível e Criminal da Comarca e Foro de Jales — Processo nº 0010798-17.2014.8.26.0297 — Sentença de 4/5/2015), cujos principais excertos são incluídos na sequência:

"A contratação se deu […] para uma carga semanal de 40 horas trabalhadas. Porém, em virtude da carência de policiais, a experiência laboral ruma para o desprazer de trabalhar ininterruptamente, sem nenhum descanso. […] A prova dos autos dá conta de que o requerente foi submetido a jornadas escorchantes de trabalho, conforme se nota das cópias de escalas. […] Tais fatos se repetiram ao longo de diversos meses do ano […]. Estamos aqui ao pé da categoria jurídica dano existencial. […] É certo […] que a parte autora submete-se ao regime estatutário, diverso do regime dos trabalhadores da iniciativa privada […]. Também não é menos certo que o artigo 118, caput, e parágrafo único, da Lei Estadual nº 10.261/1968 […] admite a prorrogação da jornada de trabalho do servidor […] diante da necessidade dos serviços. […] Todas essas normas […], contudo, não se afiguram carta branca […] para que a Administração Pública faça dos policiais objetos de uma modalidade, moderna, de escravidão. Todos os entes públicos […] subjugam-se aos comandos da Constituição Federal, que revela, sempre, a proteção do ser humano. […] Não obstante o regime especial a que são submetidos […], o certo é que existe um padrão mínimo de condições sociais, sem o quê nossos valorosos policiais sejam transformados em coisas, em máquinas, […] em objetos mergulhados em ambientes precários de trabalho. […] E não estamos a dizer de qualquer profissão. Estamos a falar da Polícia Civil, atividade extremamente perigosa, […] o que faz o policial mastigar, ainda mais, o desespero, em crer que a vida […] pode a qualquer tempo desaparecer pela ação cruel de bandidos desalmados. […] Por isso, a proteção constitucional ao trabalho, contra as jornadas excessivas e jornadas ininterruptas, encontra apoio na Constituição Federal de 1988 […]. O fato de a parte autora ser policial civil […] não a destitui dos direitos sociais ao trabalho, figura indispensável à concretização do princípio constitucional da dignidade humana. […] Repita-se: não vale o argumento […] de que os policiais civis submetem-se a um regime especial de trabalho […]. É que os policiais civis, ao venderem sua mão de obra ao Estado, não perdem a sua condição de seres humanos […] reconhecidos e protegidos pela ordem constitucional, […] sujeitos de direitos sociais, […] comprometidos com o ideal de busca incansável da própria felicidade".

Por todo o exposto, conclui-se que não merece guarida a tese de que o regime especial de trabalho policial permite o cumprimento de horário irregular e chamadas a qualquer hora sem necessidade de qualquer tipo de compensação de jornada. Um fato derradeiro reforça tal afirmação: a instituição, pela LC nº 1.280/2016, da Diária Especial por Jornada Extraordinária de Trabalho Policial Civil (Dejec), destinada a indenizar os servidores policiais pelo cumprimento de jornada adicional, fora do horário normal de trabalho (artigo 1º, §1º). A lei supramencionada já foi, inclusive, objeto de regulamentação, por intermédio da Portaria DGP nº 01/2016, embora apresente, no momento atual, dificuldades de implementação face à crise orçamentária.

Aproveita-se ao final para tecer, aqui, crítica à inércia do Poder Executivo em regulamentar o teor do Decreto nº 52.054/2007. De acordo com o que preceitua o artigo 20 da referida norma infralegal, editada no longínquo ano de 2007, a Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança Pública, com anuência da Secretaria de Gestão Pública, teria o prazo máximo de 30 dias, contados da publicação do decreto, para expedir ato normativo destinado a disciplinar o regime especial de trabalho na área de segurança pública, ação que segue sem ter sido empregada, em prejuízo à segurança jurídica tão necessária ao labor dos milhares de policiais civis paulistas.

Autores

  • é auditor fiscal da Receita Federal, ex-analista tributário no mesmo órgão, ex-policial civil, pós-graduando em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e especialista em Negócios Internacionais pelo Centro Universitário Cidade Verde (UniFCV).

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