Opinião

A problemática dos pedidos de vistas no Supremo: regimento interno para quê?

Autor

  • Felipe Herdem Lima

    é mestre em Direito da Regulação pós-graduado em Direito Empresarial autor dos livros: Liquidação Extrajudicial e seu devido processo administrativo Direito Bancário: Conceitos básicos Sistema Financeiro Nacional Contemporâneo: regulação e desafios; Resolução Bancária: Aspectos controversos e Novas Tendências do Sistema Financeiro Nacional; e sócio do escritório Herdem & Latini Advogados.

25 de novembro de 2020, 6h03

O regimento interno do STF prevê um prazo de devolução do processo de dez dias, com a possibilidade de prorrogação automática de mais dez dias, depois dessa prorrogação, todos os pedidos devem ser motivados e justificados [1]. Apesar da existência de norma no regimento interno do STF, não existe nenhuma sanção em caso de descumprimento do prazo estipulado.

A falta de uma sanção por descumprimento, conciliada com a ausência de uma instituição ou órgão capaz de fazer valer o prazo estipulado no regimento, leva à possibilidade de concentração de poder por determinado ministro, causando, por vezes, a retenção por tempo indeterminado de processos. Como exemplo desse cenário, merece destaque a ADI 4.650, em que o pedido de vista do ministro Gilmar Mendes suspendeu o julgamento por mais de um ano, quando, no caso, já existia maioria de votos para a sustentação de inconstitucionalidade das doações empresariais para campanhas políticas.

Outro exemplo é o Recurso Extraordinário n° 188083, que chegou no STF em 9 de fevereiro de 1995. Em 18 de maio de 2006, o ministro Eros Grau solicitou vista do processo, voltando para o julgamento apenas em 11 de novembro de 2014, sendo julgado em 5 de agosto de 2015. Nesse caso, o pedido de vista gerou uma lentidão de oito anos dentro de um universo de duas décadas de duração.

Falcão trata o descumprimento dos prazos processuais como um dos fatores ensejadores de insegurança jurídica. Para o autor, a insegurança jurídica é também provocada pela inexistência de responsabilização dos ministros, quando estes não cumprem o próprio regimento interno [2]. Conclui, portanto, que a "(…) banalização dos prazos legais acaba transferindo o pedido de vista em verdadeiro e antidemocrático poder individual de veto do Ministro do Supremo", permitindo ao "Supremo, como colegiado, e aos ministros individualmente, escolherem o que julgar, quem e como" [3].

A ausência de regras ou padrões claros sobre o pedido de vista, bem como a falta de uma sanção para o descumprimento do prazo estipulado no regimento interno, levaram a propositura da proposta de emenda à constituição nº 53, de 2015, que acrescenta o inciso XVI [4] ao artigo 93 da Constituição Federal [5], para fixar prazo de vista de dez dias nos processos em trâmite nos tribunais. Segundo a proposta, é facultado aos integrantes dos tribunais pedir vista dos autos de processo judicial em curso, devendo devolvê-los no prazo improrrogável de dez dias, contados da data em que os recebeu em seu gabinete para que se dê prosseguimento ao julgamento. Transcorrido o prazo sem que tenham sido devolvidos os autos, todos os processos, pautados ou apresentados em mesa para julgamento no respectivo colegiado, com exceção de mandados de segurança e Habeas Corpus, ficarão sobrestados até que seja retomado o exame do processo suspenso pelo pedido de vista.

Como um dos fundamentos da proposta, merece destaque a alegação de suposta violação do princípio da duração razoável do processo [6], e o entendimento de que "a jurisdição não deve ser apenas prestada pelo Estado por conta do direito de ação, mas deve ser tempestiva e adequada, com o escopo de atingir a efetividade do direito postulado em cada demanda" [7].

Recentemente [8], a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados aprovou a admissibilidade da proposta. Durante a sessão, o deputado Arnaldo Jordy (PPS-PA) lembrou que, em várias ocasiões, o Supremo Tribunal Federal chegou a uma decisão sobre processos, inclusive com voto da maioria dos ministros, mas um pedido de vista impede a conclusão do julgamento. "Esse expediente pode ser usado para impedir uma decisão do Supremo, por exemplo, por um ministro que é contrário a uma medida" [9].

O desafio da emenda esbarra no eloquente reconhecimento do poder exercido pelo STF. Sobre este prisma merece a observação feita pelo então ministro José Celso de Mello, quando este observou que o tribunal é um poder constituinte permanente [10], o que "(…) equivale a dizer que o STF é copartícipe, junto do constituinte de 1988, da tarefa de definir as estruturas constitucionais básicas do país- incluindo, portanto, o próprio poder do tribunal" [11]Portanto, para o STF é plausível interpretar em última instância, o alcance de suas próprias competências; "(…) dotando a si próprio de uma decisiva margem de manobra para influenciar as condições da sua participação política" [12].

Diante dessa premissa expansionista de interpretação das normas de competência do tribunal, algumas perguntas ganham especial relevância: 1) será que a Proposta de Emenda à Constituição 53/2015 seria passível de controle do mérito pelo STF? 2) uma vez aprovada a proposta, o tribunal aceitaria o novo prazo para devolução do processo? A premissa adotada é de que a doutrina formalista da separação de poderes é pautada apenas para a descrição e fixação interpretativa das competências decisórias formalmente estabelecidas no texto constitucional, sendo insuficiente para compreender a complexidade das relações entre os poderes do Estado.

O prazo estipulado na proposta de emenda, em tese, serve como um exemplo da complexidade das relações entre os poderes do Estado. De um lado, está o Legislativo tentando impor uma limitação a atuação do poder estatal, e de outro, está o Judiciário, que não quer internalizar os custos da decisão do Legislativo. Esse processo de internalização é que Falcão chama de repartição simétrica dos custos gerados pela atuação estatal, que, em última análise, "importa na possibilidade de que um Poder veja implementadas suas decisões pelos outros dois" [13]No fim, a pergunta que fica é: será que a PEC 53/2015 entrará em vigor, ou, caso entre, será que o STF irá julgá-la inconstitucional? Quem limita o Supremo?

 


[1] A possibilidade de solicitar vista está disposta no artigo 134 do Regimento Interno do STF, que assim dispõe: Artigo 134. Se algum dos Ministros pedir vista dos autos, deverá apresentá-los, para prosseguimento da votação, até a segunda sessão ordinária subsequente.

[2] FALCÃO, Joaquim. O Supremo, a Incerteza Judicial e a Insegurança Jurídica. Journal of Democracy em português, vol. 5, número 2, outubro de 2016, p. 91.

[3] Id.

[4] Artigo 1º O artigo 93 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte inciso XVI:
"Art. 93. ………………………………………………………….. …………………………………………………………………………. XVI – aos integrantes dos Tribunais é facultado pedir vista dos autos de processo judicial em curso, devendo devolvê-los no prazo improrrogável de 10 (dez) dias, contados da data em que os recebeu em seu Gabinete, para que se dê prosseguimento ao julgamento; transcorrido este prazo sem que tenham sido devolvidos os autos, todos os processos, pautados ou apresentados em mesa para julgamento no respectivo Colegiado, com exceção de mandados de segurança e habeas corpus ficarão sobrestados até que seja retomado o exame do processo suspenso pelo pedido de vista".

[5] Autor Deputado Glauber Braga PSB/RJ.

[6] Artigo 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes
LXXVIII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação

[7] Câmara dos deputados. Proposta de Emenda à Constituição nº , de 2015. Acrescenta o inciso ao art. 93 da Constituição Federal, para fixar prazo de vista nos processos em trâmite nos tribunais. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=1FD3B1231C34471AEBDA557F46B0AA8E.proposicoesWebExterno2?codteor=1340199&filename=PEC+53/2015 acesso em: 21/11/2016.

[8] Em 16/11/2016

[10] Id.

[11] Id.

[12] Id.

[13] Id.

Autores

  • é sócio do escritório GFX Advogados, professor do FGV Law Program, doutorando em Direito Público na Universidade de Coimbra e mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.

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