Escritos de mulher

A ponta do iceberg: o levante antirracista tem de ser a partir das estruturas

Autores

  • Juliana Souza

    é advogada ativista antirracista pós graduada em Direitos Fundamentais e Processo Constitucional (IBCCRIM/Universidade de Coimbra); mestranda do Diversitas/USP e pesquisadora do NAPPLAC da FAU/USP; vice-presidente da Comissão Estadual da Jovem Advocacia da OAB/SP.

  • Silvia Souza

    é advogada conselheira federal pela OAB-SP e presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB.

25 de novembro de 2020, 9h00

"Por que o negro é isso que a lógica da dominação tenta (e consegue muitas vezes, nós o sabemos) domesticar? E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações."
Lélia Gonzalez

Spacca
No último dia 19 de novembro, o caso ocorrido no supermercado Carrefour em Porto Alegre, onde João Alberto, homem negro, de 40 anos, foi espancado até a morte por dois seguranças brancos que prestavam serviço no estabelecimento, o que trouxe à tona uma série de questões que se inserem em outros espectros jurídicos, sociais e econômicos que permeiam o cotidiano de diversas empresas do seguimento varejista em todo país.

O fato ter ocorrido justamente às vésperas do dia em que se celebra da Consciência Negra no Brasil, em que se celebra as lutas de Zumbi de Palmares e dos povos negros por sua libertação, torna a situação ainda mais dramática e expõe os flancos dessa estrutura atravessada pelo racismo e que precisam ser vistos com um olhar apurado.

Divulgação
Antes de adentrar nos meandros da questão, vale lembrar que esse não é um caso isolado, em fevereiro de 2019 o jovem Pedro Henrique Gonzaga1 foi morto por sufocamento por um dos seguranças dentro do supermercado Extra, na Barra da Tijuca. Em 2017 João Victor Souza de Carvalho, um adolescente de 13 anos foi morto em frente a uma lanchonete do Habbi’s após, segundo testemunhas, ter se desentendido com funcionários da loja por pedir dinheiro e comida aos clientes, o caso foi concluído dois anos depois sem apontar culpados2.

Lembremos ainda do caso do jovem de 17 anos torturado por seguranças da rede Ricoy Supermercados, na zona sul da cidade de São Paulo, em setembro de 2019.

Além da questão racial que inegavelmente atua de forma interseccional e determinante nas estruturas de poder, e no caso em questão do micropoder3, os reiterados casos em que homens pretos e pardos, jovens ou adultos, são torturados, chicoteados, espancados e mortos por seguranças privados de estabelecimentos comerciais expõe o vácuo do segmento de segurança privada no Brasil.

O mercado que movimenta em torno de 34 bilhões de reais por ano no Brasil (dados do setor divulgados em 2018), com pouco mais de 2500 empresas e aproximadamente 500.000 trabalhadores, previsto na Lei nº. 7.102 de 1983 e em Portaria da Polícia Federal, sendo esta última instituição quem, em tese, regula e fiscaliza o setor.

O Brasil é signatário de acordos internacionais de Direitos Humanos que incorporados à legislação interna determinam que os agentes de segurança pública ou privada devem fazer o uso da força de maneira proporcional à ameaça enfrentada. Via de regra, os agentes de segurança privada devem passar por um curso de formação de 200 horas, dentre as quais há previsão do aprendizado de conceitos básicos de Direitos Humanos. Todavia, a prática e os fatos demonstram a ausência de disciplina que contemple o enfrentamento do racismo e as relações raciais no Brasil.

Ademais, choca o fato de, segundo relatos, João Alberto ter sido assassinado na presença de 15 testemunhas que se mantiveram inertes frente às agressões. O que nos leva a questão: Vidas Negras importam no Brasil?

Movidos pelo mesmo questionamento grupos dos movimentos negros e organizações se mobilizaram por todo país, tendo um deles inclusive espantado no asfalto de uma das Avenidas mais importantes da capital paulista, em letras garrafais, a afirmativa: VIDAS PRETAS IMPORTAM.

Fato é, o lamentável episódio que ocasionou a perda — irreparável — da vida de João Alberto Freitas, dissipou a cortina de fumaça que tentava encobrir as lacunas negacionistas e estruturais que refutam a existência do racismo no Brasil. Estruturas essas que necessitam urgentemente ser reconstruídas a partir de uma nova base, que passa indiscutivelmente por um levante socioeconômico antirracista, implicando toda sociedade com o compromisso de reestruturação e transformação de nossos valores e práticas.


1 Disponível em: https://exame.com/brasil/policia-indicia-seguranca-acusado-de-sufocamento-em-supermercado-extra/ Acessado em 25.11. 2020

2 Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/03/10/policia-de-sp-conclui-caso-de-menino-morto-ha-2-anos-no-habibs-sem-apontar-culpados.ghtml Acessado em 25.11.2020

3 O termo Micropoder é utilizado em analogia ao conceito cunhado pelo filósofo Michel Foucault (1992) quando da análise das relações de poder na sociedade industrial em relação à sociedade pré-industrial, designa uma nova manifestação do poder disciplinar que atua diretamente sobre o trabalho dos indivíduos, diretamente sobre seus corpos.

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    é advogada, ativista antirracista, pós graduada em Direitos Fundamentais e Processo Constitucional (IBCCRIM/Universidade de Coimbra); mestranda do Diversitas/USP e pesquisadora do NAPPLAC da FAU/USP; vice-presidente da Comissão Estadual da Jovem Advocacia da OAB/SP.

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    é advogada especialista em Direito e Processo do Trabalho e pós-graduada em Direitos Humanos, Diversidades e Violências pela UFABC; assessora jurídica/legislativa na Câmara Legislativa do Distrito Federal e coordenadora adjunta do Departamento de Assuntos Antidiscriminatórios do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM); especialista em advocacy no Congresso Nacional.

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