Opinião

Apontamentos sobre o 'caso Carrefour'

Autor

  • Rodrigo Pardal

    é professor de Direito Penal do Damásio Educacional especialista em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha) pós-graduado em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público doutorando e mestre pela PUC-SP.

24 de novembro de 2020, 16h23

Após o ocorrido no Carrefour situado em Porto Alegre, passo a receber diversas mensagens de alunos sobre os mais diversos pontos envolvendo o assunto, perguntas envolvendo tipificação penal, excessos em eventuais excludentes de ilicitude, bem como a relevância da omissão de pessoas presentes no local. Não tratarei aqui desses aspectos jurídico-penais, mas de algo que não é considerado propriamente jurídico (erroneamente a meu ver, por herança do positivismo jurídico), mas que dele não se distancia, com ele se confunde, repercute e demanda relação de simbiose, qual seja: o discurso perverso sobre a figura da vítima a tangenciar tanto a vitimologia quanto a vitimodogmática.

Antes de prosseguir, válido conceituar e diferenciar vitimologia e vitimodogmática. A vitimologia enquanto ramo da Criminologia envolve a vítima como objeto desta e se ocupa de realizar investigações empíricas acerca da propensão de sujeitos para se tornarem vítimas, relações entre delinquente e vítima, danos sofridos pela vítima do delito, mecanismos de reparação, programas de prevenção do delito etc [1].

Já a vitimodogmática busca inserir a perspectiva da vítima na dogmática penal, a exemplo do que se dá com alguns critérios de imputação objetiva, como a autocolocação da vítima em perigo [2] ou quando se realiza a dosimetria da pena, havendo aqui duas correntes, a primeira que estende a vitimodogmática para afastar a relevância penal de certas condutas com base no princípio da autorresponsabilidade e a segunda que limita sua aplicação ao cálculo da pena.

Pois bem, no caso que ganhou repercussão recebi mensagens de alunos com suposta "folha de antecedentes" da vítima — suposta, pois não se sabe a veracidade da fonte e se corresponde a ele, já que seu prenome e sobrenomes comuns aumentam a chance de homônimos e, ademais, cediço de sobejo o fenômeno das notícias fraudulentas que em nosso colonialismo cultural preferimos chamar de fake news —, que traria suposto rol de infrações penais.

Referido artifício, de desqualificar ou desmoralizar a vítima, muito usado no Tribunal do Júri, tem ali seu mais propício lugar de fala, já que neste âmbito se permite maior gama de argumentos não estritamente técnicos e que afetarão com mais facilidade os jurados. Racionalmente não faz sentido, a menos que exista algum critério de origem vitimodogmática para afastar o delito, que a desmoralização da vítima interfira em sua caracterização. Contudo, o critério da íntima convicção aplicado ao júri permite que a irracionalidade (a meu ver sempre presente em qualquer forma de agir humana) se dê com mais vigor.

Nesse exato momento tive uma epifania, relativa ao argumento supostamente neutro [3] de que "a vítima é um criminoso" ou de que "pensou-se que seria um homem de família". Em verdade, referido ato retórico é de uma perversidade tamanha, pois busca afastá-lo da pecha de vítima (que é o rótulo técnico-jurídico a ele pertencente no feito criminal relativo ao Carrefour), amparado em outros atos que nada têm a ver com o "caso Carrefour" e, destarte, afastar dele o sentimento de empatia, pois se trata de "um criminoso" e, portanto, não merece nossa compaixão. Com isso se busca, ainda que de modo dissimulado, afastá-lo da condição de vítima desse ato para vê-lo como um sujeito contra o qual uma conduta violenta e fatal acaba por ser mitigada ou até "justificada" moralmente, afinal, é um "criminoso". Em suma, com isso ele se desumaniza e a perda da empatia (se é que existia) é uma consequência inevitável. Irracionaliza-se a análise do caso a partir de uma suposta "culpabilidade por conduta altamente reprovável de vida" que me faz lembrar a doutrina mezgeriana (comprovado penalista do nazismo), mas com ela não se confunde, visto que aqui há um componente agravante: o critério é direcionado à vítima, e não ao acusado.

Em primeiro lugar, parte-se de uma informação que sequer se sabe verdadeira e, ainda que assim o seja, o fato de ter sido averiguado, indiciado, acusado ou condenado em outros feitos não transmuta o rótulo de vítima no caso em apreço.

Curiosa a necessidade que o ser humano tem de colocar as pessoas em compartimentos e rotulá-las. Não sei ao certo o motivo disso e não tenho no momento conhecimento para intuir o motivo a partir de pressupostos epistemológicos. De todo modo, evidente que referida rotulação maniqueísta é perversa simplesmente por desprezar a complexidade humana e, portanto, a própria condição humana extremamente rica. A classificação aproxima o humano de uma "coisa", pois o reduz. O mesmo sujeito pode ser e certamente será "autor de crimes" em diversos momentos e, ao mesmo tempo, vítima de outros, e tudo isso pode se dar por um "pai de família". Ora, para os amantes da obra-prima "Poderoso Chefão 1", basta lembrar que a genial construção, aliada à encenação brilhante de Marlon Brando, mostra Don Corleone como um mafioso implacável e, ao mesmo tempo, um sujeito que protegia e cuidava de sua família melhor do que muitos "cidadãos de bem".

Se por um lado os rótulos de "sujeito ativo da infração penal" e "vítima ou sujeito passivo da infração penal" são reducionistas e não correspondem ao mundo da vida dado o que expus, por outro lado, correspondem a recorte técnico feito para designar sujeitos em processos-crime específicos, mas que carregam forte carga moral e a deturpação de tais rótulos fatalmente traz consigo uma deturpação do efeito comunicativo que pode ser usada de modo perverso para desconstruir movimentos que tratam a vítima naquele feito como tal. Destarte, mantém-se de modo abstruso o status quo de repressão e a cultura de higienização social a demonstrar que de neutro nada tem referido artifício. Em suma, a análise de supostos antecedentes criminais de uma vítima como forma de desmoralizá-la gera uma inversão de valores que não se diferencia muito do que se fez na audiência do "caso Mariana Ferrer", em que se quis comunicar de modo oculto que ela teria sido a própria culpada pela suposta relação sexual ocorrida.

 


[1] Tratado de Criminologia, Tomo I, Antonio García-Pablos de Molina, pág. 109.

[2] La consideración del comportamento de la víctima em la teoria del delito: observaciones doctrinales y jurisprudenciales sobre la "víctimo-dogmática": Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 34, págs. 163/194.

[3] Referida neutralidade sequer existe como aprendi e aprendo com os mestres de academia e de vida, Willis Santiago Guerra Filho e Gustavo Octaviano Diniz Junqueira.

Autores

  • Brave

    é assistente jurídico em segunda instância do Tribunal de Justiça de São Paulo, pós-graduado em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público e pela Universidade de Salamanca (Espanha), pós-graduando em Filosofia do Direito pela PUC-MG, mestre e doutorando em Direito Penal pela PUC-SP, professor de Direito Penal do Damásio Educacional e coautor da obra "Lei Anticrime" e de artigos na área penal.

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