Opinião

Audiência de custódia por videoconferência é o próprio racismo estrutural

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24 de novembro de 2020, 10h35

Pouco depois da declaração da pandemia pela OMS, em 11 de março deste ano, o sistema de Justiça precisou se adaptar à nova realidade: a necessidade de aliar a prestação jurisdicional ao isolamento social. Com isso, as audiências passaram por profundas modificações. Das já regulamentadas videoconferências à completa virtualização, o Conselho Nacional de Justiça e diversos tribunais editaram normativas tendentes à regulamentação das novas formas de realização de atos marcadamente presenciais.

No novo contexto, as audiências de custódia deixaram de possibilitar às pessoas presas em flagrante que fossem conduzidas à presença do juiz. É da essência desse tipo de audiência a imediação entre o juiz e o preso. Isso porque, além da questão da liberdade, há o controle e a fiscalização das práticas de tortura e maus-tratos no momento da prisão.

Nos últimos cinco anos, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro participou de cerca de 90% das audiências de custódia realizadas no Estado, compilando e coletando dados que revelam uma maioria de negros presos e agredidos no momento da prisão. Os dados mais recentes, coletados entre 2017 e 2019, informam que 23,5 mil custodiados foram entrevistados por defensores públicos no período. Desse total, releva anotar os seguintes dados: 78% dos custodiados é de negros; os negros são menos soltos (27,4%) do que os brancos (30,8%); os negros são 80% dos que relataram ter sofrido tortura/maus-tratos (38,3% do total).

A realidade da tortura não pode ser vista ou documentada adequadamente numa audiência de custódia pela videoconferência. Daí porque, no Rio de Janeiro, suspensa a apresentação dos presos em 19 de março — substituída pela análise dos autos de prisão em flagrante —, foi retomada a sua realização presencial em 3 de agosto com a adoção de protocolos de segurança rígidos, não tendo havido um só caso de contaminação de juízes, promotores ou defensores públicos atuando no ambiente das audiências de custódia.

Sem a condução da pessoa presa à presença do juiz, o caso de Alice (nome fictício) talvez permanecesse oculto. Flagrada pelas câmeras de segurança furtando gêneros alimentícios do supermercado Carrefour no bairro do Cachambi, Rio de Janeiro, Alice foi torturada por seguranças do estabelecimento. As agressões narradas por Alice se deram "com madeira na região glútea", apontando o laudo constante dos autos "ferida entre o ânus e o cóccix, com sinais flogísticos (de inflamação), drenando secreção purulenta por orifício de 2 cm e outro de 1 cm e, como forma de castigo, sofreu lesões no ânus".

O ocorrido com Alice foi constatado em audiência de custódia, com a presença da magistrada Cristiana Cordeiro e de representante da Defensoria Pública [1] e do Ministério Público. A juíza tuitou relembrando o caso, em que a custodiada resistiu em lhes contar "o mais cruel, e só falou para a psicóloga que a atendeu antes de ser liberada: foi sodomizada, estuprada, como 'lição e castigo'".

O caso, ocorrido em 2017, merece lembrança, seja porque se cogita, mais uma vez, permitir a realização das audiências de custódia por videoconferência; seja porque, em Porto Alegre, um homem morreu após a ação violenta de funcionários do mesmo Carrefour e, sobretudo porque o homem morto era negro e a mulher violentada também.

As estruturas do racismo estão no que as estatísticas revelam em panorama maior, mas sobretudo na violência concreta aplicada ao corpo negro. Contundente ou sutil, essa violência pode estar contida na mecanizada e irrefletida decretação de prisões preventivas ("cultura do encarceramento") ou, de modo ainda mais imperceptível, no retrocesso consistente em autorizar que as audiências de custódia prescindam da condução de presos à presença do juiz.

As mais altas instâncias do Poder Judiciário não ignoram as formas e aparências sob as quais o racismo se esconde e se estrutura no ambiente judiciário brasileiro. No mês passado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), já sob a presidência do ministro Luiz Fux, publicou relatório de atividade de grupo de trabalho (GT) destinado ao estudo de políticas judiciárias voltadas à igualdade racial nos tribunais. Criado pela Portaria CNJ nº 108, de 8 de julho, uma das atribuições do GT consiste em "apresentar propostas de políticas públicas judiciárias que objetivem modernizar e dar maior efetividade à atuação do Poder Judiciário no enfrentamento do racismo estrutural que se manifesta no país e também institucionalmente no sistema de Justiça". Trata-se de fecunda iniciativa que, no entanto, deve estar consciente de que as estruturas que almeja enfrentar parecem não estar dispostas a ceder.

Em 9 de novembro, o Colégio Permanente de Corregedores-Gerais dos Tribunais de Justiça do Brasil dirigiu-se ao presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal para questionar a vedação da realização das audiências de custódia por videoconferência, prevista no artigo 19 da Resolução CNJ nº 329/2020. No documento, lê-se que "a obrigação de condução à presença do juiz não indica necessariamente que seja a presença física, não existindo qualquer impedimento legal que a condução seja por via remota. Vale destacar que as webcams possuem qualidade de imagem excelente, existindo outras ferramentas tecnológicas, inclusive, de baixo custo, que permitem que o apreendido em flagrante possa ser ouvido nas delegacias ou em outros estabelecimentos, com garantia de seus direitos constitucionais, inclusive permitindo que o magistrado tenha condições de visualizar todo o ambiente onde o conduzido se encontre, trazendo melhoria à prestação do serviço em si e a garantia dos direitos".

É um modo sutil de dificultar o controle da violência policial, que, como mostram os dados, alcança muito mais negros do que brancos. Tal conclusão, certamente seria considerada "infiltração ideológica" nas "causas sociais" pelos 34 juízes do Estado de Pernambuco que assinaram manifesto contra o curso online intitulado "Racismo e Suas Percepções na Pandemia" [2]. O evento, organizado pela Associação dos Magistrados do Estado (Amepe), foi repudiado por subscritores muito conscientes de sua topografia na sociedade brasileira, o que fica claro ao asseverarem no manifesto que têm "uma missão diferenciada, que é julgar" e que por serem "o topo da carreira pública e membros de poder" não podem "abraçar causas ideológicas e essa causa é de uma ideologia".

Enxergam na mera realização de um evento de conscientização da questão racial brasileira uma forma de hipotecar "apoio a correntes ideológicas", além de provocar "cisões internas, criação de subgrupos de juízes".

Não deixa de ser curioso observar que as estruturas ideológicas que perpetuam o preconceito e a violência compõem justamente a cisão fundamental da formação social brasileira, enraizada em três séculos de escravidão e atualizada dia após dia de modo contundente na dor e no sofrimento de corpos e famílias negras. Mas também na desigualdade social e no esvaziamento de garantias, como a de simplesmente poder ser conduzido à presença de um juiz que possa ver de perto o que a violência de Estado ainda é capaz de fazer com os negros e negras deste país. 

 

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