Direito Digital

Lei alemã ou movimento global? O debate sobre regulação de redes contextualizado

Autor

  • Ricardo Campos

    é docente nas áreas de Proteção de Dados Regulação de Serviços Digitais e Direito Público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main doutor e mestre pela Goethe Universität coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional diretor do Instituto Legal Grounds e sócio do Warde Advogados.

24 de novembro de 2020, 8h03

Passadas as eleições de 2020, aos poucos retoma-se a discussão em torno do PL 2630 sobre a necessidade de maior transparência e novos mecanismos para defesa de direitos dentro da economia digital. Nesse debate, a lei alemã de transparência nas redes sociais, a Netzwerkdurchsetzungsgesetz (NetzDG), tem sido alvo de críticas e ataques por brasileiros, não só em artigos como também em discussões nas próprias redes sociais, no sentido de que o estatuto normativo alemão seria um desenvolvimento errático, contraproducente, até mesmo um "gol contra" da Alemanha, razão pela qual o Brasil não deveria nela se espelhar. Naturalmente todo estatuto jurídico, como tudo na vida, não é regido por unanimidades. Não por isso, o tribunal constitucional tenha declarado a lei inconstitucional, e sua última reforma foi no sentido de aprimorá-la ainda mais, e não pelo contrário. As críticas, porém, parecem refletir uma espécie de oposição geral, com tonalidade "ideológica" ou até mesmo por interesses sempre legítimos —, mas velados contra a regulação das plataformas, o que talvez explique o tom exaltado que acaba por levar a uma série de erros sobre o Direito alemão. Especialmente nas redes, onde não há qualquer compromisso com o rigor acadêmico, as postagens de ataque à NetzDG podem até mesmo receber a alcunha de "desinformação".

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Diante desse bombardeio irrefletido e desencontrado, o melhor remédio é a informação, objetivando contribuir para que a formação de convicção independente dos atores relevantes seja acurada. Deixando de lado equívocos materiais sobre o Direito alemão, que o leitor interessado pode esclarecer com uma simples consulta à Wikipedia, como, por exemplo, sobre a data de promulgação da Constituição alemã. Ela não começa a ser esboçada nas trincheiras ocupadas pela sexta infantaria do exército alemão sob o comando do General Friedrich Paulus, e tampouco ela é promulgada na sala 600 do Palácio de Justiça de Nürnberg no dia 20 de novembro de 1945. Mas é fruto do trabalho de um conselho parlamentar presidido por Adenauer, entrando em vigor oficialmente no dia 25 de maio de 1949 (!). 1945 é a data do "Stunde Null" como descrito por Michael Stolleis, uma data marcada por escombros, cinzas e completa anomia social e não a data correta de entrada em vigor da Grundgesetz [1]. Sapere audeVoltemos ao ponto.

Ao contrário da tese sobre o movimento errático e inusitado da lei alemã na qual o Brasil desanimadamente buscaria inspiração, a verdade é que o debate brasileiro (assim como o alemão e de diversos outros países) é reflexo de um movimento global de adaptação do Direito às novas condições postas pela economia digital. Movimento esse que apenas se inicia pela estruturação de uma internet completamente distinta de 20 anos atrás. Hoje, pode-se dizer que para maioria da população a internet é mediada de inicio ao fim por alguns poucos serviços. Se levarmos em conta a formação e estruturação da esfera pública, essa mediação é ainda mais drástica.

Voltando ao ataque à lei alemã. Por vezes, um erro que parece tolo, mas que merece atenção. Afirma-se que a lei NetzDG teria entrado em vigor apenas em 1º de janeiro de 2018. Na verdade, o dia 1º de janeiro de 2018, conforme disposto no §6º "Übergangsvorschriften" da Netzwerkdurchsetzungsgesetz, marca o final do período de transição dentro do qual as empresas tinham que implementar as exigências procedimentais da NetzDG, já em vigor desde 1º de outubro de 2017, tendo sido promulgada no mês anterior pelo Bundestag alemão. Portanto, um fator importante, a NetzDG já completou três anos de vigência, cumprindo, assim, o período de vigência para avaliação independente, coordenada pelo Ministério da Justiça alemão, sobre os possíveis efeitos negativos e objetivos cumpridos [2]. Assim, temos à disposição uma avaliação acurada de impacto daquela lei, portanto uma fonte relevante, principalmente para aqueles que tenham a pretensão de fazer críticas. Esse estudo foi realizado, por requerimento do governo alemão, pelo professor da Humblot Universität zu Berlin Martin Eifert, que atestou a eficácia da NetzDG, além de afastar que tenha ocorrido o efeito colateral de overblocking [3] tão alarmado pelos opositores.

Um novo desenvolvimento de adaptação do Direito às novas circunstâncias digitais, que se iniciou com a lei alemã NetzDG, ganhou vida no último dia 7, quando entrou em vigor o novo Medienstaatsvertrag (MStV) que regula os direitos e obrigações de todos os fornecedores de mídia na Alemanha. A novidade agora é a inclusão dos novos gatekeepers da comunicação, ou seja, as plataformas digitais em suas diversas funcionalidades como objeto do regime regulatório alemão. Isso se deu com a criação de três novas categorias no regime regulatório: no §2º II nr. 14, plataforma mediática ("Medienplattform"), no §2º II nr. 16, intermediários ("Medienintermediär"), §2º nr. II 22 serviço de compartilhamento de vídeo ("Video-Sharing-Dienst"). Comparativamente ao regime regulatório brasileiro da comunicação, seria como se o legislador brasileiro reconhecesse os novos gatekeepers como decisivos na estruturação da comunicação social diária da população e os incluíssem em algumas das obrigações dos artigo 220 e seguintes da Constituição de 1988, adaptando, assim, aos novos intermediários certas condicionantes e obrigações válidas também para antigos intermediários da comunicação.

Nesse novo marco regulatório alemão, as obrigações para os novos intermediários da comunicação centram-se basicamente em três categorias: a) deveres de transparência (§85 e §93), deveres de não discriminação (§82 e seguintes e §94) e necessidade de privilegiar determinados conteúdos (§81 e §84 incisos de 3 a 7, "positive Vorgaben für Informationsleistung"). O objetivo desse novo marco regulatório enquadra-se dentro da tradição alemã de regulação dos meios de comunicação que visa a conferir parâmetros de qualidade e diversidade à informação de massa, especialmente pela característica peculiar desse tipo de comunicação que se diferencia da privada em desempenhar papel decisivo na formação da opinião pública dentro de uma democracia. O novo Medienstaatsvertrag (MStV) é a continuação após a lei alemã NetzDG de um longo processo de adaptação do Direito e das instituições democráticas ao papel central que os serviços digitais desempenham na vida cotidiana da população e da economia como um todo. Esse movimento não é um ponto fora da curva, como não o é a lei alemã NetzDG.

Engana-se quem acha que esse movimento de adaptação do Direito para proteção de direitos fundamentais ao mundo digital seja um caminho exclusivo e solitário da Alemanha. Mesmo no país de origem de alguns dos principais serviços digitais, os Estados Unidos, foi apresentada proposta de lei pelos senadores John Thune e Senador Brian Schatz intitulada de "Platform Accountability and Consumer Transparency Act", ou simplesmente "PACT Act", visando à reforma da seção 230 do Communications Decency Act de 1996. Nesse contexto, nas últimas semanas, ocorreram no senado americano audiências públicas sobre a reforma da seção 230 objetivando justamente a reformulação da responsabilidade dos novos intermediários na internet. Também no plano europeu está em fase de conclusão o "Digital Services Act" (DSA), que reformula profundamente as obrigações dos novos intermediários da internet contidas na diretiva do comercio eletrônico de 2000. Esse novo regulamento terá um impacto global muito maior do que a lei alemã NetzDG e certamente servirá de inspiração, em seus pontos positivos, para o Brasil.

O Brasil não foge à regra global. Por um simples motivo: a transformação da vida contemporânea pelo impacto da digitalização e, como diz David Gugerli, pela completa migração da vida cotidiana para o mundo digital [4], exige do legislador sabedoria para criação de novos mecanismos jurídicos para a defesa das instituições democráticas, asseguramento de condições de exercícios de direitos e garantias e vedação de efeitos negativos discriminatórios no mundo online. Isso não ficará restrito ao PL 2630. Esse é um primeiro passo, do qual seguirão inevitavelmente novos desdobramentos. Vale lembrar que o artigo 19 do MCI, que estrutura a responsabilidade dos intermediários no Brasil, é atualmente objeto de recurso extraordinário no STF. Nesse sentido, é inadequado supor que a iniciativa de regulação de redes sociais no Brasil tenha sido um impulso impensado de cópia da regulação alemã. Mesmo porque a diversidade de temas abordados no PL 2630 foge em muito o escopo da lei alemã. Só para nomear alguns deles: regulação de mensageira privada, simetria de tratamento entre empresas de publicidade nacionais e plataformas internacionais, remuneração do jornalismo, transparência e direito de defesa na moderação de conteúdo privado das plataformas entre outros. Uma afirmação dessas reflete apenas o desconhecimento tanto do contexto de debate brasileiro quanto ao desconhecimento dos revestimentos da dogmática alemã sobre o assunto.

Alguns elementos da lei alemã NetzDG entraram, sim, inevitavelmente na discussão e no texto do PL 2630. Um deles é a obrigatoriedade de relatórios de transparência pelas empresas de serviços digitais. Alguém ousaria em posicionar-se contra essa influencia alemã pela necessidade de transparência? Um polêmico aspecto, a cláusula de 24 horas para remoção de conteúdo, o qual levou a lei francesa formulada pela deputada Laetizia Avia com quem tive a honra debater o tema há quatro semanas a ser declarada inconstitucional, foi algo que o projeto substitutivo apresentado pelo senador Anastasia no Senado Federal, deixou de lado, em boa parte acompanhando proposta de nossa autoria em artigo acadêmico [5]. Por outro lado, pilar importante da lei alemã, a autorregulação regulada foi incluída no PL 2630 por se apresentar como instituto moderno que institucionaliza uma cooperação ou regulação dinâmica entre serviços digitais e poder público. Visa-se com o instituto não só a fugir da lógica maniqueísta expressa, por um lado, em uma "luta contra o capitalismo de plataformas" [6], e, por outro, numa defesa cega e muitas vezes velada por terceiros de interesses meramente econômicos. Através do instituto procura-se trazer elementos que respaldam e legitimam a atuação privada ao aproximá-la de objetivos condensados em prol do interesse público. A solução para o problema encontra-se justamente na institucionalização de mecanismos de cooperação, no qual agrega-se o conhecimento das empresas do setor e com a devida orientação por interesses públicos.

A sinergia objetivada pela carta selada e carimbada da defesa do status quo no contexto do debate sobre a responsabilidade dos novos intermediários da comunicação é algo extremamente legítimo dentro do mercado de ideias plural e democrático. As reações impulsivas nas redes, em lives, blogs jurídicos com conotações ideológicas, também merecem espaço. Porém, no âmbito do debate acadêmico, vale o rigor técnico e não cabem nem o obscurantismo quanto ao cenário global, nem o desconhecimento do objeto tratado, devendo ser o tema abordado com imparcialidade e ciência dos novos desenvolvimentos internacionais sobre o tema, retirando de pauta a visão equivocada de que o debate brasileiro e a respectiva iniciativa parlamentar seria um produto determinístico de uma única lei estrangeira. O Brasil e as democracias constitucionais ocidentais estão diante de um grande desafio trazido pela dinâmica dessa nova infraestrutura pública de comunicação, com diferentes nuances e pontos críticos de injunção, que merecem a cooperação das melhores cabeças, numa reflexão madura, informada, neutra e intelectualmente honesta.

 


[1] Michael Stolleis, "Geschichte des öffentlichen Rechts in Deutschland". Vierter Band 1945 – 1990. Munique 2012, p. 25 ss.

[2] BT-Drucks. 18/12356, p. 18.

[3] Martin Eifert, "Evaluation des NetzDG Im Auftrag des BMJV", p. 54. Prof. Martin Eifert escreveu o prefacio da 3 edição agora no prelo pela editora RT do livro „fake news e regulação“, o qual organizo junto com Georges Abboud e Nelson Nery Jr.

[4] David Gugerli, "Wie die Welt in den Computer kam. Zur Entstehung digitaler Wirklichkeit". Frankfurt am Main 2018.

[5] Um primeiro esboço da emenda substitutiva está presente encontra-se em Ricardo Campos, Juliano Maranhao, "Fake News e Autoregulação regulada das redes sociais no Brasil: fundamentos constitucionais", em: Ricardo Campos, Georges Abboud, Nelson Nery Jr. (Orgs.) Fake News e Regulação, RT 2020, p. 321 ss. Esse artigo foi trabalhado dentro do gabinete do senador Anastasia junto com Dr. Flavio Unes e aprimorado sendo apresentado como emenda substitutiva no senado.

[6] Shoshana Zuboff, "The Age of Surveillance Capitalism", London 2019.

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