Opinião

Os 30 anos do ECA e os sujeitos em quarentena permanente

Autor

  • Cátia Soraia Jesus

    é advogada servidora pública federal em Porto Alegre especialista em Direitos Fundamentais ex-assessora jurídica na Defensoria do Paraná e ex-conciliadora no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

24 de novembro de 2020, 6h03

De repente 30. A proposição não se trata de uma conhecida referência cinematográfica, mas, sim, de uma manifestação perplexa diante da ligeireza do tempo, considerando os avanços feitos e os desafios que ainda precisam ser superados. No dia 13 de julho deste ano — enquanto o Brasil vivia um dos picos da pandemia da Covid-19 — o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) [1] completou seus 30 anos de existência.

Considerado um marco legal no reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos, o estatuto aniversariante assumiu o resguardo contido no artigo 227 da Constituição Federal Brasileira de 1988 [2], que inaugurou um princípio protetivo ao dispor sobre o dever da família, da sociedade e do Estado de garantir àqueles — "com absoluta prioridade" — o direito à saúde, à educação, dentre outros. Importantes ações na defesa de interesses individuais e coletivos dos jovens foram realizadas no transcorrer desses anos, uma vez que assegurou o alcance aos seus direitos fundamentais, apresentando meios para combater abusos psicológicos e físicos que resultaram em infâncias roubadas por gerações.

E quando essa parcela da população naturalmente vulnerável encontra-se numa situação que necessita de maior atenção devido ao fato de ser uma pessoa com deficiência? Como o poder público e a sociedade civil têm se organizado para alcançar esse escopo tutelar?

Nesse caso, o ECA, em seu artigo 11, parágrafo 1º, assegura o atendimento especializado às crianças e aos adolescentes com deficiência. Porém, em tempo de pandemia, o que concretamente tem sido realizado para que esses indivíduos e suas famílias sejam acolhidos nas suas especificidades e, por consequência, as normas legais não sejam apenas folhas de papéis com escritos, mas, sim, reais e efetivas, consoante assinala Ferdinand La Salle [3].

Os atos de exclusão às famílias das crianças com deficiência são constatados desde a Idade Antiga. Exemplo disso são os relatos de que na antiga Grécia, em Esparta, aquelas com deficiência eram abandonadas em ambientes hostis como as montanhas e, em Roma, eram lançadas aos rios por serem comparadas a alguma força do mal e com potencial de corromper as que eram consideradas "sãs" [4].

Felizmente, essas práticas não fazem parte da atualidade. Todavia, exigentes demandas surgem, sobretudo no tempo singular em que estamos vivendo. Isso porque as crianças com deficiência, além do isolamento social que a população em geral está submetida, estão também passando pelo distanciamento de atividades relevantes para a obtenção de uma qualidade de vida. Como por exemplo, ir à fisioterapia, ao fonoaudiólogo, entre outras atividades.

Aduz a professora Eugênia Souza que:

"Muitas crianças, para além do convívio social, também têm o convívio em terapias. O momento da terapia é um momento de interação social afetiva, em que ela está em um ambiente seguro, livre de bullying, livre de um contexto social que às vezes é adoecedor. O que tem acontecido nesse momento é o afastamento dessa convivência, e isso impacta sim no desenvolvimento delas" [5].

Além das preocupações com o desenvolvimento terapêutico de seus filhos, as famílias passaram a desenvolver tarefas escolares em suas casas, e precisaram dividir o tempo que já dedicavam aos cuidados especiais (higiene, alimentação, segurança) com a rotina de aprender a manusear recursos tecnológicos — quando os têm. Ainda passaram a ter de lidar com materiais didáticos não adaptados e que não oferecem nenhuma estratégia específica para o perfil do aluno com deficiência. A pandemia escancarou ainda mais a invisibilidade dessas crianças que se deparam, de forma potencializada, com as limitações do ensino remoto.

A criança com deficiência depende de pessoas que precisam quebrantar a quarentena para que lhe seja garantida uma proteção eficaz, em razão disso, aumentaram os riscos de contágio pelo vírus em seu contexto familiar. Muitas vezes, quem assume essas funções são as mulheres "cuidadoras do mundo" [6], que exercem diferentes funções de dedicação na sociedade e, dessa forma, as responsabilidades sobrepesam em seus ombros ocasionando a elas doenças emocionais que, não raro, enfrentam sem acompanhamento psicológico.

Mariana Rosa, consultora no assunto de inclusão das pessoas com deficiência, afirma que:

"Nesta oferta da escola para o momento ficam segregados todos aqueles e aquelas que não souberem ou não tiverem condições de responder a contento à proposta. É razoável? Quem são essas crianças e jovens que ficam para depois? Entre tantas — das periferias, das comunidades rurais, ribeirinhas, daquelas que vivem em ambientes de violência doméstica, das migrantes ou refugiadas —, estão também as crianças com deficiência. De novo. Aquelas para quem o plano de aula nunca é pensado. Aquelas para quem nem a matrícula na escola é garantida. Aquelas de quem nunca se presume competência. Aquelas cujo direito de estar em uma escola 'comum' ainda é questionado. Aquelas cujas mães têm se desdobrado para adaptar materiais. Aquelas de quem se pensa que nada tem a oferecer. Aquelas que são vistas como falhas, doentes, obstáculos. Aquelas cuja presença na escola precisa ser permanentemente negociada. Aquelas que não são vistas, porque há sempre um laudo em primeiro lugar" [7].

Por fim, ainda mais delicado, importante refletirmos se a proteção do ECA tem alcançado sua efetividade às crianças com deficiência na sua primeira infância — principalmente aquelas com idade entre zero e três anos, tendo em vista que a legislação referente não enuncia a obrigatoriedade de serem incluídas nos estabelecimentos de ensino. Importa ressaltar que essa fase da vida é fundamental para o desenvolvimento infantil, e uma apropriada intervenção precoce diminui os fatores de risco que possam comprometer um bom desenvolvimento da criança com deficiência, porque é nesta fase da vida que verificamos uma "rápida maturação estrutural e cerebral, à maior plasticidade neural e ao desenvolvimento de atividades fundamentais que sustentarão ganhos mais complexos" [8]. Assim, as professoras Marlene Rozek e Gabriela Martins apontam que "nessa perspectiva, quanto mais cedo se possibilita ao sujeito com deficiência o acesso a esses recursos, maior será o impacto em sua qualidade de vida, daí a relevância de programas de intervenção precoce (…)" [9].

Diante do que vimos, para essas famílias, é possível flexibilizar suas urgências biológicas e materiais enquanto convivem com as faces da recém-adquirida quarentena (sim, porque já viviam em outras) que os assolam até que se concretize o tal do "vai passar"?

Entendemos que a pandemia pegou a todos subitamente, mas as famílias dessas crianças têm sofrido, historicamente, distanciamentos do poder público e o momento atual só fez aumentar as desigualdades sociais. Precisamos ultrapassar as "montanhas" e atravessar os "rios" da segregação e o Estatuto da Criança e Adolescente, juntamente com outros mecanismos legais, tem estimulado muitos avanços na defesa dos direitos dessas pessoas.

Contudo, alcançar a proteção integral contida no primeiro artigo da citada norma balzaquiana é um desafio constante. Torna-se crucial proporcionarmos a essas pequenas pessoas com deficiência, e suas famílias, uma sociedade que os trata de forma equitativa para, assim, os libertar da "quarentena permanente".

 

Referências bibliográfica
[1] BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm.

[2] BRASIL. Constituição de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.

[3] LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. Rio de Janeiro. Editora Lumem Juris. 5ª Ed. 2000.p. 27.

[4] CARDOSO, Marilene da Silva. Aspectos Históricos da Educação Especial: Da Exclusão à Inclusão — Uma Longa Caminhada. In: STOBÄUS, Claus Dieter; MOSQUERA, Juan José Mouriño et al (Org.). Educação Especial: em direção à Educação Inclusiva. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p.15.

[5] VASCONCELOS, Júlia. Pandemia intensifica os desafios vividos por famílias de crianças com deficiência. Brasil de Fato. Pernambuco, 21.08.20. Disponível em: https://www.brasildefatope.com.br/2020/08/21/pandemia-intensifica-desafios-vividos-por-familias-de-criancas-com-deficiencia.

[6] SANTOS, Boaventura de Souza. A Cruel Pedagogia do Vírus. Coimbra, Portugal: Edições Almedina, 2020. 32 p. Disponível em: https://www.cpalsocial.org/documentos/927.pdf.

[7] ROSA, Mariana. As crianças que são deixadas para trás. Lunetas. São Paulo. 2020. Disponível em: https://lunetas.com.br/as-criancas-com-deficiencia-que-sao-deixadas-para-tras/#menu.

[8] MARINI, Bruna et al. Revisão sistemática integrativa da literatura sobre modelos e práticas de intervenção precoce no Brasil. Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil. 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1984‑0462/;2017;35;4;00015.

[9] ROZEK, Marlene; MARTINS, Gabriela Dal Forno. Bebês com deficiência no Brasil: um olhar a partir dos programas governamentais e das pesquisas nacionais. Educação. Porto Alegre. 2020. V.43. p. 1-14 https://doi.org/10.15448/1981-2582.2020.1.35435.

Autores

  • é advogada, servidora pública federal em Porto Alegre, especialista em Direitos Fundamentais, ex-assessora jurídica na Defensoria do Paraná e ex-conciliadora no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

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