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Notas sobre o fenômeno comumente chamado de prescrição intercorrente

Autor

  • Adroaldo Agner Rosa Neto

    é mestrando em Direito das Relações Sociais pelo programa de pós-graduação em Direito da UFPR; membro efetivo do Instituto dos Advogados do Paraná; e advogado sócio do PX Advogados.

23 de novembro de 2020, 15h29

A combinação entre a prática forense e a curiosidade teórica, por vezes, gera inquietações naqueles que vivem o Direito. As linhas que seguem, longe de dissecarem cientificamente o tema ou servirem de guia para os profissionais na aplicação da figura, pretendem apenas dividir com os leitores desta respeitada coluna uma dessas mencionadas inquietações. Desta feita, sobre a peculiaridade do fenômeno comumente chamado de prescrição intercorrente.

ConJur
A jurisprudência [1] e parte da doutrina [2] apontam o parágrafo único do artigo 202 do Código Civil vigente como fundamento da prescrição intercorrente. Mesmo com todas as insuficiências do diploma no regramento da prescrição "comum" [3], parece ser tentador para alguns identificar as figuras: a prescrição intercorrente seria mera continuação da prescrição, dentro do processo. Em grossíssimos termos comparativos, as duas liberam o devedor/réu da sujeição ao credor/autor, pressupondo a inação dos sujeitos ativos da relação por certo lapso de tempo.

Porém — e aqui reside a inquietação —, a prescrição intercorrente parece guardar características peculiares que lhe dão autonomia existencial frente à prescrição propriamente dita [4]. A princípio, citem-se seis.

A primeira característica é que a prescrição intercorrente não exige, necessariamente a inação do autor. O artigo 921 do Código de Processo Civil de 2015, seguindo modelo da Lei nº 6.830/80, prevê a suspensão da execução por um ano, caso não sejam encontrados bens penhoráveis. Findo esse prazo, segue-se o arquivamento dos autos. Com o arquivamento começa a contagem da prescrição intercorrente. Caso consumada nestes termos, não há uma inação do exequente a fundamentá-la. Ela se dá antes pela falta de bens do devedor que pela falta de atividade do titular do crédito. Portanto, sob esse viés, a prescrição intercorrente é termo mais extenso que a prescrição comum, uma vez que a inércia do credor, quando pode agir, é requisito desta [5].

A segunda característica da prescrição intercorrente é quanto ao objeto que atinge. Enquanto a prescrição comum encobre a pretensão (artigo 189 do CC/02), a prescrição intercorrente atingiria a "[…] proteção ativa […] ao possível Direito material postulado, expressado na pretensão deduzida […] [6]". E essa diferença de objeto aponta para as características seguintes.

A terceira delas está ligada com a amplitude do objeto da prescrição intercorrente. No âmbito da prescrição comum, há pretensões que não são encobertas, tidas imprescritíveis ou perpétuas. Isto parece não acontecer com a prescrição intercorrente. Não haveria proteções ativas ao possível Direito material fora de sua incidência.

A quarta característica da prescrição intercorrente é quanto ao campo de atuação. A prescrição intercorrente é fenômeno endoprocessual, verificável apenas no curso de uma demanda. A prescrição comum é fenômeno de Direito material e opera-se mesmo sem a existência de um processo. Neste aspecto, a prescrição intercorrente é termo mais restrito que a prescrição comum.

A quinta característica da prescrição intercorrente é quanto ao fundamento sistemático. Ela é um fenômeno processual e, por isso, um fenômeno de Direito público [7] e está matizado pela estrutura e pelas funções desse ramo [8]. Diverso da prescrição comum, ligada ao Direito privado.

Por fim, a sexta característica da prescrição intercorrente reside em sua previsão normativa. Como já dito, jurisprudência e boa parte da doutrina encontram no parágrafo único do artigo 202 do Código Civil o fundamento legal da prescrição intercorrente.

Nada obstante isso, numa interpretação lógico-sistemática, a regra do artigo 202 refere-se à prescrição propriamente dita, prevista no artigo 189 do mesmo diploma. A simples menção ao último ato do processo como baliza para recontagem do prazo não parece bastar para justificar uma entidade nova e autônoma como é a prescrição intercorrente. Talvez seja melhor pensar esta figura a partir do próprio Código de Processo Civil, notadamente dos artigos 921 e 924.

Esses traços sugerem uma peculiaridade da prescrição intercorrente que não passa totalmente despercebida. Mesmo partindo de outras bases, Marinoni, Arenhart e Mitidiero anotam que a prescrição intercorrente é "[…] figura anômala — muito mais parecida com a perempção ou com a preclusão do que com a prescrição […] [9]". Quiçá a posição dos autores estimule o aperfeiçoamento da dogmática própria da prescrição intercorrente.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


[1] Assim, na tese firmada no Incidente de Assunção de Competência nº 1, instaurado no julgamento do Recurso Especial nº 1.604.412/SC.

[2] Exemplificativamente, ARRUDA ALVIM, José Manoel. Da prescrição intercorrente. In: Revista Forense, v. 415, jan.-jun. 2012.

[3] LEONARDO, Rodrigo Xavier. A prescrição no código civil brasileiro (ou o jogo dos sete erros). In: Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 51, a. 2010, p. 102 e ss.

[4] Já se teve a oportunidade de enfrentar o mesmo problema a partir de outro ponto de vista: ROSA NETO, Adroaldo Agner. A suspensão/interrupção da prescrição determinada pelo RJET atinge a prescrição intercorrente? In: Revista da Ordem, n. 71, junho 2020, p. 51-53.

[5] Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Parte geral: exceções; exercício dos direitos; prescrição. Atual. por Otavio Luiz Rodrigues Jr.; Tilman Quarch e Jefferson Carús Guedes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 269 [coleção Tratado de Direito Privado, t. 6].

[6] ARRUDA ALVIM, Ob. Cit., p. 09.

[7] Sobre a permanência da grande dicotomia, consultar por todos: RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Direito Civil Contemporâneo — Estatuto Epistemológico, Constituição e Direitos Fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2019, cf., especialmente a Primeira Parte.

[8] DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 9ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 49 ss.

[9] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Tutela dos direitos mediante procedimento comum. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 809 [coleção novo curso de processo civil, v. 2].

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    é mestrando em Direito das Relações Sociais pelo programa de pós-graduação em Direito da UFPR; membro efetivo do Instituto dos Advogados do Paraná; e advogado, sócio do PX Advogados.

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