Opinião

Representatividade indígena nas eleições municipais de 2020

Autores

  • Willaine Araújo

    é professora de Direito Constitucional e Direito Internacional nas faculdades Seune e Fama em Maceió e mestre em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal).

  • João Paulo Allain Teixeira

    é advogado professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco membro do Instituto Publius e pesquisador do Grupo Recife Estudos Constitucionais (REC).

23 de novembro de 2020, 15h10

Passadas as eleições municipais, importa considerar entre o perfil dos candidatos eleitos a representatividade da diversidade social e do pluralismo cultural que os indicadores sociais brasileiros revelam, particularmente em relação à participação dos povos originários no debate político nacional.

De acordo com os dados do último censo realizado pelo IBGE, em 2010, o Brasil possui cerca de 896 mil indígenas, divididos em 305 etnias falando 180 línguas distintas do português, o que representa cerca de 0,2% da população total brasileira [1].

A luta pelo reconhecimento dos direitos e da diversidade indígena é tão antiga quanto a própria história do Brasil. No entanto, mesmo após 30 anos do processo de redemocratização no país, a representatividade indígena nas instituições estatais segue incipiente.

A garantia de um direito minimamente efetivo à participação política pelos indígenas deve levar em consideração as suas especificidades no que condiz às suas estruturas sociais e culturais e, inegavelmente, um dos grandes entraves às candidaturas indígenas no país perpassa pela necessidade de filiação a partidos que, em grande parte, possuem uma agenda e plataformas políticas que não têm interesse nessas candidaturas e muito distam das lutas desses povos.

Assim, grande é a importância do reconhecimento da viabilidade de candidaturas avulsas, uma vez que o processo eleitoral representa uma gramática social estranha à realidade desses povos, já partindo do próprio mecanismo de funcionamento partidário, o que inibe a participação destes no processo. Inequívoca a necessidade de imposição de padrões mínimos para a participação eleitoral, no entanto, eles devem demonstrar adequação entre a proteção do pleito eleitoral e os princípios que permeiam a democracia representativa, fato que a necessidade de filiação não demonstra.

Nesse sentido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos discutiu em 2005, no caso Yatama versus Nicarágua [2], a possibilidade de candidaturas avulsas como mecanismo de garantia e proteção dos direitos políticos desses povos, representando um forte avanço no reconhecimento e garantia da representatividade política indígena ao garantir que candidatos concorressem ao pleito sem a necessidade de filiação partidária, uma vez que, caso não houvesse tal reconhecimento, isso implicaria diretamente na carência de representação das demandas desses povos nas instituições estatais responsáveis pela adoção de políticas públicas que contribuiriam para seu desenvolvimento, mitigando, portanto, seus direitos.

Assim, a Nicarágua foi condenada a reformular sua legislação eleitoral e adotar todas as medidas necessárias para que tais populações tivessem o direito de participação nas eleições garantido, propiciando condições indispensáveis para que os direitos políticos sejam efetivados em consonância com os ideais de igualdade e não discriminação, fortalecendo, assim, a democracia e o pluralismo político.

No Brasil ainda não há tal possibilidade, uma vez que o próprio texto Constitucional condiciona a elegibilidade à filiação partidária [3]. Tal proibição reflete diretamente nos números ainda baixos de candidatos indígenas e na pouca representatividade destes povos.

Importa pensar em mecanismos que mitiguem o perfil excludente e individualista do debate democrático contemporâneo. Seguir o exemplo da Nicarágua permitindo candidaturas avulsas para os pleitos eleitorais seria um primeiro passo de abertura democrática para esses povos. Assim, o reforço em uma agenda política inclusivista pode contribuir para a superação da homogeneidade representativa.

Apesar de incipientes, os números revelam claro avanço na representatividade desse grupo nas instituições estatais e um movimento que aponta para a reconfiguração do poder. Para além dos direitos reconhecidos constitucionalmente, muitos desses números são explicados pelo papel assumido pelos movimentos sociais e pelas redes sociais que vêm sendo utilizadas como mecanismos de estímulo de mudanças e consolidação da participação ativa dos povos indígenas na política como método de garantia de sua liberdade, igualdade e direitos quando da tomada de decisões.

Nesse sentido, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) lançou o movimento suprapartidário "Campanha indígena — demarcando as urnas", que visa a fortalecer as candidaturas indígenas para o Executivo e Legislativo brasileiro em 2020, em que o "maior interesse na política institucional deve-se à ampliação do debate sobre a necessidade da representatividade dos povos indígenas e a defesa dos seus direitos nestes importantes ambientes de decisão" [4].

A Apib disponibilizou ainda uma plataforma virtual de respaldo às candidaturas indígenas a fim de promover debates, disponibilizar cursos de formação política para os candidatos indígenas, bem assim meios e ferramentas de comunicação para maior visibilidade da candidatura dos mesmos.

O aumento da mobilização indígena pode também ser compreendido como uma reação organizada às atuais políticas governamentais, particularmente no que diz respeito ao tema das demarcações de terras, o que certamente refletiu no pleito de 2020.

Mesmo diante do avanço em candidaturas indígenas nas últimas eleições, as vagas no Executivo e as cadeiras no Legislativo permanecem — ainda — sub-representadas. Não basta que o número de candidatos indígenas aumentem, é preciso que uma parcela maior destes cheguem efetivamente ao poder. Nesse contexto, vale lembrar que apenas 169 vereadores, dez vice-prefeitos e seis prefeitos foram eleitos em 2016 dos 1.715 candidatos registrados, segundo consta nos dados disponibilizados pelo TSE. Quando se trata de eleições nacionais, o montante é ainda menor: em 2018 apenas dois candidatos para a vice-presidência e 124 para os demais cargos [5] se autodeclararam de origem indígena, tendo apenas uma candidata, Joênia Wapichana (Rede-RR), logrado êxito nas urnas para o Congresso Nacional, segunda [6] representante em toda a história desse órgão legislativo.

Em 2020, as candidaturas indígenas tiveram um aumento de quase 27%, alçando o patamar de 2,177 mil candidatos, 462 a mais que em 2016, sendo 39 candidatos a prefeito, 73 a vice-prefeito e 2.065 para vereador, representando um total de 0,4% das candidaturas, segundo dados do TSE, números ainda incipientes na implementação de uma representatividade efetiva.

Desses números indicados, os candidatos indígenas "demarcaram" 159 cargos [7] sendo 145 nas Câmaras Municipais, com destaque aos Estados de Amazonas, Bahia e Paraíba, com, respectivamente, 17, 14 e 13 assentos, e 14 prefeituras, sendo nove prefeitos [8] e cinco vices, representando um êxito de apenas 7% das candidaturas apresentadas, número menor do que o apresentado em 2016, mas que, por ainda estar em atualização, já que alguns municípios ainda não finalizaram a contagem eleitoral, pode mudar.

Apesar dos desafios, consideramos que, mesmo que timidamente, o Brasil apresenta elementos que indicam um esforço para a reformulação das suas bases institucionais com vistas à ampliação da representatividade indígena. Assim, nas eleições de 2020 registra-se um aumento no número de candidaturas indígenas, indicando um sopro de esperança na busca de implementação material da liberdade e garantia de direitos dos inúmeros ethos culturais existentes na sociedade brasileira.

 


[1] Como o recenseamento data de 2010 é provável que os números referentes à população indígena brasileira sejam hoje diferentes.

[2] CIDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso YATAMA vs. Nicarágua. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_127_esp.pdf.

[3] Corre no STF o RE 1.238.853, com repercussão geral, sob a relatoria do ministro Roberto Barroso, que discute a validade de candidaturas avulsas. Em decisão monocrática o relator deferiu a possibilidade dos candidatos Carlos Alexandre Klomfahs e Ciro Marcílio do Nascimento, que impetraram pedido de tutela antecipada, registrarem suas candidaturas para prefeito e vice de forma avulsa, num claro sinal de prováveis mudanças.

[4] APIB. Movimento indígena apresenta candidaturas nas eleições 2020. Disponível em: https://apiboficial.org/2020/10/15/movimento-indigena-apresenta-candidaturas-nas-eleicoes-2020. Acesso em: 10 nov. 2020.

[5] Distribuídos da seguinte forma: duas candidaturas para governador; uma para vice-governador, duas para o Senado, 39 para a Câmara dos Deputados e 78 para as Assembleias Legislativas e Câmara Distrital.

[6] O primeiro representante indígena no Congresso Nacional foi Mário Juruna, eleito deputado em 1982 pelo PDT-RJ.

[8] Importante salientar que até o fechamento deste texto a candidatura do cacique Marquinhos Xucuru encontra-se sub judice o que pode alterar esses números para menos.

Autores

  • é professora de Direito Constitucional e Direito Internacional nas faculdades Seune e Fama, em Maceió, e mestre em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal).

  • é líder do grupo de pesquisa Recife Estudos Constitucionais (REC), professor-adjunto da Universidade Federal de Pernambuco, professor do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professor do curso de graduação em Direito e do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, bolsista de produtividade em pesquisa (PQ-CNPq), doutor em Direito pela UFPE, mestre em Direito pela UFPE e master em Teorias Críticas do Direito pela Universidad Internacional de Andalucía, Espanha.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!