Opinião

Justiça, racismo e cegueira: o "motim ideológico" na Amepe

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22 de novembro de 2020, 17h18

"A Justiça precisa ser cega, não abraçar causas ideológicas e essa causa é de uma ideologia". A frase, proferida por uma magistrada de Pernambuco, aparece referida em uma reportagem que noticia uma espécie de "motim ideológico" no seio da Associação dos Magistrados do Estado de Pernambuco (Amepe)[1].

A razão da insurreição: o repúdio a um curso online, intitulado “O Racismo e suas Percepções na Pandemia”, proposto pela diretoria de Direitos Humanos da Amepe. A magistrada, seguida por dezenas de colegas magistrados, vincula a oferta do curso a um problema de cariz ideológico. As razões do grupo de juízes aparecem (ideologicamente) esboçadas no "Manifesto pela Magistratura de Pernambuco"[2].  

Em um momento no qual o Brasil e o mundo viram divulgadas pela imprensa pesadíssimas imagens de um homem negro sendo espancado até a morte por seguranças de uma unidade do Carrefour na cidade de Porto Alegre, surge, pois, este questionável manifesto de magistrados que enxergam no racismo uma "infiltração ideológica das 'causas sociais'".

Ao afirmarem que o racismo é uma questão ideológica, tentam estes juízes deslocar esta importante e necessária discussão sobre a questão racial, enfraquecendo-a. E fazem isso justamente em um momento no qual vemos crescer a intolerância, a violência e o racismo ao redor do mundo. O fazem enquanto nomes como George Floyd nos EUA (e, agora, João Alberto Silveira Freitas, no Brasil) ecoam pela mídia mundial, dando-nos o aviso de que continuamos a viver em uma sociedade moralmente doente.

O grupo de magistrados pernambucanos repudia, no tal manifesto, a produção de cursos, lives, cartilhas etc., que os coloquem "em apoio a correntes ideológicas e provoque cisões internas, criação de subgrupos de juízes". Cisões internas? Estariam, talvez, referindo-se a juízes que, de um lado, reconhecem e combatem o racismo e juízes que, de outro (tal qual o vice-presidente brasileiro, em infeliz pronunciamento[3]) defendem que "no Brasil não existe racismo"? Ou se refeririam, quem sabe, em um sentido mais amplo e absurdo, a possíveis conflitos entre "juízes de esquerda" e "juízes de direita"?

Seja como for, parece que o grupo de magistrados não entendeu bem o sentido da palavra ideologia. Teun A. van Dijk explica que as ideologias são uma espécie de "sistema" que se encontra na base das cognições sócio-políticas de grupos[4]. E entre estes grupos, por certo, podemos situar os próprios juízes.

Todavia, se os juízes ainda se acham imunes a ideologias, podemos lembrar aqui das palavras de Luis Alberto Warat, ao explicar os contornos do Senso Comum Teórico Jurídico (SCTJ). Warat definia o SCTJ como uma espécie de ideologia, um manancial de verdades consagradas pela práxis jurídica no qual bebem os juristas de ofício[5].

Warat, como poucos, soube denunciar a dimensão ideológica que envolve o Direito. Até recomendaríamos, aos juízes pernambucanos que subscrevem o tal manifesto, algumas obras do saudoso Warat. Mas, possivelmente, antes mesmo de indicarmos a primeira, evasivamente os magistrados já diriam que isso também é ideologia…

Entre as verdades consagradas referidas por Warat aparecem, implícita ou explicitamente, no manifesto, as ideias de neutralidade e imparcialidade judiciais. Quanto à pretensão de neutralidade, os magistrados rebelados defendem até mesmo a existência de "magistrados sem seleção fenotípica, religiosa ou sexual" (…), tudo em nome de uma pretensa coesão e unidade da magistratura.   

Porém, para além de neutros, os subscritores do manifesto se reconhecem igualmente como poderosos, ao afirmarem, num verdadeiro rompante de vaidade: "a realidade é que temos uma missão diferenciada, que é julgar, somos o topo da carreira pública e membros de poder". Eis aí a prova de que permanecem sempre atuais as sábias palavras de Salomão: "(…) vaidade de vaidades! É tudo vaidade" (Eclesiastes, 1:2).

O "topo", neste caso, equivale ao lugar do inacessível. A intocabilidade e a irrepreensibilidade dos juízes se fortalecem, assim, através da manutenção da própria ideologia de um grupo que, curiosamente, não se reconhece como ideológico. Mesmo quando se utilizam do argumento (dogmático-ideológico) de classe de serem imparciais, neutros, poderosos etc., juízes muitas vezes habilmente mascaram suas predileções, simpatias e ideologias… como o fazem neste socialmente deslocado manifesto.

Mais ao final, os magistrados afirmam que "todo homem é um ser político, ao menos os que tem consciência do seu papel na sociedade". Pois ao combaterem as ditas "causas sociais" que entendem vinculadas a uma ideologia que não é a sua, tais juízes apenas demonstram um estado de inconsciência social e uma cegueira à própria cegueira.

Juízes assim parecem esquecer que, “quem detém o poder de construir os significados de palavras como liberdade, igualdade, democracia, quem detém o poder de criar os preconceitos e de representar a realidade a seu modo, tem a possibilidade de dominar e de manter a dominação”, como alerta José Luiz Quadros de Magalhães[6].

Este manifesto é, pois, a prova cabal não apenas da tentativa de manutenção ideológica da dominação social por uma pequena parcela da classe dos magistrados, mas o retrato de uma Justiça que ainda insiste em usar vendas… De uma Justiça que se quer manter não apenas cega, mas também surda e muda a relevantes questões sociais, sendo o racismo, sem dúvidas, uma das mais urgentes.


[1] Veja mais na Coluna de Fabiana Moraes no UOL, em: https://noticias.uol.com.br/colunas/fabiana-moraes/2020/11/21/a-justica-e-cega-mas-nao-em-um-bom-sentido.htm.

[2] Idem. Ver o manifesto completo ao final da coluna de Fabiana Moraes. 

[3] DW Brasil: “Hamilton Mourão diz que não existe racismo no Brasil”: https://www.dw.com/pt-br/hamilton-mour%C3%A3o-diz-que-n%C3%A3o-existe-racismo-no-brasil/a-55682037.

[4] DIJK, Teun A. van. Ideological Discourse Analysis. In: New Courant (English Dep., University of Helsinki), 4 (1995), pp. 135-161. Special issue Interdisciplinary approaches to Discourse Analysis, ed. by Eija Ventola and Anna Solin, p. 138.

[5] WARAT, Luis Alberto, “Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas”, In: Sequência – Estudos Jurídicos e Políticos (Flor., SC), vol. 03, n. 05, pp. 48-57, 1982, Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/17121>.

[6] MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Ensaios Sobre Ideologia, Poder e Dominação no Estado Contemporâneo. Ensaio 1: a busca do real. In: Revista Panóptica, ano 1, n. 7, pp. 180-192, mar.-abr. de 2007, Disponível em: <http://www.panoptica.org/seer/index.php/op/article/download/Op_2.3_2007_180-192/193>.

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