Opinião

André do Rap e a necessidade de discutir o desvirtuamento da prisão preventiva

Autor

  • Bráulio Bicalho Cruz Amaral Quirino

    é advogado criminalista no escritório Teixeira Martins Advogados pós-graduado em Direito Empresarial e Compliance pela FGV-RIO pós-graduando em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra e especialista em Processo Penal.

22 de novembro de 2020, 18h03

No dia 6 de outubro, o ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Melo, ao decidir a medida cautelar pleiteada nos autos do Habeas Corpus nº 191.836/SP, seguiu a literalidade da lei processual penal brasileira e concedeu a liberdade a André Oliveira Macedo, mais conhecido como André do Rap.

A questão repercutiu negativamente na mídia após a veiculação da notícia de que o paciente teria se evadido do país horas após a sua soltura. Opiniões pessoais e nada técnicas de diversos jornalistas ganharam as manchetes e houve até mesmo quem dissesse que o erro maior teria sido cometido pelo próprio ministro do Supremo, a quem cabia a análise das "agravantes do caso", pois, senão, bastaria a utilização de um "software Supremo".

Desde então, o ministro Marco Aurélio tem sido alvo de duras e reiteradas críticas por ter ignorado a "capa do processo" e por ter dado cumprimento ao que determina a legislação processual penal.

Experimentamos a época da espetacularização opressiva, que se traveste em cruzada moral contra quem quer que seja, no intuito tão-somente de cumprir a função simbólica de transformar a sociedade a qualquer custo — e, para tanto, a mídia, principal porta-voz dessa espetacularização do processo penal, utiliza-se de uma cobertura quase sempre populista e irresponsável.

A sociedade parece se chocar muito mais com o fato de um magistrado aplicar exatamente o que manda a lei, sem casuísmos e apreciações pessoais, do que com a inaptidão de outro em se organizar em meio aos seus processos e estabelecer prazos de revisão das prisões por ele próprio decretadas.

O ministro Marco Aurélio não se curvou ao clamor social e agiu exatamente conforme se espera de um juiz, obedecendo às lições do jurista italiano Luigi Ferrajoli, segundo o qual a "jurisdição é uma instituição anti-majoritária". Ou seja, ao juiz muito pouco ou nada deveria importar a popularidade de suas decisões, mas, sim, a plena conformidade do seu agir com as garantias constitucionais e processuais conferidas a determinado sujeito, a fim de que não se condene um inocente — ou, ao menos, que se reduza essa possibilidade [1].

Um juiz pode e deve decidir os casos postos sob sua análise conforme manda a sua consciência, mas, antes e em primeiro lugar, deve obediência estrita à lei, ainda que, por vezes, agir assim signifique desagradar a uma parcela da população.

Entretanto, por mais irretorquível que tenha sido a decisão proferida pelo ministro Marco Aurélio — e o evidente desacerto do Supremo ao julgar a SL 1395 —, não iremos aqui nos deter em considerações acerca das especificidades do caso e argumentar pela necessidade ou desnecessidade da prisão preventiva.

Na verdade, a irresignação dos órgãos de persecução penal, da mídia e da população em geral em torno do caso do André do Rap revela o sintoma de uma concepção equivocada das coisas e sobretudo das funções de uma prisão cautelar, e esse sim será o nosso foco neste breve ensaio.

Em nossos dias, tendemos a acostumarmo-nos à opressão simbólica; o Direito Penal assume feição de panaceia e a prisão, pouco importa se cautelar ou não, assume a função, cada vez mais, de retribuição imediata pelo mal supostamente causado.

Nesse estado de coisas, tem sido mais e mais frequente o deslocamento da resposta penal para as prisões cautelares, ao invés de se obedecer ao ritmo processual, ao curso natural de um processo, na expectativa de uma eventual sentença condenatória (Cruz, 2020, p. 20).

O ministro Rogério Schietti Cruz (2020, p. 21), em relevante obra voltada à discussão das prisões cautelares, é enfático ao escancarar o grave sintoma do processo penal brasileiro:

"Essa 'penalização' de um instituto eminentemente processual, que desborda funcionalmente de seus fins e limites, nada mais é do que um dos reflexos do que Carrara denominava 'nomorréia penal' e que encontra similar significado na moderna metáfora de Ferrajoli ('metástase legislativa'), em decorrência da qual se corre o risco de que, com mais tipos e punições mais graves (more of the same), se produza, ao invés de redução dos crimes, maior violência social".

E o embrutecimento que tem recrudescido com o passar dos anos, revelado invariavelmente na proliferação das decisões judiciais que tratam das prisões preventivas, faz com que a crítica muito bem cunhada por Helio Tornaghi (1988, p. 10) anos atrás seja tão atual:

"O perigo do calo profissional, que insensibiliza. De tanto mandar prender, há juízes que terminam esquecendo os inconvenientes da prisão. Fazem aquilo como um ato de rotina, como o caixeiro que vende mercadorias ou o menino do açodamento, que impede o exame maduro das circunstâncias e conduz a erros (…); e o perigo do exagero, que conduz o juiz a ver fantasmas, a temer danos imaginários, a transformar suspeitas vagas em indícios veementes, a supor que é zelo o que na verdade é exacerbação do escrúpulo".

Aury Lopes Jr. (2020, p. 52), de forma bastante acurada, é claro ao definir que as prisões cautelares têm assumido a feição de uma punição imediata, resultando, assim, em um efeito "sedante da opinião pública". O clamor social por uma punição expedita é aplacado quando alguém vai preso, pois enxerga-se nesse ato máximo de violência institucional uma resposta para a "impunidade".

O mesmo autor explica de forma bastante didática essa necessidade, essa sede de vingança imediata que faz com que os abusos de uma prisão cautelar sejam tolerados e, invariavelmente, apoiados por uma parcela significativa da população. Segundo ele, de um lado a sociedade quer um processo que tenha a mesma velocidade com a qual está acostumada em suas relações diárias — e, por isso, a preferência por medidas rápidas, visíveis, que deem a sensação de punição — e, de outro, o próprio mercado precisa da agilidade e publicidade inerente ás prisões cautelares, pois tempo é dinheiro (Ibidem, p. 42).

O ruído em torno da decisão proferida pelo ministro Marco Aurélio em relação ao caso "famoso e perigoso traficante" aqui discutida não foge do mencionado estado de coisas.

É lugar-comum afirmar que, nas prisões do Brasil, reina o desrespeito e a maldade; são locais em que seres humanos são tratados como se animais fossem — são despersonalizados e dessocializados num meio em que impera a brutalidade, no mais das vezes a insalubridade, o ódio, o rancor, o sentimento de vingança (Cruz, 2020, p. 30).

O caso de André do Rap assume contornos de alta e exacerbada perplexidade social, em virtude do sentimento que naturalmente emerge dos casos tidos como violentos, vis, repugnantes.

Entretanto, o caso, por mais grave que seja ou possa parecer, não prescinde do devido processo legal, da observância estrita aos direitos e às garantias fundamentais, do respeito ao princípio da presunção de inocência enquanto regra de tratamento e, por fim e especialmente, dos direitos humanos — não existe verdadeiramente uma justiça fora desses parâmetros.

A lei e a Constituição são claras ao definir que a pessoa somente deve sofrer o peso da prisão quando a sua condenação transitar em julgado. E as condenações de André do Rap não ultrapassaram esse marco, de forma que a sua prisão ainda era cautelar.

Pois bem. Deve-se, então, tentar compreender a prisão preventiva como o que ela é, mas, também, como o que ela não é.

A primeira e maior premissa deve ser sempre de que não existe condenação sem processo. Em sede de processo penal, a forma é a garantia do indivíduo contra o arbítrio estatal.

Por outro lado, as medidas cautelares assumem uma posição doutrinariamente conhecida como qualificada, pois são o instrumento do instrumento, ou seja, não são um fim si mesmas, mas têm como objetivo "assegurar a eficácia prática da atividade jurisdicional desempenhada no processo de conhecimento ou de execução" (Lima, 2020, p. 945).

Se o processo penal é o instrumento por meio do qual se busca a concretização do ius puniendi estatal, servindo como ferramenta fundamental para a observância dos direitos e garantias fundamentais e alcance eficaz do Direito Penal — que não é um direito de coação direta —, as medidas cautelares se prestam à proteção do próprio processo, do seu desenvolvimento, da aplicação do seu resultado.

De acordo com o magistério de Renato Brasileiro de Lima (2020, p. 929), por vezes é necessária a realização de algumas providências consideradas urgentes, a fim de que se consiga salvaguardar o processo, seja quanto à apuração de algum fato delituoso, quanto à instrução processual, quanto à aplicação da respectiva penalidade ao agente processado ou, até mesmo, em última análise, a fim de que sejam minimizados os efeitos danosos do tempo sobre o a prestação jurisdicional.

A prisão preventiva, medida cautelar que é, condiciona-se ao preenchimento concomitante de pressupostos e requisitos que devem necessária e concretamente estar presentes, quais sejam, o fumus comissi delicti (prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria) e o periculum libertatis (o risco concreto da liberdade do sujeito para o processo).

A sua incidência dependerá ainda da análise de diversas circunstâncias, que devem ser avaliadas de forma criteriosa; sua aplicação somente se justifica quando nenhuma outra medida possa proteger os objetivos processuais de forma satisfatória e deve ser sempre a última opção do julgador, justamente porque tem o condão de tolher do ser humano o seu bem mais precioso: a liberdade.

E, ao contrário do que se tem observado, a prisão preventiva não pode se prestar ao papel de antecipar uma pena, de dar uma pronta resposta à sociedade. A própria elasticidade conceitual que circunda os requisitos estabelecidos na lei processual exige que o instituto seja avaliado de forma restritiva, parcimoniosa e com o máximo possível de cautela.

Em recente e paradigmático voto, o ministro Nefi Cordeiro, do Superior Tribunal de Justiça, ao analisar a necessidade da manutenção de uma prisão preventiva, foi preciso ao afirmar que juiz nenhum é herói contra o crime e tampouco deve se curvar ao ímpeto de exercer funções alheias à atuação do Judiciário (HC 509.030-RJ, julgado em 14/5/2019, DJe 30/5/2019, relatoria do min. Antonio Saldanha Palheiro).

É de se repetir: as prisões cautelares têm como função precípua a tutela do processo, prestando-se a garantir o seu normal desenvolvimento e, como consequência, a eficaz aplicação do poder de apenar. Não são antecipação de pena e tampouco "combate à impunidade", esse "chavão vago e genérico", bordão de um discurso punitivista vazio [2].

De fato, não há como construir uma solução verdadeiramente eficaz e duradoura apenas a partir da violência institucional que as prisões representam (Lopes Júnior, 2020, p. 51).

Por todas essas razões, é importante que se compreenda as prisões preventivas como devem ser e para que devem efetivamente servir. O preço pela opção por um Estado democrático de Direito é a conformidade com os direitos e garantias fundamentais do ser humano, com o respeito à legalidade, ao princípio da presunção de inocência e, não menos importante, ao devido processo legal.

Os processos têm um determinado tempo de desenvolvimento, de forma que a obediência às fórmulas procedimentais e o respeito às garantias do acusado não podem ser vistas como impunidade; e tampouco pode-se crer que o atropelo e o abandono de todas as formalidades processuais para se chegar a uma pena equivalha à Justiça.

 


Referências bibliográficas
— CRUZ, Rogério Schietti. Prisão Cautelar: dramas, princípios e alternativas, Salvador: Juspodivm, 2020.

— LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. Salvador: Ed. Juspodivm, 2020.

— LOPES JUNIOR, Aury. Fundamentos do Processo Penal. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

— TORNAGHI, Helio. Curso de Processo Penal, São Paulo: Saraiva, 1988.

 

Autores

  • é advogado criminalista no escritório Teixeira Martins Advogados, pós-graduado em Direito Empresarial e Compliance pela FGV-RIO, pós-graduando em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra e especialista em Processo Penal.

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