Opinião

A liberdade de expressão e suas repercussões jurídicas no meio digital

Autores

  • Caroline Gobato

    é estudante de Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e membro do Grupo de Estudos de Direito Digital (GEDD).

  • Victória Coutinho Galvão dos Santos

    é estudante de Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas membro do Grupo de Estudos de Direito Digital (GEDD) e aluna de Iniciação Científica em Liberdade de Expressão e Religião na Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

22 de novembro de 2020, 10h32

1) Introdução
A constante presença da tecnologia no cotidiano do cidadão e as devidas mutações na sociedade ocasionadas em razão da internet acarretam mudanças no mundo fático, gerando, como consequência, embates jurídicos.

Esses embates começaram a ser evidenciados ainda mais a partir do uso em massa das plataformas digitais de convívio social. A comunicação através do meio digital proporcionou mudanças drásticas na produção de informação, bem como na produção de conteúdo cultural, gerando a possibilidade de aumento do trânsito de informações criadas a partir de um juízo de valor individual dos usuários.

À vista disso, é possível dizer que cada um, em sua rede social e seu convívio digital, criou sua própria verdade em seu próprio círculo de convivência. Nesse sentido, em diversos casos, pode-se enxergar que a divergência de opiniões não é algo saudável, mas, sim, motivo para desrespeito e divergências exacerbadas, como o caso da "cultura do cancelamento".

2) Liberdade de expressão
A liberdade de expressão, direito fundamental, é o mais antinatural dos direitos, pois permite que todos falem e manifestem seus pensamentos, mas exige, também, por outro lado, que todos escutem, independentemente do que julgam ser o certo e errado. Abrange desde a fala até atitudes e atos, desde que não sejam anônimos.

É prevista no artigo 5°, inciso IV, da Constituição Federal de 1988, o qual diz expressamente: "É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato".

Para a sua existência, são conhecidos alguns fundamentos, como ser necessário aceitar a liberdade de expressão exercida por aqueles que são contrários ao seu ponto de vista, uma vez que nada garante que o que é aceito atualmente será aceito amanhã, o que leva à conclusão de que ninguém sabe a realidade em si, são apenas opiniões. Essas opiniões criam um mercado de ideias, como trazido pelo juiz Oliver Wendell Holmes, da Suprema Corte dos Estados Unidos, assim como há mercadorias que não tem um preço correto, as ideias também não, sendo o seu valor a forma que são ouvidas e como reagem perante elas. Nesse sentido, não há verdade sem debate e não há liberdade de expressão sem antes ir à público.

À vista disso, também é possível tratar como outro fundamento a necessidade de existir a discordância política, a imperfeição humana, pois, senão, não há democracia, pois só existe alternância de poder, se houver opositor, estando o último protegido pela liberdade de expressão, de acordo com suas restrições.

Assim, pode-se dizer que, a liberdade de expressão é a garantia de que a democracia não vai acabar, mesmo que exista o perigo, uma vez que o sistema é imperfeito.

2.1) Limites e restrições da liberdade de expressão
Historicamente, a liberdade de expressão no Brasil já experimentou alguns tipos de limitações, advindas principalmente do momento e contexto cultural em que se encontrava. Sobretudo, na Constituição Federal de 1967, por exemplo, em seu artigo 150, §8°, era garantida apenas a manifestação do pensamento que não fosse propaganda de guerra, subversão da ordem ou preconceitos de raça ou classe, de modo que, dentro desses tópicos, muitas situações podem ser englobadas de acordo com os costumes e entendimentos morais da época, o que de fato acaba não sendo a verdadeira liberdade de expressão.

Entretanto, a Constituição Federal de 1988 não trouxe nenhuma limitação à liberdade de expressão em seu artigo 5°, inciso IV, vedando apenas o anonimato, de modo que são protegidos por esse direito falas e atos concretos, bem como pensamentos, desde que não sejam anônimos.

Ademais, a liberdade de expressão tem algumas restrições quanto ao seu exercício, mas que não advém de fonte legal, pois não cabem limitações à essa.

À vista disso, pode ser neutro quanto ao conteúdo, de modo que, nesse caso, as pessoas podem falar sobre o que bem entenderem, porém, não onde ou na hora que quiserem, já que nem sempre o espaço e o modo de falar estão no âmbito de proteção da liberdade de expressão.

Além disso, também pode ser neutro quanto ao ponto de vista, ou seja, em determinadas situações é possível que certos temas não possam ser abordados, independentemente se à favor ou contra a situação.

Por fim, a liberdade de expressão pode ser relativa quanto ao ponto de vista, no qual há uma determinada situação em que não se pode proibir a expressão do pensamento de um dos lados presente. Não se pode excluir a expressão de quem é contra a corrente majoritária, sendo muito comum na sociedade atual. Vale ressaltar que existem dois pontos que não podem ser elogiados ou negados, pois não são protegidos pela liberdade de expressão: o Holocausto e a Segunda Guerra Mundial, bem como os discursos de ódio e a injúria.

3) A liberdade de expressão no meio digital
Com a internet, cria-se uma cadeia mundial integrada, com os mais diversos pontos de vista e críticas. Seja pelo baixo custo do uso, ou pela posição favorável de anonimato que pode se encontrar o usuário, é notável o aumento da utilização das plataformas a fim da disseminação de opinião dos mais diversos assuntos. Nesse sentido, a internet abre espaço para um exercício, em maior grau, da liberdade de expressão.

Isso posto, sabe-se que países de todo o globo manifestam-se a fim de judicializar e regulamentar o uso dos espaços digitais, mas percebe-se grande desafio face o tênue limite entre o respeito à liberdade de expressão e restrição aos direitos fundamentais.

3.1) Marco Civil da Internet
Esse mesmo cenário era experimentado pela população brasileira. Antes da promulgação do Marco Civil da Internet, o debate baseava-se na necessidade de regulamentação do meio digital, através da imposição de limites ao seu respectivo uso.

As dificuldades enfrentadas e os embates ocorridos na internet foram grande enfoque de críticas. Casos como utilização de perfis em anonimato com intenção de fraude, discursos de ódio, a disseminação de notícias não verídicas e a disseminação de dados pessoais, foram objeto de inspiração para tentativa de eventual regulamentação. Contudo, muito se discutia em relação aos limites que viriam a ser impostos, fazendo com que a temática virasse preocupação de grande parte dos juristas.

Nesse sentido, o Marco Civil da Internet brasileiro regulamentou a preservação do uso da internet e delimitou a cidadania ativa em âmbito virtual, para proteção dos preceitos inerentes e fundamentais do ser humano, como a liberdade de expressão. Assim sendo, após a promulgação da referida lei, a liberdade de expressão foi reafirmada, gerando amplitude aos limites impostos às relações desenvolvidas na internet.

De todo modo, não obstante o supramencionado, cumpre mencionar que o Marco Civil da Internet, apesar de ter exposto em seu texto as ações que ensejam responsabilidade, não as especificou, deixando a aplicação da norma vaga. Assim sendo, difícil trabalho é o de se delimitar o que seria garantir o respeito à liberdade de expressão e o que se enquadraria como censura.

3.2) Lei Geral de Proteção de Dados
A Lei Geral de Proteção de Dados, sancionada em setembro de 2020, no tocante à liberdade de expressão, não inovou. Nesse sentido, a lei atuou de forma similar ao Marco Civil da Internet, e, apesar de a LGPD apresentar características mais específicas, apenas reafirmou a importância e necessidade de proteção da liberdade de expressão em meio digital.

Assim sendo, a lei delimitou a liberdade de expressão, de informação, comunicação e de opinião como sendo um de seus fundamentos principais. Contudo, pouco ainda se sabe das consequências jurídicas práticas desta referida lei. De todo modo, no tocante à proteção à liberdade de expressão, espera-se encontrar os mesmos desafios enfrentados pelo Marco Civil da Internet no que tange à sua aplicabilidade, pelos mesmos motivos já mencionados.

4) Anonimato e 'cultura do cancelamento'
Em análise ao cenário já exposto, sabe-se que os usuários da internet encontram-se em posição em que, podem ou não, escolher revelarem suas identidades ao criarem contas de uso nas plataformas digitais. Nesse sentido, é notório o aumento da utilização de contas em anonimato, que aproveitam do estado favorável em que se encontram para exercerem, erroneamente, seu direito de liberdade de expressão, ou ainda proferir discursos de ódio, difamatórios e caluniosos. 

Ora, como já mencionado, a Constituição Federal, em seu artigo 5º, IV, veda expressamente a manifestação de pensamento em anonimato, de forma que, deixa explícito que ao manifestar seu pensamento, o usuário deverá estar devidamente identificado. Nesse mesmo sentido, o Marco Civil da Internet reafirma o que já se era expresso na Constituição, e ainda delimita um protocolo, chamado de IPv4, como tentativa de identificar os usuários de rede.

De todo modo, apesar da delimitação em legislação pátria, bem como em legislação ordinária, devido ao alto índice de usuários que navegam a internet em anonimato, difícil papel é de se identificar a real identidade do manifestante, tornando a aplicabilidade da norma trabalhosa. Sobre esse espeque, ainda existem juristas que defendem o contrário, afirmando que o anonimato não deveria, na maioria dos casos, sobrevir a liberdade de expressão, já que este é direito inerente de todo cidadão.

Com o uso em massa das redes sociais, a quantidade de perfis em anonimato aumentou drasticamente, de forma que deu-se início a um novo modo de produção de opiniões. Assim sendo, nesse meio, notou-se alto índice de utilização destes perfis para proferirem ataques pessoais a outras pessoas. Estes comentários, muitas vezes, possuem conteúdo cujo teor se enquadra como discurso de ódio, de forma que esses usuários, caso não conseguissem desvincular suas reais identidades aos perfis, muito provavelmente, não realizariam os mesmos comentários.

Neste cenário, surge a denominada "cultura do cancelamento". Essa prática teve seu início nas redes sociais com o intuito de gerar repercussão a algumas demandas sociais e ambientais, de forma que  "cancelava-se" determinada ação, a fim de conscientizar os demais usuários da internet.

Ocorre que, atualmente, através de uma análise simplista e por vezes distorcida, pessoas e contas estão sendo canceladas na internet. Esse cancelamento, na maior parte das vezes, ocorre de uma maneira vexatória e cercada de ódio, de forma que acaba ofendendo a honra e dignidade do manifestante.

Sabe-se, ainda, em análise aos casos práticos, que o ato do cancelamento acarreta consequências psíquicas ao "cancelado". Nesse sentido, é notório que grande parte das vezes o cancelamento é realizado de forma abusiva, em que usuários que se encontram em situação de anonimato ou não, hostilizam outros perfis.

À vista disso, muitas celebridades, influenciadores digitais, cantores, artistas e dentre outros foram "cancelados" em 2019 e 2020. Por exemplo, o cantor de funk MC Gui, em outubro de 2019, foi "cancelado" por postar na sua conta do Instagram um vídeo, na Disney, em que tirava sarro da aparência de uma criança vestida de uma personagem, aparentemente com problemas de saúde. Também é possível mencionar a influenciadora Gabriela Pugliesi, que, em abril de 2020, durante a pandemia da Covid-19, foi "cancelada" por dar uma festa com amigos e gravar vídeos para o Instagram.

Além disso, também vale mencionar o caso de Byron Reckful Bernstein, influencer que foi "cancelado" e atacado nas redes sociais por ter pedido sua namorada em casamento pela internet. A atitude foi considerada pelos usuários como constrangedora, de forma que, a partir do ocorrido, os comentários nas postagens de Byron resumiam-se ao caso, humilhando e constrangendo o influencer. As atitudes e os comentários ofensivos dos usuários em seu perfil levaram o influencer a cometer suicídio.

Nesses casos, apesar de algumas das atitudes que ocasionaram o início do "cancelamento" serem deploráveis, as reações dos usuários da internet foram extremamente desproporcionais. Sendo assim, resta evidente a extrapolação do direito de liberdade de expressão, já que afeta de forma negativa, gera consequências à esfera jurídica alheia, propagando iminentes discursos de ódio, ato o qual não é protegido por esse direito fundamental. Por fim, sabe-se que esse debate é de extrema importância, tendo em vista o alcance e a visibilidade destes tipos de discursos e práticas em meio digital.

5. Conclusão
Ante o debate proposto, conclui-se que a preservação do indivíduo e do Direito no ambiente digital é um trabalho difícil, dada as próprias características desta tecnologia.

Ademais, acerca da punição dos agentes que se utilizam da situação de anonimato para proferirem discursos de ódio e difamatórios, entende-se que os casos deverão ser analisados de forma avulsa, para averiguação de suas identidades, a fim de viabilizar eventual persecução penal e a exerção da liberdade de expressão dentro das suas restrições, sem propagar o ódio ou preconceito.

Por fim, entende-se que é fundamental a preservação da liberdade de expressão na internet, no entanto, deve-se delimitar de forma responsável o que se enquadra como manifestação livre do pensamento e o que se enquadra como discurso de ódio, difamatório ou calunioso.

 


Referências bibliográficas 
— LIMA, Caio César Carvalho. Garantia da Privacidade e Dados Pessoais à Luz do Marco Civil da Internet. In: LEMOS, Ronaldo; LEITE, George Salomão (Org.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014. p. 153.

— ROSA, R NATALIE. O que é cultura do cancelamento? O que significa nos mundos real e digital?. Disponível em: <https://canaltech.com.br/comportamento/o-que-e-cultura-do cancelamento164153/#:~:text=Cancelar%20uma%20pessoa%20virou%20uma,comportamento%20de%20um%20ser%20humano>. Acesso em: 08 jul. 2020.

— WILEY. THE PHILOSOPGY OF JUSTICE HOLMES ON FREEDOM OF SPEECH. JSTOR, Estados Unidos, v. 3, n. 4, p. 1-19, nov./2018. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/42883960?seq=10#metadata_info_tab_contents. Acesso em: 10 nov. 2020.
— FIAN, Christopher. Was Oliver Wendell Holmes Right About Free Speech?: The director of National Coalition Against Censorship reflects on the Supreme Court justice’s defense of free speech. PW: Nova Iorque. Disponível em: https://www.publishersweekly.com/pw/by-topic/columns-and-blogs/soapbox/article/81702-was-oliver-wendell-holmes-right-about-free-speech.html. Acesso em: 12 nov. 2020.

Autores

  • é estudante de Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e membro do Grupo de Estudos de Direito Digital (GEDD).

  • é estudante de Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, membro do Grupo de Estudos de Direito Digital (GEDD) e aluna de Iniciação Científica em Liberdade de Expressão e Religião na Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

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