Embargos Culturais

'A pequena outubrista', da escritora sueca Linda Bostrom Knausgard

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

22 de novembro de 2020, 8h01

Em entrevista dada em Louvain (Bélgica), Michel Foucault (1926-1984) dissertou sobre as relações entre loucura e verdade. Afirmou que era recente na história a concepção de loucura como objeto da busca da verdade. Referia-se ao campo do conhecimento entendido como disciplina médica. O Doutor Simão Bacamarte, o imortal alienista de Machado de Assis, que o diga.

Spacca
A relação entre desrazão (uma das formas típicas do que o senso comum reputa como loucura) e verdade é tema central de um dos principais de livros do filósofo francês, "História da loucura". Há nesse difícil livro um comentário sobre o mundo correcional que se constrói em torno do controle de quem se julga como louco, ou insano. Foucault abriu o capítulo afirmando que "do outro lado desses muros do internamento não se encontram apenas a pobreza e a loucura, mas rostos, bem mais variados e silhuetas cuja estatura comum nem sempre é fácil de reconhecer".  Como são essas silhuetas?

Entre nós, no Brasil, há alguns registros literários importantíssimos sobre o assunto. Refiro-me (e recomendo) o livro de Daniela Arbex, "O Holocausto brasileiro", no qual a brilhante escritora e jornalista de Juiz de Fora conta-nos o que ocorreu no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, em Minas Gerais. Esse centro de barbárie acolhia (sic) pacientes acometidos de todo tipo de doenças mentais. O tratamento é desumano. Daniela Arbex apontou o problema.

Há também a narrativa (em primeira pessoa) de Lima Barreto, internado por alcoolismo no Hospital dos Alienados, em 1914. O escritor brasileiro narrou suas impressões nas apavorantes páginas de "O cemitério dos vivos". Quanto a essa passagem há também o relato de Lilia Moritz Schwartz, como lemos na biografia de Lima Barreto ("Triste visionário"). Imagino as silhuetas dos internos em Barbacena e imagino também a silhueta de Lima Barreto, que padecia de delirium tremens, vítima do alcoolismo que o derrubou, e a seu pai também. O encontro entre Monteiro Lobato e Lima Barreto, que não sabemos se ocorreu de fato (Lima estaria alcoolizado), seria mais um exemplo triste da vida do criador do Policarpo Quaresma.

O tema da desrazão é recorrente na literatura. Temos novidade no trato desse assunto. Linda Bostrom Knausgard, escritora sueca, entrega-nos corajoso relato autobiográfico, "A pequena outubrista". Sabe-se, a partir da leitura desse fortíssimo livro, que na Suécia há internamentos nos quais se praticam sessões de eletroconvulsoterapia. A depressão seria tratada com choques elétricos. Linda foi internada de 2013 a 2017. Diagnosticada com bipolaridade, a escritora foi submetida a esse terrível tratamento. Temia perder a memória, e seus registros de vida. Em face do temor, agentes do hospital lembravam que Linda era uma escritora, e que poderia então tudo inventar. Afinal, lhe perguntaram, inventar, não é isso que os escritores fazem?

Em "A pequena outubrista", Linda Bostrom intercala as narrativas do hospital com cenas de sua infância, com o casamento (e o divórcio, Linda foi casada com o escritor Karl Ove Knausgard) e, principalmente, com os quatro filhos: Anna, Olivia, Josef e Sara. O fim do livro é de cortar o coração. Linda refere-se várias vezes à "fábrica", o que leitor intui ser o local onde os choques elétricos eram aplicados. Linda se refere a cargas elétricas muito fortes. Uma sequência intensiva de 12 ciclos de tratamento. Estava certa de que seria incapaz de escrever sobre o que viveu no hospital. Já fora submetida a eletrochoques em outras ocasiões. Sabia tudo sobre o tratamento. E também sabia que os mais rebeldes levavam os choques mais fortes. Era um tratamento popular, que se punha como "uma resposta aos suplícios de todos os indivíduos". Linda sentia uma debilidade interna que a tomava totalmente. Uma silhueta fragmentada na dor.

Quando submetida aos choques, urrava de aflição. Era sedada antes das sessões. Recebia um protetor bucal. Temiam que mordesse a língua. Era obrigada a tomar um relaxante muscular para impedir que seu corpo se deslocasse da maca. A eletricidade era rapidamente aplicada. Sofria um surto de convulsões. Os pacientes eram juntados, na própria escuridão, que Linda descreve como o espaço de um torpor impossível de explicar.

Antes da internação, fora deixada pelo marido. Concentrava-se nos filhos pequenos. Procurava desempenhar as várias tarefas (que decorrem da presença de filhos) nos rápidos intervalos nas quais não se sentia deprimida. Percebia que nunca se encontrava completamente presente com a família. Via-se "anestesiada numa terra de ninguém onde parecia não haver qualquer possibilidade de uma vida real". Não se atrevia a chorar; uma melancolia insuportável. Nada de lágrimas.

Linda descreve os enfermeiros cuidadores que havia no hospital. À humanidade evidente de alguns contrastava a neutralidade e a objetividade de outros. Mostrava-se um cuidado especial para com tentativas de suicídio; nada de cordas, cintos ou qualquer coisa que furasse ou cortasse. Transitava da depressão profunda à euforia em curtíssimo tempo. Dormia permanentemente. Recusava-se a comer. Não sabia se acordaria depois de mais uma sessão de tratamento. Vivia tristeza muda, da qual entendia que jamais iria escapar.

Linda lembra com ternura a vida familiar. Noticia a separação, inevitável, e que de algum modo derivava de sua própria condição. Era incapaz de conduzir a vida, por força da situação aflitiva que a dominava. Suas memórias recorrem à infância, à mãe, ao pai, que protagonizaram um relacionamento neurótico, que certamente afetou a escritora. Lembrou dos namorados, e de um beijador, cujos beijos eram tão molhados que Linda acreditava que mais era obrigada a engolir a saliva do queridinho do que propriamente beijá-lo.

A narrativa não é dulcificada por saída triunfante ou cura definitiva. Linda desconcerta o leitor. Ah! O título. Linda lembra que vira a foto de uma menina (a pequena outubrista) em matéria de revista que tratava de um acampamento da antiga União Soviética. A moça olhava para a câmera "de uma forma que capturava imediatamente a atenção (…) As tranças, a gola azul, o lenço vermelho com um nó, a camisa branca, a saia azul, a estrela vermelha no peito. Ela era uma pequena outubrista no acampamento (…)". Os outubristas, lê-se nos dicionários de política, compunham grupo contrarrevolucionário que apoiou o tzar ao longo dos acontecimentos da Revolução Russa de 1917. Repudiavam mudanças radicais propostas pelos maximalistas, como se chamavam os revolucionários. Linda afirma no livro que seria ser como a menina: queria se devotar à coletividade. Nesse passo, um imperscrutável enigma do livro.

Uma palavra sobre o projeto editorial. A Editora Rua do Sabão está compondo interessantíssimo catálogo com traduções de autores nórdicos. Publicaram recentemente "A luta pela floresta", que trata da presença norueguesa na Amazônia. A tradução de "A pequena outubrista" é de Luciano Dutra. Um desafio, passou do sueco para o português. A leitura flui muito bem. O esforço do tradutor deve ser reconhecido. Há nota no final do livro, sobre a tradução. Concorda-se com Luciano Dutra, o tradutor, no sentido de que traduções são os meios pelos quais pode-se pensar em uma literatura efetivamente universal.

Em "A pequena outubrista", o leitor sensível vive o sofrimento da autora. Nessa partilha existencial não há espaço para reações piegas, que não transcendem das condolências de estilo. Há identificação com a densidade da negativa, em forma de coragem, que nos falta muitas vezes nas horas do desespero. Um paradoxo. Parece-me que nos hospícios, entre os alienados, é que podemos tentar compreender a razão sadia, em forma de estudo de silhuetas fragmentadas, cujos traços exprimem um dos conteúdos mais assombradores da dor humana.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!