Martírio pela cor da pele: a resposta casuística do sistema de Justiça
21 de novembro de 2020, 17h12
Racismo explícito e fatos violentos como esse homicídio têm sido recorrentes no país. A imprensa dá a máxima divulgação possível. Há críticas e desabafos de diversos setores da sociedade, especialmente dos movimentos negros e do campo democrático. Contraponto: manifestações negacionistas do racismo ululante no tecido social brasileiro, como o fez o general Mourão, vice-presidente da República, agravado pelo retumbante silêncio oficial e a completa falta de políticas públicas de integração, educação e cidadania do enorme contingente de brasileiros marginalizados há séculos pela cor da sua pele.
E a justiça, como reage e responde? De regra, a manifestação judicial é casuística. Entretanto, por mais que se espere neutralidade e distanciamento emocional, premida pela opinião pública refletida na imprensa, tradicionalmente a justiça brasileira trata caso de repercussão inicialmente com rigor, mantendo presos os autores do delito, dando celeridade e publicidade ao processo, sobretudo com atuação destacada do ministério público. Com o passar do tempo e diante da torrente de acontecimentos de toda ordem que chegam aos tribunais diariamente, o caso comporá a cifra silenciosa da criminalidade, e muito provavelmente não constará no rol de situações penais cujo elemento subjetivo preponderante seja o racismo.
Como de costume a proverbial morosidade do judiciário arrefecerá o andamento da ação penal, protraindo os reflexos do absurdo episódio na imprensa e na opinião pública. A liberdade dos acusados será natural, em face do decurso temporal de suas prisões preventivas sem o encerramento da instrução criminal. A defesa, por dever de ofício, propugnará para que os réus respondam as acusações em liberdade, alegando provável primariedade e demais requisitos de cidadania, como residência fixa, emprego certo, família e bom comportamento social. Nem o clamor de agora será óbice para libertação dos seguranças. Registre-se que a justiça é quase imune às reações sociais, que não costumam afetar decisões judiciais, exceto em casos de natureza política.
A tradição jurídica brasileira acompanhou pari passu o racismo estruturado pela colonização portuguesa e a ética da igreja católica, sobretudo quanto à escravização de africanos. A tortura, o estupro e o assassinato de escravizados foi legal e moralmente inquestionável até a “abolição”. Mesmo nos dias de hoje pouco ou nada repercute no judiciário dados como os publicados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública – 25.712 mortes violentas intencionais no primeiro semestre de 2020 –, destacando que 74% das vítimas eram pretos ou pardos, números que demonstram inegavelmente a marca racial da violência. Não há justiça que repare, reponha ou retribua tanta iniquidade. Não há direito nesse caos.
A violência racial é a pior marca da escravidão no Brasil. “Nenhum outro assunto é tão importante e tão definidor para a construção da nossa identidade”, destacou Laurentino Gomes (Escravidão, vol. I). Entretanto, ainda hoje há um hercúleo esforço oficial para esconder o racismo no Brasil, através do mito atrasado do brasileiro cordial e da miscigenação “democrática”, ou ainda como manifestou-se através das redes sociais Sergio Camargo, presidente da Fundação Palmares, para quem “não existe racismo estrutural no Brasil; o nosso racismo é circunstancial – ou seja, alguns imbecis que cometem o crime”.
Se de um lado a violência racial cotidiana embrutece a sensibilidade das pessoas, noutro sentido causa perplexidade, estupor e indignação. O brutal assassinato de João Alberto Silveira Freitas produziu imediatamente reações, que podem ser de origem popular espontânea, ou incentivada por interessados em desvirtuar o foco do acontecido. Certamente não faltarão manifestações oficiais repelindo o vandalismo, pela necessidade de preservação da ordem e da paz social.
Inegavelmente a jovem democracia brasileira passa por um dos mais graves momento de sua história, agravada pela pandemia de Covid-19. As instituições republicanas sofrem ameaças e ataques através da polarização política e o negacionismo científico, que obviamente causam reflexos perversos na sociedade e nos cidadãos. Os exemplos que vêm de cima e o discurso oficial repressivo influenciam o policial militar, o guarda de trânsito, e chega ao segurança de supermercado treinados a proceder com máximo rigor contra “intrusos”, negros principalmente.
A lógica punitiva que assola o direito brasileiro, provavelmente abrirá espaço para que surjam propostas de endurecimento da lei penal, tipificando condutas e exacerbando penas, como se tal tivesse o condão de influir ou mitigar o racismo estrutural que acomete a sociedade e suas instituições há séculos.
Espera-se, com toda indignação e revolta, que tragédia de João Alberto, vítima de homicídio com evidente conotação racial, promova reflexões generalizadas na sociedade sobre esse inegável genocídio de pessoas pretas e pardas no Brasil, a começar pelo judiciário.
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