Opinião

Martírio pela cor da pele: a resposta casuística do sistema de Justiça

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21 de novembro de 2020, 17h12

Assistir às imagens da barbárie — o espancamento até a morte de um homem preto por dois brancos, testemunhadas por olhos e câmeras que tudo registraram, mas não impediram o desfecho fatal — demonstra o quanto está impregnada de racismo a sociedade em que vivemos. O episódio extrapola a discriminação racial intrínseca na formação brasileira pelos 350 anos de escravização de milhões de africanos pretos, e dos povos indígenas nativos. É mais uma confirmação da trágica banalização do mal, como no dizer de Hanna Arendt, que desta feita surge na atuação de dois guardas de seguranças de um supermercado, como se estivessem corriqueiramente cumprindo seus deveres, incluindo como tal o homicídio triplamente qualificado de uma pessoa negra.

Racismo explícito e fatos violentos como esse homicídio têm sido recorrentes no país. A imprensa dá a máxima divulgação possível. Há críticas e desabafos de diversos setores da sociedade, especialmente dos movimentos negros e do campo democrático. Contraponto: manifestações negacionistas do racismo ululante no tecido social brasileiro, como o fez o general Mourão, vice-presidente da República, agravado pelo retumbante silêncio oficial e a completa falta de políticas públicas de integração, educação e cidadania do enorme contingente de brasileiros marginalizados há séculos pela cor da sua pele.

E a justiça, como reage e responde? De regra, a manifestação judicial é casuística. Entretanto, por mais que se espere neutralidade e distanciamento emocional, premida pela opinião pública refletida na imprensa, tradicionalmente a justiça brasileira trata caso de repercussão inicialmente com rigor, mantendo presos os autores do delito, dando celeridade e publicidade ao processo, sobretudo com atuação destacada do ministério público. Com o passar do tempo e diante da torrente de acontecimentos de toda ordem que chegam aos tribunais diariamente, o caso comporá a cifra silenciosa da criminalidade, e muito provavelmente não constará no rol de situações penais cujo elemento subjetivo preponderante seja o racismo.

Como de costume a proverbial morosidade do judiciário arrefecerá o andamento da ação penal, protraindo os reflexos do absurdo episódio na imprensa e na opinião pública. A liberdade dos acusados será natural, em face do decurso temporal de suas prisões preventivas sem o encerramento da instrução criminal. A defesa, por dever de ofício, propugnará para que os réus respondam as acusações em liberdade, alegando provável primariedade e demais requisitos de cidadania, como residência fixa, emprego certo, família e bom comportamento social. Nem o clamor de agora será óbice para libertação dos seguranças. Registre-se que a justiça é quase imune às reações sociais, que não costumam afetar decisões judiciais, exceto em casos de natureza política.

A tradição jurídica brasileira acompanhou pari passu o racismo estruturado pela colonização portuguesa e a ética da igreja católica, sobretudo quanto à escravização de africanos. A tortura, o estupro e o assassinato de escravizados foi legal e moralmente inquestionável até a “abolição”. Mesmo nos dias de hoje pouco ou nada repercute no judiciário dados como os publicados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública – 25.712 mortes violentas intencionais no primeiro semestre de 2020 –, destacando que 74% das vítimas eram pretos ou pardos, números que demonstram inegavelmente a marca racial da violência. Não há justiça que repare, reponha ou retribua tanta iniquidade. Não há direito nesse caos.

 A violência racial é a pior marca da escravidão no Brasil. “Nenhum outro assunto é tão importante e tão definidor para a construção da nossa identidade”, destacou Laurentino Gomes (Escravidão, vol. I). Entretanto, ainda hoje há um hercúleo esforço oficial para esconder o racismo no Brasil, através do mito atrasado do brasileiro cordial e da miscigenação “democrática”, ou ainda como manifestou-se através das redes sociais Sergio Camargo, presidente da Fundação Palmares, para quem “não existe racismo estrutural no Brasil; o nosso racismo é circunstancial – ou seja, alguns imbecis que cometem o crime”.

Se de um lado a violência racial cotidiana embrutece a sensibilidade das pessoas, noutro sentido causa perplexidade, estupor e indignação. O brutal assassinato de João Alberto Silveira Freitas produziu imediatamente reações, que podem ser de origem popular espontânea, ou incentivada por interessados em desvirtuar o foco do acontecido. Certamente não faltarão manifestações oficiais repelindo o vandalismo, pela necessidade de preservação da ordem e da paz social. 

Inegavelmente a jovem democracia brasileira passa por um dos mais graves momento de sua história, agravada pela pandemia de Covid-19. As instituições republicanas sofrem ameaças e ataques através da polarização política e o negacionismo científico, que obviamente causam reflexos perversos na sociedade e nos cidadãos. Os exemplos que vêm de cima e o discurso oficial repressivo influenciam o policial militar, o guarda de trânsito, e chega ao segurança de supermercado treinados a proceder com máximo rigor contra “intrusos”, negros principalmente.

A lógica punitiva que assola o direito brasileiro, provavelmente abrirá espaço para que surjam propostas de endurecimento da lei penal, tipificando condutas e exacerbando penas, como se tal tivesse o condão de influir ou mitigar o racismo estrutural que acomete a sociedade e suas instituições há séculos.

Espera-se, com toda indignação e revolta, que tragédia de João Alberto, vítima de homicídio com evidente conotação racial, promova reflexões generalizadas na sociedade sobre esse inegável genocídio de pessoas pretas e pardas no Brasil, a começar pelo judiciário.    

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