Opinião

O pacote de reformas penais (anticrime): reafirmação do fim do exame criminológico

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20 de novembro de 2020, 12h09

Bem sabido que desde a edição da Lei de Execução Penal o exame criminológico nunca deixara de existir, por expressa previsão legal e por vontade do legislador. No entanto, trata-se do exame criminológico de classificação do sentenciado, em seu ingresso no sistema prisional, sendo obrigatório aos condenados ao regime fechado, facultativo aos de regime semiaberto.

O exame de classificação (artigo 8º da LEP) foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, decorrente do princípio da individualização da pena — artigo 5º, inciso XLVI, aplicável em todo âmbito do processo penal ao processo executivo penal e tem clara destinação protetiva de direitos individuais.

Para a LEP, a finalidade do exame é obter "elementos necessários a uma adequada classificação e com vistas à individualização da execução", a ser lavrado por uma Comissão Técnica de Classificação, composta por no mínimo dois diretores, um psiquiatra, um psicólogo e um assistente social [1]. Mas o exame não é realizado nas unidades prisionais, via de regra. E, como advertia Alvino de Sá:

"Ao se exigir o exame feito para fins de concessão de benefícios  legais, dever-se-ia, no mínimo, pressupor a realização prévia do exame de entrada, pois este deveria ser o parâmetro para todas as avaliações posteriores, bem como para as medidas que visem melhor preparar o encarcerado para seu retorno ao convívio social" [2].

No mesmo passo, a LEP, em sua origem nos idos de 1984, entendeu como de necessária ampliação seu uso, com a fixação da feitura do exame criminológico como critério facultativo para concessão de direitos execucionais, nos termos do parágrafo único do artigo 112.

"Artigo 112  Parágrafo único. A decisão será motivada e precedida de parecer da Comissão Técnica de Classificação e do exame criminológico, quando necessário".

Nota-se, portanto, que esteve legalmente a cargo da autoridade judiciária a determinação da realização do exame criminológico para fins da conquista de direitos no curso da execução penal, desde que necessária e em decisão motivada. A motivação das decisões judiciais ganha status de garantia constitucional em 1988, com a previsão do artigo 93, inciso IX.

Em 2003, com a edição da Lei 10.792/2003, a LEP deixa de prever em seu artigo 112 a necessidade, ainda que fundamentada por decisão judicial, do exame criminológico para fins de análise de direitos dos sentenciados.

"112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão" (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 2003).

Tornou-se notório e indene de dúvidas a conjugação de apenas dois requisitos para progressões de regime, livramento condicional, comutação e indulto de penas: 1) índole objetiva "(fração temporal de resgate da pena, cujos lapsos encontram-se dispersos na LEP, no Código Penal e em leis especiais — como a 11.343/06 e a 8.072/90)" e 2) índole subjetiva, limitado à expedição de atestado de comportamento carcerário do requerente preso: "Em regra, este atestado de bom comportamento carcerário é lastreado pela ausência da prática de condutas indisciplinadas (faltas): no Estado de São Paulo, por exemplo: a reabilitação ao bom comportamento é de 12 (doze) meses para infrações de natureza grave; 06 meses (infrações médias); 03 meses (infrações leves)" [3].

A redação de 2013 foi clara em suprimir a possibilidade de exigência da feitura de exame criminológico, ainda que por decisão motivada do juízo. Houve uma clara ruptura com o sistema anterior e a análise criminológica, de índole extremamente punitivista e baseada no direito penal do autor, torna-se violadora, na praxe judiciária, também do princípio da reserva legal.

Reacendia-se, inclusive, as necessárias críticas ao exame, conforme bem sintetiza Alvino de Sá:

"Às vezes o técnico que realiza o exame criminológico nem sequer se dá conta de que ele está lançando mão do método subjacente às tabelas de índices, com suas desvantagens (falta de visão do todo, da integração e inter-relação dos fatores), e sem que goze de suas vantagens (maior objetividade, cientificidade). Isso acontece quando, por exemplo, se retiram do conjunto e se valoram características de personalidade (por exemplo, agressividade, impulsividade, primitivismo, baixa resistência à frustração, entre outras), dados da vida pessoal e familiar (por exemplo, lar desestruturado, desadaptação à escola, fugas do lar, entre outros), dados de observação (ausência de autocrítica, perspectivas inconsistentes de vida futura). Algumas dessas informações são valoradas sem que se leve em conta todo o contexto, seja o próprio contexto psicológico do indivíduo, com toda sua história de marginalização, de vulnerabilização perante a sociedade e o sistema punitivo, seja principalmente o contexto de encarceramento" [4].

Porém, nos juízos e tribunais, a discussão não cessou. Se pela hodierna movimentação dos tribunais pátrios o ativismo judicial é tema recorrente nas críticas doutrinárias, o fenômeno gerou não só uma corrente absolutamente majoritária, mas a edição de duas súmulas pelas cortes de Brasília.

Advieram:

1) Súmula vinculante 26 do Supremo Tribunal Federal 2009: "Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico"; 2) Súmula 439 do Superior Tribunal de Justiça 2010: "Admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada".

Literalmente as cortes superiores repristinaram conteúdo de lei reformada (redação original do artigo 112 da LEP, de 1984), devidamente reparada pelo Poder Legislativo em 2003, usurpando competência constitucional exclusiva da União em matéria de execução penal, reimplementando de forma jurisdicional (ativismo) mais um requisito para a conquista de direitos subjetivos de pessoas submetidas ao jugo do cárcere: exame criminológico.

De estranha redação, a Súmula Vinculante nº 26 do STF, no mesmo verbete, mescla direito subjetivo do jurisdicionado "(reconhecimento da progressão de regime para autores de crimes hediondos)" com a recriação de contragarantia individual "(afirmação da possibilidade de exigência de exame criminológico para direitos)".

A conduta da corte afina-se com riders, ou caldas, ou, nas palavras críticas do próprio STF: "violação ao princípio democrático e ao devido processo legal legislativo" (no caso, em exercício de função atípica):

"DIREITO CONSTITUCIONAL. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. EMENDA PARLAMENTAR EM PROJETO DE CONVERSÃO DE MEDIDA PROVISÓRIA EM LEI. CONTEÚDO TEMÁTICO DISTINTO DAQUELE ORIGINÁRIO DA MEDIDA PROVISÓRIA. PRÁTICA EM DESACORDO COM O PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E COM O DEVIDO PROCESSO LEGAL (DEVIDO PROCESSO LEGISLATIVO). 1. Viola a Constituição da República, notadamente o princípio democrático e o devido processo legislativo (arts. 1º, caput, parágrafo único, 2º, caput, 5º, caput, e LIV, CRFB), a prática da inserção, mediante emenda parlamentar no processo legislativo de conversão de medida provisória em lei, de matérias de conteúdo temático estranho ao objeto originário da medida provisória. 2. Em atenção ao princípio da segurança jurídica (art. 1º e 5º, XXXVI, CRFB), mantém-se hígidas todas as leis de conversão fruto dessa prática promulgadas até a data do presente julgamento, inclusive aquela impugnada nesta ação. 3. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente por maioria de votos. (ADI 5127, Relator(a): Min. Rosa Weber, 11-05- 2016)".

Meses após viria a súmula do STJ, que, de igual forma, tratou de legislar em matéria de execução penal, no mesmo sentido de ressuscitar o famigerado exame criminológico para fins de direitos da execução penal. (S. 439, já transcrita).

Cogente destacar que o Legislativo, até o momento, reconhece a ausência de lei sobre o tema "exame criminológico para direitos da execução penal".

Segundo a Agência Senado, "a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) aprovou, nesta quarta-feira (31 de maio de 2017), projeto de lei (PLS 499/2015) do senador Lasier Martins (PDT-RS) que restabelece a exigência de parecer da Comissão Técnica de Classificação e do exame criminológico para a progressão do regime de pena. A proposta recebeu parecer favorável do relator, senador Ronaldo Caiado (DEM-GO), e, se não houver recurso para votação pelo Plenário do Senado, será enviada direto à Câmara dos Deputados".

A manchete vaticina: "Volta do exame criminológico e exigências para a progressão da pena são aprovadas na CCJ" do Senado Federal [5]. O projeto ainda está em tramitação, com último andamento aos 8 de maio de 2019.

"Projeto de Lei do Senado n° 499, de 2015. Ementa: Altera o art. 112 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), e art. 2º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, para restabelecer o exame criminológico e aumentar os prazos para progressão de regime. Explicação da Ementa: Altera a Lei nº 7.210/84, Lei de Execução Penal e a Lei nº 8.072/90, Lei dos Crimes Hediondos, para restabelecer a necessidade do exame criminológico para a progressão de regime, bem como aumentar os prazos de um sexto para dois terços do cumprimento da pena para a concessão do referido benefício; nos casos de crimes hediondos o prazo será aumentado de dois quintos para quatro quintos".

Advém que o Poder Legislativo foi recém e novamente chamado para a revisão do artigo 112 da LEP, com o pacote de reformas de leis penais, em geral. Em janeiro de 2020, passou a valer a nova redação do artigo 112 da LEP, sem a previsão do exame criminológico como possibilidade de uso pelo juízo:

"A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos:
§1º. Em todos os casos, o apenado só terá direito à progressão de regime se ostentar boa conduta carcerária, comprovada pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
§2º. A decisão do juiz que determinar a progressão de regime será sempre motivada e precedida de manifestação do Ministério Público e do defensor, procedimento que também será adotado na concessão de livramento condicional, indulto e comutação de penas, respeitados os prazos previstos nas normas vigentes. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)".

Em conclusão, o evidente choque entre Poder Legislativo e ativismo judicial, o pacote de reformas penais, processuais penais e de execução penal, ao passar pelas Casas legislativas não sofreu qualquer intervenção para prever o exame criminológico no artigo 112 da LEP. Este foi amplamente reformado e poderia ter recebido a reativação da redação original da Lei de Execução Penal, caso fosse a vontade do legislador. Afinal, como visto, há projeto de lei específico para tal fim e só se pode discutir, votar e aprovar aquilo que não existe.

Para ficar num exemplo, da vontade do legislador: a Súmula STJ — 534 foi legalizada ("interrupção da contagem de tempo para a progressão de regime, pela prática de falta grave" artigo 112, § 6º, LEP).

Em termos claros, o princípio da reserva legal é seguido pelo Parlamento. Todos tiveram ao seu dispor a livre iniciativa do reavivamento, estritamente legal, do exame criminológico. E não há na nova redação do artigo 112 da LEP, no que toca à ausência de previsão de exame criminológico, qualquer inconstitucionalidade.

Opera-se, assim, o cancelamento claro das súmulas, superadas constitucionalmente com base na separação de poderes, no princípio da reserva legal e na superveniência de lei mais favorável: a súmula, forma atípica de legislar (pelo Poder Judiciário) sucumbe à vontade do legislador (em função típica). A vontade do legislador superou entendimento jurisprudencial, exarado há uma década, e, rigorosamente construído em ofensa a diversos direitos e garantias individuais.

"Ementa: APELO DO MINISTÉRIO PÚBLICO – PENA FIXADA ABAIXO DO MÍNIMO LEGAL EM FACE DA ATENUANTE DA MENORIDADE RELATIVA DOS RÉUS (ART. 65 , I , CP )- IMPOSSIBILIDADE – NORMA LEGAL QUE PREVIAMENTE ESTIPULOU O APENAMENTO MÍNIMO E MÁXIMO NECESSÁRIO PARA A REPRIMENDA DO CRIME – Em observância ao princípio da legalidade que, por sua vez, se desdobra no princípio da reserva legal, não pode o juiz, mesmo reconhecendo a existência de alguma circunstância atenuante da pena (art. 65 , CP ), reduzir a pena abaixo do mínimo legal, pois, assim agindo, estará substituindo a vontade do legislador, que fixou um parâmetro mínimo e máximo para a reprimenda daquele crime (…) – (Apelação Crime ACR 4992905 PR 0499290-5 / TJ-PR)".

Afinal, no dia a dia, psicólogos, assistentes sociais e médicos continuam concretamente deslocados de suas missões de atenção ao preso para serem reféns de uma interminável lista de exames criminológicos, determinados pelo Poder Judiciário. Ou presos que são diuturnamente regredidos de regime, para submissão ao exame. A letargia causada pelo ilegal requisito, que de exceção virou regra, nos juízos e tribunais, reverbera na mantença do superencarceramento brasileiro, excesso de execução e subjugação humana a um exame feito de baciadas. Há, aqui também, alta dose de um estado de coisas inconstitucional.

 


[1] Resolução de nº 88/2010 da Secretaria da Administração Penitenciária.

[2] Criminologia clínica e execução penal – proposta de um modelo de terceira geração. Augusto de Sá, Alvino. Ed. Saraiva. São Paulo, 2015.

[3] Resolução nº 144/2010 da Secretaria de Administração Penitenciária.

[4] Augusto de Sá, Alvino. Idem.

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