Opinião

Telessaque: prática lesiva dos bancos é descortinada pelo Poder Judiciário

Autores

  • Lilian Salgado

    é presidente do Instituto Defesa Coletiva advogada pós-graduada em Direito Empresarial pela IEC/PUC-MG e integra a Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/MG e o Conselho Gestor do Fundo Estadual de Defesa do Consumidor de Minas Gerais.

  • Camila Oliveira de Souza

    é assessora jurídica do Instituto Defesa Coletiva advogada especialista em Direito Processual pela PUC Minas em Direito Penal e Processo Penal pelo Instituto Elpídio Donizetti e pós-graduanda em Direito Público.

20 de novembro de 2020, 10h34

Tecnicamente conceituando, a prática denominada como "telessaque" é uma funcionalidade atrelada ao cartão de crédito consignado em que o consumidor autoriza via telefone um "novo empréstimo", cujo valor é creditado em sua conta e as parcelas são lançadas em uma suposta "fatura" e descontadas da reserva de margem consignada do cartão, ou seja, do benefício de aposentadoria ou pensão recebido do INSS.

Ocorre que se tem verificado na prática outra realidade: essa operação não segue as formalidades necessárias para esse tipo de contratação, tampouco os princípios da boa-fé, equidade e transparência, tão esperados na fase pré-contratual, o que tem causado diversos transtornos que variam de acordo com o modus operandi das instituições financeiras.

Apesar do conceito dado ao telessaque, que, à primeira vista, pode soar prático e eficaz, sua concepção se consubstancia em uma situação utópica e dissociada da realidade.

A contratação não possui tantos benefícios e não ocorre nos termos literais com que são anunciados pelas instituições financeiras. Nesse viés, tem sido possível verificar, pelo menos, duas modalidades em que o telessaque ocorre.

Na primeira modalidade, o banco, mediante ligação telefônica e de forma ininteligível, oferece um limite disponível para compras no cartão de crédito para os consumidores, em especial aposentados e pensionistas, como se fosse um empréstimo comum e extremamente vantajoso, creditando na conta corrente ou poupança do consumidor o montante em dinheiro.

O saque é embutido na contratação, de modo que o consumidor sequer tem ciência que o valor será creditado em sua conta. Isto é, o cidadão contrata o cartão de crédito acreditando que o saque se trata de mera faculdade/opção que somente será realizado se assim for solicitado, contudo, é surpreendido com o depósito de montante em sua conta, momento em que é informado de que, na requisição do cartão, feita por meio de ligação telefônica em grande parte das vezes, foi contratado o saque.

Após dias ou mesmo meses da realização do depósito pelo banco, o consumidor percebe que estão sendo descontados valores em seu benefício. Nesse momento, ele procura se informar acerca da origem dos descontos, descobrindo que se trata de depósito efetuado pelo banco sem o seu consentimento, o qual está atrelado ao cartão de crédito consignado.

Dessa forma, depreende-se que, em muitos casos, a instituição financeira realiza depósitos na conta de seus clientes sem a anuência ou mesmo ciência das cláusulas contratuais e dos riscos da má utilização do serviço, pois deixa de informar dados essenciais para depois cobrar o valor depositado, acrescido de juros e demais encargos financeiros, por meio de descontos infindáveis aos benefícios dos consumidores.

A segunda modalidade de atuação é caracterizada pela liberação de empréstimo mediante depósito em conta dos consumidores, sem qualquer autorização ou solicitação prévia. Nesses casos, os consumidores são surpreendidos com valores disponíveis em suas contas bancárias sem que tivessem realizado qualquer solicitação.

Em alguns momentos, a instituição financeira entra em contato oferecendo o empréstimo consignado; o consumidor recusa, mas, ainda assim, recebe o depósito de valores em sua conta.

O problema do telessaque
Serviços como o telessaque geram um impacto direto no patrimônio do consumidor, pois o seu pagamento é vinculado ao benefício previdenciário e, por ser uma contratação irrevogável e de longo prazo, ocupam uma boa parte de seu orçamento mensal, que fica comprometida para pagar esse débito, o que pode gerar o superendividamento do consumidor idoso.

Por esse motivo, no momento de realizar esse tipo de contratação o consumidor deve estar ciente do crédito que está adquirindo e de todas as suas implicações, como o tempo de pagamento, as taxas, os juros, o valor adquirido, o valor total do débito, entre outros.

Como se percebe, o cartão de crédito consignado reúne características híbridas de cartão de crédito e empréstimo consignado, sendo de difícil compreensão a sua dinâmica e forma de cobrança, o que acaba por tornar a contratação de suas operações por telefone como prática abusiva, conforme se verá no decorrer deste tópico.

Outro aspecto a ser analisado é o grande risco da ocorrência de fraudes, haja vista que basta informar os dados básicos do titular do cartão para realizar a contratação, não sendo exigido nenhum tipo de conferência ou segurança adicional. Essa situação pode gerar vários transtornos aos consumidores em caso de conduta maliciosa e mesmo criminosa de terceiros.

Por outro lado, não são poucas as constatações de reclamações dos consumidores alegando serem assediados por instituições financeiras que entram em contato oferecendo cartão de crédito e empréstimos consignados a pretensos aposentados, muito antes de a própria pessoa saber que aposentou.

Essa situação traz a alusão de que há algum vazamento de dados por parte do INSS em favor das instituições financeiras, situação que agora é veementemente condenada por parte da Lei Geral de Proteção de Dados, que entrou em vigor em setembro deste ano.

Esses são apenas alguns dos inúmeros problemas que o telessaque possui.

O banco se vale da ignorância dos consumidores e da agressividade do telemarketing para conseguir lograr êxito em seu intento, impingindo aos cidadãos mais carentes modalidade de crédito mais cara e não desejada. O banco transforma a natureza do crédito rotativo ao oferecê-lo como crédito fixo, ferindo o direito de escolha e informação adequada dos consumidores menos favorecidos economicamente.

Nesse momento, os consumidores estão assumindo uma contratação onerosa de duração longínqua, em que terão valores descontados diretamente de seus pagamentos, sem ter conhecimento de quais ônus e implicações legais estão assumindo.

Essa situação viola fortemente o artigo 31 do Código de Defesa do Consumidor, que prevê que as ofertas devem conter todas as informações imprescindíveis para a contratação, bem como seu artigo 6º, inciso III, onde fica estipulado que a informação é direito básico do consumidor.

Para além disso, o modus operandi das instituições financeiras caracteriza prática abusiva, em diversas vertentes. Com efeito, o condicionamento do uso do cartão de crédito ao recebimento de depósito na conta, como empréstimo consignado, caracteriza venda casada, prática refutada pelo artigo 39, inciso I, do CDC.

De semelhante modo, também se percebe que a instituição financeira tem usado a fraqueza dos consumidores idosos para ofertar esse tipo de produto e serviço, os colocando em desvantagem manifestamente excessiva, características consideradas abusivas pelos incisos III, IV e V da norma consumerista.

Diante de tamanha contrariedade às normas consumeristas, surge a grande pergunta: não há regulamentação que determine qual deve ser o modus operandi do cartão de crédito consignado?

Por mais surpreendente que seja, a resposta para a questão anterior é afirmativa. Há, sim, uma regulamentação que deve ser seguida pelas instituições financeiras.

O crédito consignado do INSS é regido pelo artigo 6º da Lei nº 10.820/2003 e pelas Instruções Normativas do INSS nºs 39 e 100. O artigo 3º da Instrução Normativa nº 39/2009 do INSS prevê expressamente quais são os requisitos necessários para a consignação de empréstimos em benefícios previdenciários, entre os quais consta a autorização de forma expressa por escrito, sendo vedada a autorização por telefone e gravação de voz, o que torna a prática eivada de vício.

Assim, extrai-se o entendimento de que, além de ser vedada a contratação via telefone, a efetivação dos descontos nos benefícios dos aposentados e pensionistas somente é lícita após a formalização do contrato de cartão de crédito consignado, contendo as assinaturas, termo de autorização para desconto e Termo de Consentimento Esclarecido (TCE), que deve ser encaminhado ao INSS, o que não ocorre no caso do telessaque.

O posicionamento do Poder Judiciário
O surgimento de um elevado número de reclamações e casos tem levado algumas entidades de defesa do consumidor a ajuizar ações civis públicas visando a tutelar os interesses de toda a sociedade. É o caso do Instituto Defesa Coletiva, situado no Estado de Minas Gerais.

A entidade civil, devido ao alto número de reclamações, ajuizou cinco [1] ações civis coletivas, em parceria com outros órgãos [2], em face dos principais bancos que realizam a prática do telessaque. Entre elas, quatro possuem decisão liminar em vigor determinando que os bancos se abstivessem de creditar quaisquer valores na conta bancária dos consumidores sem sua anuência, sob pena de multa de 100% do valor depositado, bem como cessassem as operações de crédito via telefone, através do cartão de crédito consignado, também sob multa de 100% do valor liberado.

Nessas ações coletivas, são demonstrados os fundamentos que permeiam os direitos dos consumidores que foram vítimas do tele saque. Extrai-se do teor de uma das iniciais da ação coletiva que, além do pedido de condenação por danos morais individuais e coletivos, há o pleito de que os depósitos realizados na conta dos consumidores sejam considerados como amostra grátis, nos termos do parágrafo único do artigo 39 do CDC.

Através dessas ações civis públicas, já é possível ter uma dimensão do posicionamento do Judiciário sobre essa emblemática no âmbito coletivo. À guisa de exemplo, colaciona-se abaixo a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

"AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO COLETIVA – DIREITO DO CONSUMIDOR – PRELIMINARES DE INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA E AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR – REJEIÇÃO – CRÉDITO EM CONTA SEM A ANUÊNCIA DO CORRENTISTA – ILEGALIDADE – OPERAÇÕES DE CRÉDITO VIA TELEFONE – "TELE SAQUE" – ABUSIVIDADE. (…)Ainda que a contratação do cartão de crédito siga a forma prescrita em lei, a oferta desse serviço "facultativo" de saque ocorre via telefone, induzindo-se à contração de novo empréstimo, bastando mera autorização para o lançamento do crédito na conta do consumidor. Referida prática viola o direito à informação, a boa-fé e à função social do contrato, sobretudo porque geralmente os consumidores a ela sujeitados – pensionistas ou aposentados – são pessoas idosas e vulneráveis em inúmeros aspectos (saúde, conhecimento, condição social etc.) (art. 39, IV do CDC). A abusividade não reside propriamente na opção de saque atrelada ao cartão de crédito consignado, mas sim na oferta deste tipo de crédito pela via da ligação telefônica. Ademais, a norma do art. 39, III do CDC também veda ao fornecedor a execução de serviços ou a entrega de produtos "sem prévia autorização" ou "solicitação do cliente", o que torna abusivo o crédito na conta bancária do consumidor sem sua clara, informada e insuspeita autorização ou anuência. (TJMG – Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.19.145399-2/001, Relator(a): Des.(a) Manoel dos Reis Morais , 20ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 19/08/0020, publicação da súmula em 20/08/2020) (Sem grifos no original)".

No decorre do voto, o desembargador relator Manoel dos Reis Morais reconhece que a contratação do crédito consignado deve ser pessoal, de modo que não pode ser aceita a autorização por telefone, tendo em vista que essa operação não deixa de ser uma forma de contratação de empréstimo por telefone, o que burla a intentio legislativa quanto à publicação desta forma de pactuação.

Essa decisão não se mostra isolada, é possível encontrar diversas outras decisões [3] judiciais, inclusive do próprio Superior Tribunal de Justiça (AREsp nº 1.274.207/SP), que descortinam a prática do telessaque e rechaçam a possibilidade de continuidade dessa operação em nossa sociedade, porquanto viola diversas normas legais, morais e principiológicas.

Apesar de o telessaque ser uma abusividade contemporânea, o seu antídoto já está previsto há décadas na seção de práticas abusivas, no parágrafo único do artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor, equiparando às amostras grátis os serviços prestados e os produtos remetidos ou entregues aos consumidor, sem solicitação prévia, inexistindo a obrigação de pagamento. 

Pelos posicionamentos da sociedade, dos consumidores e do próprio Poder Judiciário, é possível fazer um prospecto de que essa nova tendência continuará a ser refutada até que as instituições financeiras finalmente entendam pela cessação dessa conduta.

 


Referências bibliográficas:
— BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 12 set. 1990.
— BRASIL. Lei nº 10.820, de 17 de dezembro de 2003. Dispõe sobre a autorização para desconto de prestações em folha de pagamento, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 18 dez. 2003.
— BRASIL. Instrução Normativa nº 39, de 18 de junho de 2009. Altera a Instrução Normativa nº 28/INSS/PRES, de 16 de maio de 2008, que estabelece critérios e procedimentos operacionais para a consignação de descontos para pagamento de empréstimos pessoal e cartão de crédito, contraídos pelos beneficiários da Previdência Social. Diário Oficial da União, Brasília, 19 jun. 2009.
— BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Diário Oficial da União, Brasília, 15 ago. 2018.

 


[1] Processos  nº 5155455-94.2019.8.13.0024 (em face do Banco Safra), n º 5155410-90.2019.8.13.0024 (em face do Banco Pan), nº 5154588-04.2019.8.13.0024 (em face do Banco BMG) nº 5041991-58.2020.8.13.0024 (em face do Banco Olé Consignado), nº 5155320-82.2019.8.13.0024 (em face do Banco do Cetelém).

[2] Na Ação Civil Pública contra o Banco Pan são autores o Instituto Defesa Coletiva, o Procon Uberaba e a Defensoria Pública-MG. Nas Ações Civis Públicas contra o Banco, Banco Olé, Banco BMG e Banco Safra figuram no polo ativo o Instituto Defesa Coletiva e a Defensoria Pública de Minas Gerais.

Autores

  • Brave

    é presidente do Instituto Defesa Coletiva, advogada, pós-graduada em Direito Empresarial pela IEC/PUC-MG e integra a Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/MG e o Conselho Gestor do Fundo Estadual de Defesa do Consumidor de Minas Gerais.

  • Brave

    é sócia-titular e especialista em Direito Empresarial do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia.

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