Senso incomum

Para alvos estreitos, qualquer PDF-que-vai-direto-ao-ponto serve

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19 de novembro de 2020, 8h00

Abstract: Na Era Digital, a neocaverna aumenta! E se compram menos livros. Dia a dia, menos!

Spacca
1. Um trágico diagnóstico
Em 2019, Henderson Fürst já havia anotado (e eu comentado aqui) o trágico diagnóstico envolvendo o mercado de livro técnicos, científicos e profissionais. Em síntese, à época constatou-se que o número de advogados e de faculdades de Direito aumentava, mas a venda de livros encolhia 65,8%, nos três anos que antecederam a correlação de fatores apontada por Fürst. Não é pouca coisa e, convenhamos, não parece uma estatística, digamos, contingencial.

Embora não tenha ficado indiferente, não posso dizer que “corei” com os dados apresentados no ano passado. Após mais de três décadas de docência acadêmica, sei perfeitamente como é o “perfil” de nossos estudantes. Ao objetivarem as carreiras jurídicas facultadas, claro, pelos tantos cursos de Direito espalhados pelo Brasil, esses mesmos alunos instrumentalizam o aprendizado.

Quero dizer, se há algo de útil visualizado no horizonte dessa geração de estudantes (e de algumas passadas também), essa “utilidade” não vai além de passar na “prova da OAB” ou num concurso aqui e outro acolá. O objetivo é sempre esse, e o caminho é ululante: para alvos estreitos, qualquer PDF-que-vai-direto-ao-ponto serve. É a Era do Resumão. Mauro Mendes Dias, em seu O Discurso da Estupidez, mostra bem isso, quando fala do “ponto surdo” do discurso.

Mas vejam qual é o busílis aqui: estou culpando o aluno? É claro que não. O sujeito não tem culpa de estar inserido nessa lógica estupidificante. Meu ponto é que há que se sobreviver à estupidificação – precisamente porque jabuti não dá em árvore e é ‘isso tudo que tá aí’ que causa… isso tudo que está aí. Pois é.

2. Mais um trágico diagnóstico: ainda lemos?
Agora, em parceria com a economista Mariana Bueno, Fürst volta ao tema (aqui) e traz um dado que, especificamente, chamou minha atenção. Se em 2014 foram produzidos cerca de 14 milhões de livros jurídicos, em 2019 esse número foi de pouco mais de cinco milhões. A redução chega a ser constrangedora e, para além de minha análise, algumas hipóteses são dispostas. Embora não cubram o déficit, temos, por exemplo, o advento de literatura especializada em formato digital.

Henderson e Mariana mostram, entretanto, que o buraco é mais embaixo. O ponto não é em que formato lemos, mas se lemos. Puxando dados da 5ª edição da Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pró-Livro, o percentual da população brasileira considerada leitora caiu de 56% em 2015 para 52% em 2019. Mais grave: entre os universitários de 18 a 24 anos, o tombo foi ainda maior, passando de 67% para 59%.

Ou seja, se já parecia estarrecedora a ideia de que pudesse haver um universitário “não leitor” (e 33% era em 2015!), em 2019 esse índice aumentou para 41%. É pasmante: quase metade de nossos universitários nesta faixa etária, da Medicina ao Direito, não lê. Repito: não lê livros. Como é possível isso? Como é possível que se tenha aberto mão da mais mínima condição de possibilidade para uma formação?

Parece haver — e o texto de Henderson e Mariana é pródigo em mostrar isso — uma espécie de desvio de curso no objetivo com a leitura. Se parece — ou parecia — óbvio — que este hábito, ao menos durante as graduações, voltava-se à prospecção de “atualização cultural ou conhecimento geral”, buscando, ainda e sobretudo, “aprender algo novo ou desenvolver alguma habilidade” etc., agora a “leitura” parece voltar-se mais especificamente ao desenvolvimento de algum softskill, ou seja, ao desenvolvimento de habilidades comportamentais ou “competências subjetivas difíceis de avaliar”. Seria algo como, ao invés de se procurar aprender “Direito Constitucional” na faculdade de Direito, o aluno buscasse desenvolver “habilidades de trabalho em equipe”. Estudo do “novo normal”.

3. As consequências vêm sempre depois!
Sim, sim, é claro que não pode dar certo. Como diria o Conselheiro Acácio, “as consequências vêm sempre depois”. Nesse ritmo, o futuro não parece promissor. Preocupante? Calma. Pode piorar. Afinal, mesmo esse tipo enviesado de conhecimento (?!) “perde” para outras atividades, como “assistir TV”, “navegar na internet”, “ouvir música ou rádio”, “usar o WhatsApp” e “assistir filmes”. Já não importa se o livro científico, técnico ou profissional é caracterizado por conteúdo preciso e confiável. Bom mesmo é o Youtube. Um filminho. Ou um blog. De quem? Não importa.

Henderson e Mariana buscam explicações na quantidade de matriculados ou na migração de conteúdo impresso para o digital, mas logo concluem que nem isso “explica”, no todo, a queda no consumo de livros voltados ao conteúdo técnico, científico e profissional. Longe disso.

E é aqui que eu volto ao ponto fundamental, que esbocei lá ao início. Há — e de há muito venho alertando sobre isso — uma migração rumo às facilitações e aos atalhos. Henderson e Mariana mostram a generalidade de minhas constatações. Ou seja, não é só no Direito. Esse “novo jeito” de dominar uma profissão parece ter se alastrado. Hora de estocar comida? Parece que sim. É muito Direito 4.0 e quejandos. É muito desing.

Pois é. Os autores do texto que motivam estas análises, ao final do argumento, observam que não é possível determinar os impactos desse universo de não leitores, seja para o mercado, seja para os futuros profissionais. Mas convidam, dada a relevância do tema, à reflexão sobre este cenário e sobre tão estarrecedores dados. É aqui que me encaixo.

4. Os porquês!
Intuo que talvez avaliar os impactos desse lamentável estado de coisas no mercado editorial seja, de fato, uma tarefa de resultado mais impreciso. Afinal de contas, há toda uma plasticidade envolvendo nichos comercializáveis que pode, muito bem, canalizar saídas estritamente mercadológicas. Aqui não palpito. Além do mais, essa discussão — embora reconheça a importância — não me interessa. Por outro lado, arrisco ensaiar uma sequência ao debate proposto por Henderson e Mariana no que se refere ao “desenvolvimento” desses indivíduos que projetam o domínio de uma profissão à margem de leitura apropriada. Recorro, para isso, à filosofia e à ciência.

Comecemos pelos paradigmas filosóficos. No contexto do movimento conhecido como ontological linguistic turn, em que a linguagem passa a inundar as disciplinas normativas da filosofia como “questão central” na contemporaneidade, Heidegger observou que essa mesma “linguagem” era a “morada do ser”. Isso significa que a linguagem é a condição de possibilidade para o pensar. Não há mundo fora dela. Traduzindo: se a realidade existia independentemente do sujeito na metafísica clássica e, no paradigma moderno, era revelada através da racionalidade humana, com o giro ontológico-linguístico ela, a realidade, existe tão-somente a partir da linguagem.

Sem perder de vista esta lição revolucionária da filosofia da primeira metade do século XX, voltemos, agora, às observações acerca da utilização de livros técnicos, científicos e profissionais, há pouco vistas, para indagar: estamos, com a significativa redução da prática da leitura, procurando “ter mundo”, isto é, “desvelar o mundo de uma determinada profissão”, apropriando-o, paradoxalmente, “sem linguagem”?

Ainda que a resposta afirmativa — e não pode ser outra — seja contraintuitiva, isso significa que, sim, é hora de estocar comida. Está clara, afinal, a imensa contradição que temos aí: projeta-se a formação de profissionais “sem mundo” justamente naquilo que pretendem (e devem) dominar. Mais que um “atalho”, uma “simplificação” ou um “macete”, a substituição da leitura por outros acessos “rouba” linguagem. Sonega, portanto, “mundo”. Eis o ponto.

5. A Fábrica de cretinos digitais
Ponto, aliás, em que a ciência vem dando seus alertas. Recentemente, li na Folha de S. Paulo que, pela primeira vez, os filhos têm QI inferior ao dos pais (aqui). É esse o abstract de A fábrica de cretinos digitais, do neurocientista francês Michel Desmurget, diretor de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde da França. A partir de uma série de dados bastante conclusiva, observa ele que os dispositivos digitais — entre os quais aqueles que, vimos antes, têm substituído os livros — estão afetando negativamente o desenvolvimento neural de crianças e jovens.

Embora o QI seja afetado por diversos fatores, que podem ir desde sistemas de saúde e educação, por exemplo, sem deixar de mencionar, é claro, condições socioeconômicas, o que até então se observava era que, em muitas partes do mundo, a geração subsequente a de seus pais tinha QI mais elevado. Era o “efeito Flynn”, em homenagem ao psicólogo que descreveu o fenômeno. Entretanto, mesmo frente à estabilidade desses sistemas interferentes, o neurocientista francês observou que países como Noruega, Dinamarca, Holanda e a própria França, entre outros, têm visto a diminuição do “efeito Flynn”. Na sua entrevista, é taxativo nesse sentido: “Os ‘nativos digitais’ são os primeiros a ter QI inferior ao dos pais”.

Isso tem ocorrido não pela “falta de leitura”, explicitamente, mas porque há um significativo prejuízo — a partir dos “novos hábitos digitais” — ao desenvolvimento da linguagem que, já sabemos, é a condição de possibilidade para se “ter mundo”.

Não estou aqui a pregar a “volta do lápis”. Sou, como já disse à saciedade, um “jurássico” em termos “constitucionais”. A tecnologia é boa. E eu gosto. Sigamos com a Revolução Digital. Mas parece-me insano (sobremodo, depois de ler a entrevista de monsieur Desmurget) apostar no acesso à especificidade de cada mundo profissional, privando-se de linguagem. O “mundo de cada profissão” — e friso aqui o jurídico, notadamente complexo — não pode ser desvelado a partir de atalhos, PDFs e resuminhos. Agora “resumos haitequi. E nem por algoritmos ou legal designs. Ou thinkings.

6. O que teremos, então?
A (des)leitura do livro jurídico, substituída por fórmulas simplificadas e por todas as “novidades” que ocupam o espaço da (boa) literatura especializada, vão cotidianamente acumulando informação que não produz sabedoria, conhecimento que não dá “mundo” a ninguém. Anos e anos de Caio, Tício, Mévio e gêmeos xifópagos , de exemplos abstratos, bisonhos e bizarros que não significam nada e tornam o Direito algo completamente separado do tempo e da facticidade de há muito já nos mostram isso. Denuncio isso há mais de 30 anos.

O que se sabe agora é que podemos anabolizar esse lamentável estado de coisas. É a epidemia da neocaverna no Direito para outras áreas do saber. Preocupante. É bom, por isso mesmo, estocar comida.

Em tempos de tantas crises — sanitária, econômica, humanitária —, parece que enfrentamos uma nova crise; esta, voluntária, e foi mencionada pelo ex-presidente americano Barack Obama, em comentário à (agora obscurecida) distinção entre o que é fato e o que é ficção: uma crise epistêmica. A gravidade disso é que a chave para a superação de todas as crises (ou quase todas, que seja) é precisamente a sabedoria. A sabedoria, não a informação, não o conhecimento.

Livros são, já dizia George Steiner, a chave para nos tornarmos melhores. Melhores acadêmicos, melhores profissionais, melhores indivíduos — e a coletividade é constituída por… indivíduos.

Daí por que, se a crise é ‘estrutural’ (e parece que é), também não cedo à tentação de culpar tudo na ‘estrutura’. Agora isso virou moda também. Onde fica a responsabilidade e a possibilidade de transcendência, pois? Daí por que volto ao mote: há que se resistir ao processo de estupidificação. As coisas não são por acaso, afinal.

Ou seja: O direito que se aprende facilitado é produzido facilitado, interpretado e aplicado “facilitadamente”. Sim, facilitada-mente. Mente facilitada. Mente-se com facilidade. Afinal, todos os que lidam com o Direito não são filhos de chocadeira. Juízes e promotores e defensores e advogados um dia foram… alunos. Que aprenderam com seus professores, que eram “só professores” (sic), juízes, promotores, defensores, delegados, procuradores, fiscais de rendas e advogados. Que, por sua vez, aprenderam com seus professores, que também eram juízes e promotores e defensores e advogados. Que já haviam sido alunos. De professores, que… bem, vocês entendem. Não quero chegar numa norma fundamental aqui…

Resistamos. Porque as palavras, diz Mauro Mendes Dias, estão perdendo — ou já perderam — a condição de transformar o sentido.

Ou estoquemos comida. Antes que alguém invente uma startup de estoque de comida ou estoque de algoritmos. Porque livro que é bom, nem pensar. Olhem para seus alunos. Vejam quantos livros carregam? Ou para seus amigos.

PS: parabéns, Henderson Fürst.

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