Opinião

Águas superficiais urbanas na Amazônia: esforço para evitar a poluição

Autor

  • Miguel Borghezan

    é advogado professor do Ceuls-Ulbra mestre em Direitos Fundamentais pesquisador e presidente do Fopiess — Fórum de Pesquisadores das Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa de Santarém (PA).

19 de novembro de 2020, 6h34

Introdução
Há uma ideia equivocada no centro dos debates sobre desenvolvimento. Alguns economistas (e outros profissionais) partem do pressuposto de que ambientalistas são contrários ao progresso econômico das pessoas, das cidades e do Brasil. Essa imprecisa compreensão ainda tem assento em governos, mas é hora de repensar, rever conceitos, melhorar os âmbitos de análise aprendendo com erros e acertos de outras pessoas, cidades e países. Qualquer região do planeta Terra, principalmente neste século XXI, pode e deve desenvolver-se sem causar poluição de modo significativo. Águas de qualidade e em quantidade são fundamentais para florescer a vida, em todas as suas formas, em qualquer lugar. É prioritário tratar esse assunto a partir das áreas urbanas, onde pessoas de todas as raças, cores, profissões e credos reúnem-se, para melhor viver e conviver. Com mais urgência se impõe em muitas cidades da Amazônia, onde a degradação das águas superficiais por ação e omissão humanas já é visível, e avança de modo preocupante. Em Santarém (PA) percebe-se a poluição crescer nas águas urbanas pela visível degradação de igarapés. O que fazer, como e quando atuar são objetos deste artigo. 

Bases normativas gerais para atuação do município
A Constituição reconhece ser o meio ambiente natural ecologicamente equilibrado direito fundamental de todos (artigo 225). O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01) compromete-se com a construção de cidades sustentáveis (artigo 2º, I), estabelecendo entre as diretrizes a ordenação e controle do uso do solo, de modo a evitar a poluição e a degradação ambiental (artigo 2º, VI, "g"). O Código Florestal (Lei nº 12.651/12) define a APP como área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas (artigo 3º, II). Elas são de interesse geral e constituem, nos cursos d'água de até dez metros, as faixas marginais desde a borda da calha do leito regular, em largura mínima de 30 metros. As APPs podem sofrer intervenção ou supressão de vegetação nas hipóteses de utilidade pública, interesse social ou baixo impacto ambiental (artigo 3º, VIII e IX), conforme indicado no artigo 8º do mesmo Código Florestal. A regularização fundiária urbana especial (Reurb-E), tratada na Lei nº 13.645/17, reconhece ser admitida a regularização de núcleos urbanos informais que ocupem APPs (não identificadas como áreas de risco), por meio da aprovação de lei municipal específica, desde que ao longo dos rios ou de qualquer curso d’água urbano seja "mantida faixa não edificável com largura mínima de 15 metros de cada lado" (artigo 65, caput, e § 2º, Lei nº 12.651/12). Essa é a largura mínima das APPs em cidades e agrupamentos humanos. Não por acaso, o Superior Tribunal de Justiça reconhece que as áreas de preservação permanente (APP) "formam o coração do regime jurídico ambiental-urbanístico brasileiro no quadro maior do desenvolvimento ecologicamente sustentável" (REsp nº 1.782.692-PB, DJUe de 05.11.2019).

Nesse contexto insere-se o compromisso da política de desenvolvimento urbano no Brasil, que tem bases centrais nos artigos 182 e 183 da Constituição. Importa realçar que nossa ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna conforme ditames da justiça social, sendo de rigor atender nesse sentido os princípios dirigentes da defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação, em busca de reduzir desigualdades regionais e sociais (artigo 170, VI e VII, CF). A dignidade humana é fundamento central de nosso Estado democrático de Direito (artigo 1º, III, CF), e nessa direção caminha o objetivo nacional de reduzir as desigualdades sociais (artigo 3º, III, CF). Mostra-se pertinente ainda registrar ser competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios proteger o meio ambiente e combater a poluição, em qualquer de suas formas (artigo 23, VI, CF). Sob esse arcabouço jurídico, pode/deve o município agir em defesa das águas a partir das cidades?

Cuidar das águas superficiais e subterrâneas deve começar pelo município
O Estatuto da Cidade estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental (artigo 1º, parágrafo único, Lei nº 10.257/01). Essa regra articula-se com os artigos 225 e 23, VI, da Constituição, impondo deveres substanciais aos municípios. Para fins de gerenciamento e gestão, as águas são bens públicos da União (artigo 20, III, CF) e dos Estados (artigo 26, I, CF). A Lei nº 9.433/97, que institui a política nacional de recursos hídricos, insere entre seus objetivos assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos (artigo 2º, I). Entre as diretrizes de atuação dos órgãos competentes inseriu a necessidade de articulação da gestão das águas com o uso do solo (artigo 3º, V, Lei nº 9.433/97). Vendo-se que a Constituição estabelece competir ao município "promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano" (artigo 30, VIII), salta aos olhos não ser possível organizar o território sem cuidar da proteção ambiental das águas urbanas superficiais (e subterrâneas). Enumera-se, nos instrumentos da política nacional, o enquadramento dos corpos d'água segundo os usos preponderantes, sob o compromisso expresso de "diminuir os custos de combate à poluição das águas, mediante ações preventivas permanentes" (artigo 9º, II, Lei nº 9.433/97).

Por todos os ângulos de análise, parece que as ações preventivas de combate à poluição das águas superficiais urbanas melhor cabem ao município, onde moramos, trabalhamos, vivemos. Não faz sentido chamar servidor estadual ou federal para autorizar, proibir, orientar e fiscalizar o exercício de atividades, obras ou empreendimentos urbanos. Compete ao município tratar dos assuntos de interesse local (artigo 30, I, CF).

No Estado do Pará, a Lei/PA nº 6.381/01 trata da política estadual de recursos hídricos. No artigo 63 estabelece que o Estado poderá delegar ao município, mediante convênio, o gerenciamento das águas de interesse local, assim entendidas as que se situem exclusivamente no território municipal (e também dos aquíferos situados em sua área de domínio). Aí inserem-se os igarapés urbanos e suas microbacias, articulados com o ordenamento territorial. Encorpa-se o dever de atuação municipal com as águas urbanas superficiais em sentido estrito, isto é, as que têm nascente e foz no território do município. Não se pode delegar por convênio a competência estadual para conceder outorga do direito de uso da água, prevista nos artigos 11 a 23 da lei paraense, por importar a cobrança ou dispensa de tarifas e preços públicos, o que exige atender o princípio da legalidade. Noutra senda, a prevenção da poluição das águas superficiais urbanas (igarapés) insere-se por inteiro no ato delegatório. 

Mesmo sem delegação normativa mostra-se evidente a necessidade do município atuar no combate à poluição das águas superficiais urbanas, mediante ações preventivas permanentes. O fato de ser a bacia hidrográfica a unidade de gestão das águas (artigo 1º, V, Lei nº 9.433/97), há expressa previsão na norma de que o gerenciamento deve ser descentralizado, e contar com a participação do poder público, usuários e da comunidade (artigo 1º, VI, Lei nº 9.433/97). Não é razoável nem viável tratar da prevenção das águas urbanas na Amazônia a partir da bacia hidrográfica. Nosso ordenamento permite, e exige, a atuação direta do município. Quando a autoridade está longe, o violador das normas faz graça e ri à toa. Isto precisa mudar. 

Nesta altura invoca-se a real possibilidade de aplicação da regra do artigo 58, do Código de Águas (Decreto nº 24.643/34), recepcionado pela Constituição vigente, que estabelece:

"A Administração Pública respectiva, por sua própria forca e autoridade, poderá repor incontinente no seu antigo estado, as águas públicas, bem como o seu leito e margem, ocupados por particulares, ou mesmo pelos Estados ou municípios: a) quando essa ocupação resultar da violação de qualquer lei, regulamento ou ato da Administração; b) quando o exigir o interesse público, mesmo que seja legal, a ocupação, mediante indenização, se esta não tiver sido expressamente excluída por lei".

Essa atuação, de elevado interesse público e social, consta da Carta do XVIII Encontro de Estudos e Debates sobre Águas Doces de Santarém e Baixo Amazonas, realizado pelo Fórum de Pesquisadores das Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa de Santarém (Fopiess) nos últimos dias 22 e 23 de outubro, por meio virtual, com participação de três professores pesquisadores da Universidade do Minho, Portugal (a Carta está acessível no sítio www.fopiess.org.br). Sob suportes jurídicos, técnicos e éticos, registramos que a Constituição considera a floresta amazônica patrimônio nacional (artigo 225, § 4º, CF), e para mantê-la saudável essencial cuidar das águas superficiais. Necessário realçar ser diretriz da cidade sustentável a prevenção da poluição das águas superficiais urbanas, que deve ser implementada a partir do município. Essa compreensão cada vez mais ganha corpo ante a ausência de comitês de bacias ou sub-bacias hidrográficas na Amazônia. Nesse cenário de falta de condições para autoridades federais e estaduais cuidarem das águas superficiais, mais ainda na Amazônia, resta-nos pedir apoio e socorro ao município, que está mais próximo e pode/deve ajudar. Afinal, a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados, municípios e do Distrito Federal, constituindo nosso Estado democrático de Direito.

Considerações finais
Sabido que todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225 CF), e que a ordem econômica precisa atender esse compromisso constitucional, temos de considerar que o planeta Terra é nossa casa, que exige o cuidado de todos, pois o ambiente não tem divisão nem fronteiras, está interconectado globalmente. Como será melhor agir? Fernando Pessoa escreveu resposta visionária: "Da minha aldeia vejo (…) o universo". A sugestão é atuar de modo técnico e ético consistente na nossa aldeia, na nossa casa. A mudança de compreensão sobre o meio ambiente deve começar comigo, transformar meus hábitos por convencimento próprio, e então sobrevirá melhora na qualidade de vida pessoal e familiar. A medida precisa do apoio de todos, consequência do princípio da igualdade, a conferir iguais oportunidades. 

Para mudar o cenário de risco grave e perspectivas sombrias, propõem-se de modo urgente ações concretas do município na Amazônia, objetivando reduzir e evitar a poluição das águas superficiais urbanas e, assim, impedir que virem esgotos. Anotamos que Santarém já iniciou esse caminho de modo precursor em 2017, quando o subsecretário da Semas-PA assinou, ao abrir o XV Encontro de Águas Doces de Santarém e Baixo Amazonas organizado pelo Fopiess, o primeiro Convênio de Delegação de Competência normativa para implantar um projeto piloto no igarapé do Urumari, área urbana de nossa cidade. Oxalá essa conduta ganhe força e apuro técnico, atuando-se administrativamente, com acompanhamento do Ministério Público, para, por termos de compromisso de ajustamento condutas, iniciar um novo tempo de cuidado com as águas superficiais de Santarém, do Pará, da Amazônia e do Brasil. O sol vai alto, então mãos à obra. Os resultados engrandecerão todos, nesta e nas futuras gerações. 

Autores

  • é advogado, professor do Ceuls-Ulbra, mestre em Direitos Fundamentais, pesquisador e presidente do Fopiess — Fórum de Pesquisadores das Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa de Santarém (PA).

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