Direto do Carf

Elementos configuradores da falsidade da declaração

Autor

  • Ludmila Mara Monteiro de Oliveira

    é doutora em Direito Tributário pela UFMG com período de investigação na McGill University conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf e professora de Direito Tributário da pós-graduação da PUC-Minas.

18 de novembro de 2020, 8h00

Não poderia esta coluna de estreia na já tradicional Direto do Carf ser lançada em momento mais oportuno: a honra em integrar o Carf pelos dois anos que neste mês se completam é agora maximizada por, rodeada de juristas de notório brilhantismo, poder oferecer aos leitores da ConJur um panorama sobre os temas palpitantes debatidos no âmbito da 2ª Seção, principalmente.

Spacca
Já há alguns anos, o tratamento conferido pelos julgadores às sanções tributárias muito me intriga[1] e, quiçá, temática das mais áridas e controversas em sede de processo administrativo fiscal federal diga respeito à delimitação do conceito de falsidade, que faz atrair a aplicação da multa isolada em dobro, na alíquota de 150%. É que o § 10 do artigo 89 da Lei nº 8.212/91 determina que, "[n]a hipótese de compensação indevida, quando se comprove falsidade da declaração apresentada pelo sujeito passivo, o contribuinte estará sujeito à multa isolada aplicada (…) em dobro".

Diante de declarações inexatas, nos termos do inciso I do artigo 44 da Lei nº 9.430/96, aplicável a multa de 75%; entretanto, comprovada a falsidade na declaração, será a sanção de 150%.

As situações fáticas ensejadoras da aplicação da multa, ora sob exame, se descortinam com as mais variadas nuances, que vão desde a compensação com créditos jamais existentes[2] e aquelas realizadas ao arrepio da norma inserta no artigo 170-A do CTN, até a que torna imprescindível o debate de teses sobre a incidência de contribuições previdenciárias sobre determinada parcela, cuja natureza se mostra deveras controvertida. Sem a pretensão de pormenorizar o plexo de especificidades de cada caso concreto, inarredável à correta realização do processo de distinguishing, o objetivo é demonstrar ser a jurisprudência desuniforme por partirem os julgadores de premissas díspares quanto à melhor exegese da expressão falsidade contida no § 10 do art. 89 da Lei nº 8.212/91.

Uma incursão nos precedentes do Carf sinaliza a existência de duas correntes: uma, que sustenta que a aplicação da multa de 150% só tem lugar quando comprovado pelas autoridades fazendárias a prática de conduta dolosa, fraudulenta ou ardilosa pelo sujeito passivo; e outra, para qual basta a utilização de créditos não dotados de certeza e liquidez, para que se atraia a aplicação da multa em dobro. Esta última vertente é a encampada pela quase totalidade dos acórdãos prolatados pela Câmara Superior desde o ano de 2018.[3] Tanto nela quanto nas turmas ordinárias são as decisões, em regra, proferidas por maioria de votos – isto é, sem a aplicação da regra de desempate de outrora ou da atualmente vigente.

Aqueles que se filiam à primeira corrente partem do artigo 136 do CTN, que é hialino ao dispor que, "[s]alvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato".

Quando o legislador determina, no parágrafo 10 do artigo 89 da Lei nº 8.212/91, que deverá a autoridade fazendária comprovar a falsidade, a situação se amoldaria na ressalva contida no retromencionado dispositivo, eis que "(…) há condicionante de comprovação da falsidade da declaração apresentada pelo sujeito passivo."[4] Sendo assim, deveria se perquirir — e comprovar — a intencionalidade dolosa daquele que fez a declaração supostamente imbuída de informações falsas. Sustenta-se, assim, que teria a fiscalização (…) o dever de provar a existência do elemento subjetivo dolo, mais propriamente a intenção de falsificar, exceto se o dolo puder ser extraído das circunstâncias e das peculiaridades do caso concreto. Noutro giro verbal, a autoridade administrativa deve comprovar a existência de má-­fé, a qual não se presume no Direito brasileiro.[5]

 Esse "adicional doloso"[6] parece ter sido, inclusive, o motivo pelo qual a 7ª Turma da Delegacia da Receita Federal do Brasil de Julgamento em Recife, houve por bem afastar a multa isolada — e, em razão da exoneração ser superior ao limite de alçada, remetidos os autos ao Carf para reexame da matéria. Conforme consta no relatório do Acórdão de nº 2401-006.130, no qual apreciado o recurso de ofício, asseverou a DRJ que (…) a compensação indevida não basta, por si só, para a aplicação da multa isolada do §10 do artigo 89 da Lei nº 8.212/91.

(…)

17. Tratando­se de compensação indevida, nas hipóteses em que o agente não teve a intenção de fraudar a norma tributária, a penalidade pecuniária a ser aplicada será a mais branda, nos termos fixados no §9º do mencionado artigo 89, consistente na multa de mora graduada na forma do artigo 61 da Lei nº 9.430/96, além dos juros moratórios. 


18. Tratando­se, por outro viés, de tentativa de fraude mediante a consciente e inescusável inserção de informações falsas na GFIP, visando dolosamente a reduzir tributo, rigorosa deverá ser a punição a ser infligida ao infrator, consistente na multa de 150% sobre o valor total do débito indevidamente compensado.[7]

Os que aderem à corrente sobre a qual ora nos debruçamos afirmam, ainda, não poder se confundir a fraude, elemento inarredável do tipo penal, com o erro acerca da matéria jurídica controvertida.[8] Isso porque, "[a] 'informação falsa' que justifica a imputação da penalidade qualificada de 150% está relacionada a ocultação de fato e não questionamento sobre o seu significado jurídico".[9] A despeito de inexistir certeza e liquidez do crédito que se pretendeu compensar, mister que a autoridade fazendária comprove que há na declaração "mentira, fraude, adulteração,"[10] mormente em atenção ao fato que, numa análise do arcabouço normativo, sanção de tamanha severidade somente estaria reservada aos casos em que houvesse condutas dolosas relativas à sonegação, fraude ou conluio.[11]

Diametralmente oposta é a posição que sustenta ser despicienda a comprovação da intenção ardilosa do agente, eis que silente a lei quanto a esse aspecto.[12] Seguindo a literalidade do que determina o parágrafo 10 do artigo 89 da Lei nº 8.212/91, deve a autoridade fazendária comprovar a falsidade da declaração, que com fraude ou quaisquer outras condutas dolosas não se confunde.[13] No vernáculo, o termo empregado pelo dispositivo legal em comento indica "(…) a qualidade ou estado de tudo que é falso ou contrário à verdade ou à realidade. É a supressão ou a alteração da verdade."[14]

Em consonância com o significado do verbete em comento, o mero descompasso entre a realidade e as compensações realizadas pelo interessado não atrairia, automaticamente, a aplicação da sanção em dobro.[15] Declarações que contenham informações lançadas por mero equívoco, por exemplo, não seriam rotuladas falsas. Noutro giro, quando sabia — ou deveria saber — que os créditos que se pretende compensar são carentes de certeza e liquidez, há o falseamento da declaração.[16] Situação em que sói acontecer o reconhecimento da falsidade da declaração é aquela em que ultimada a compensação sobre valores de contribuições objeto de ação judicial ainda não transitada em julgado — "ex vi" do artigo 170-A do CTN.[17]

Há ainda casos em que "(…) mesmo diante da realidade contrária à compensação, pratic[a] [o sujeito passivo] uma conduta de oferecer crédito sabidamente inapropriado para tal fim, de forma consciente e intencional da inveracidade das informações".[18] É dizer, opta o contribuinte por compensar créditos decorrentes de rubricas carentes de certeza e liquidez acerca do seu cariz indenizatório, porquanto a jurisprudência dominante e a expressa determinação legal as incluem na base de cálculo da contribuição previdenciária.[19] Comprovada a falsidade, justificada estaria a aplicação da multa isolada de 150%.

Cabe às conselheiras e aos conselheiros do Carf não só continuar a fomentar os profícuos debates acerca da melhor exegese do parágrafo 10 do artigo 89 da Lei nº 8.212/91, como também atentar para as sutilezas que os casos concretos apresentam, de modo a cumprir com a missão de "preservar a justiça fiscal com rapidez e menor custo (…), empenha[n]do em solucionar, no âmbito administrativo, os litígios entre o contribuinte e o fisco, evitando, ou limitando ao mínimo, os ônus das demandas judiciais".[20]

Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, a uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.


[1] PEREIRA, José Edgard Penna Amorim; OLIVEIRA, Ludmila Mara Monteiro de. Multas Tributárias: Perspectivas do Controle Judicial de sua Abusividade. In: MURICI, Gustavo Lanna; CARDOSO, Oscar Valente; RODRIGUES, Raphael Silva. (Org.). Estudos de Direito Processual e Tributário em homenagem ao Ministro Teori Zavascki. Belo Horizonte: D'Plácido, 2018, p. 563-580.

[2] Acórdão nº 2402-007.619, Rel.ª Cons.ª RENATA TORATTI CASSINI, publicado em 27/11/2019 (à unanimidade).

[3] Cf., a título exemplificativo, alguns dos acórdãos prolatados pela Câmara Superior: Acórdão nº 9202-008.521, Rel. Cons. JOÃO VICTOR ALDINUCCI RIBEIRO (voto vencido), Cons. MÁRIO PEREIRA DE PINHO FILHO (redator designado), publicado em 27/03/2020 (por maioria); Acórdão nº 9202-007.493, Rel. Cons. PEDRO PAULO PEREIRA BARBOSA, publicado em 01/03/2019 (por maioria); Acórdão nº 9202-007.433, Rel. Cons. PEDRO PAULO PEREIRA BARBOSA, publicado em 25/01/2019 (à unanimidade); Acórdão nº 9202-007.359, Rel. Cons. PEDRO PAULO PEREIRA BARBOSA, publicado em 14/01/2019 (por maioria); Acórdão nº 9202-006.885, Rel.ª Cons.ª ELAINE CRISTINA MONTEIRO E SILVA FERREIRA, publicado em 30/07/2018 (decisão por maioria de votos); Acórdão nº 9202-007.130, Rel.ª Cons.ª ELAINE CRISTINA MONTEIRO E SILVA FERREIRA, publicado em 22/10/2018 (por maioria). Pendente de publicação até a divulgação desta coluna o Acórdão nº 9202-009.119 (processo nº 13826.720533/2017-04), julgado em sessão datada de 25 de setembro p.p., no qual, aplicando-se o disposto no art. 19-E, da Lei nº 10.522/02, acrescido pelo art. 28, da Lei nº 13.988/20, por maioria de votos, foi negado provimento ao recurso especial da Fazenda Nacional para reconhecer a necessidade de demonstração da conduta dolosa perpetrada pelo contribuinte para a aplicação da multa em 150%. Designado para redigir o voto vencedor o Cons. JOÃO VICTOR RIBEIRO ALDINUCCI. A gravação da sessão de julgamento está disponível em: <https://carf.economia.gov.br/consultas/sessoes-virtuais>.

[4] Acórdão nº 2401-007.320, Rel. Cons. RAYD SANTANA FERREIRA, publicado em 20/02/2020  (por maioria).

[5] Cf. as razões lançadas no voto vencido da lavra do Cons. Rel. JOÃO VICTOR RIBEIRO ALDINUCCI no Acórdão nº 2402-006.651, publicado em 07/11/2018.

[6] Termo empregado pelo Cons. Rel. MARTIN DA SILVA GESTO no Acórdão nº 2202-005.216, publicado em 09/08/2019.

[7] Vide relatório do Acórdão nº 2401-006.130, Rel. Cons. MATHEUS SOARES LEITE, publicado em 02/05/2019.

[8] Acórdão nº 2202-004.329, Rel.ª Cons.ª JÚNIA ROBERTA GOUVEIA SAMPAIO, publicado em 30/04/2018.

[9] Idem.

[10] Acórdão nº 2201-006.063, Rel. Cons. DANIEL MELO MENDES BEZERRA, publicado em 18/03/2020. Malgrado teça o Relator considerações acerca de seu posicionamento sobre a matéria, registra curvar-se ao entendimento majoritário de seu colegiado, que rechaça a necessidade de perquirir a intenção dolosa do agente.

[11] A título exemplificativo, o desiderato de fraudar, sonegar e agir em conluio seria essencial para a imposição da multa duplicada, nos termos do § 1º do art. 44 da Lei nº 9.430/96 (com redação dada pela nº 303/06). Este raciocínio aparenta ser o desenvolvido no voto vencedor do Acórdão nº 9202-009.119, julgado em sessão datada de 25 de setembro p.p., pelo Cons. JOÃO VICTOR RIBEIRO ALDINUCCI, cuja publicação encontrava-se pendente até o fechamento desta coluna. A gravação da sessão de julgamento está disponível em: <https://carf.economia.gov.br/consultas/sessoes-virtuais>.

[12] “Diversamente da multa qualificada prevista no § 1º do art. 44 da Lei nº 9.430, de 1996, a qual exige a cabal demonstração, pela administração tributária, de sonegação, de fraude ou de conluio praticado pelo sujeito passivo, na forma em que estas figuras estão disciplinadas nos arts. 71, 72 e 73, respectivamente, da Lei nº 4.502, de 1964, a multa isolada de 150% (cento e cinquenta por cento) do art. 89, § 10, da Lei nº 8.212, de 1991, calculada sobre o valor indevidamente compensado, exige apenas a comprovação da falsidade da declaração apresentada pelo contribuinte. Logo, não exige a demonstração de dolo para se efetivar a subsunção dos fatos à norma jurídica em comento.” (Acórdão nº 2202­005.097, Rel. Cons. LEONAM ROCHA DE MEDEIROS, publicado em 22/04/2019).

[13] Nesse sentido, cf. Acórdão nº 2201­006.166, Rel. Cons. RODRIGO MONTEIRO LOUREIRO AMORIM, publicado em 31/03/2020.

[14] Cf. Falsidade em SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 2008, p. 598.

[15] Acórdão nº 2402­005.007, Rel. Cons. RONNIE SOARES ANDERSON, publicado em 10/03/2016.

[16] Assim parece argumentar o Con. Rel. PEDRO PAULO PEREIRA BARBOSA em voto vencido do Acórdão nº 9202-009.119, julgado em sessão datada de 25 de setembro p.p., pelo Cons. JOÃO VICTOR RIBEIRO ALDINUCCI, cuja publicação encontrava-se pendente até o fechamento desta coluna. De toda sorte, a gravação da sessão de julgamento está disponível em: <https://carf.economia.gov.br/consultas/sessoes-virtuais>.

[17] Acórdão nº 9202-008.265, Rel.ª Cons.ª MARIA HELENA COTTA CARDOZO, publicado em 23/10/2019 (decido por unanimidade, com quatro conselheiros votando pelas conclusões); Acórdão nº 2402­005.725, Rel. Cons. MARCELO DE SOUSA SATELES, publicado em 22/11/2019 (decisão por maioria de votos); Acórdão nº 2301-006.317, Rel. Cons. MARCELO DE FREITAS DE SOUZA COSTA, publicado em 09/08/2019 (à unanimidade).

[18] Acórdão nº 2401-006.921, Rel. Cons. CLEBERSON ALEX FRIESS, publicado em 16/09/2019.

[19] Conforme relata, “[c]om base nas planilhas elaboradas pela empresa recorrente, acrescento que os valores mais expressivos supostamente compensados em GFIP nas competências de 01/2013 a 13/2014 são referentes a parcelas com nítido caráter de contraprestação pelo trabalho, tais como pagamentos a título de férias gozadas, décimo terceiro salário, horas extras, adicionais noturno, periculosidade e insalubridade e salário-maternidade.” Idem.

[20] Ata da sessão de instalação da Câmara Superior de Recursos Fiscais, publicada no Diário Oficial em Novembro de 1979. Disponível em: <http://idg.carf.fazenda.gov.br/publicacoes/livro-85-anos-carf.pdf>.

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    é doutora em Direito Tributário pela UFMG, com período de investigação na McGill University. Foi residente pós-doutoral na UFMG. Conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf; professora de Direito Tributário da graduação da UFMG e da pós-graduação da PUC-Minas.

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