Opinião

Impactos da decisão proferida no RE 647.885 sobre o sistema OAB

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17 de novembro de 2020, 9h13

Muitos advogados ainda não se deram conta do impacto que a recente decisão do STF, proferida no RE 647.885, causará no equilíbrio das contas do sistema OAB. Essa decisão, já amplamente divulgada, estabeleceu que os conselhos profissionais, entre os quais a OAB, estão impedidos de suspender seus inscritos em razão da inadimplência de anuidades. Antes de avançar no assunto, esclareço que o artigo em apreço não analisará o mérito da decisão, limitando-se aos seus impactos, como já anunciado no título.

O Sistema OAB, formado pelo Conselho Federal, pelos conselhos seccionais e pelas subseções, não recebe nenhum tipo de recurso público. Suas receitas são formadas pelo preço de alguns serviços (serviço de reprografia, emissão de certidões, cursos, inscrições no exame da ordem etc.), multas aplicadas em processos administrativos e, principalmente, as contribuições anuais pagas pelos advogados.

Essa contribuição anual é de natureza obrigatória, conforme disposto no artigo 46 do Estatuto da OAB Lei nº 8.906/94). Essa mesma lei prevê duas consequências para o caso de inadimplemento: 1) ajuizamento de execução contra o advogado inadimplente (artigo 46, parágrafo único); e 2) instauração de processo disciplinar contra o advogado inadimplente (artigo 34, XIII), o qual pode resultar na aplicação de pena de suspensão até o momento em que o advogado quitar integralmente a dívida (artigo 37, I, §2º).

Assim era até o julgamento do RE 647.885 pelo Supremo Tribunal Federal, que tramitou sob o rito da repercussão geral, fixando a seguinte tese: "É inconstitucional a suspensão realizada por conselho de fiscalização profissional do exercício laboral de seus inscritos por inadimplência de anuidades, pois a medida consiste em sanção política em matéria tributária".

Ato contínuo, o Conselho Federal da OAB, nos autos do Recurso nº 17.0000.2019.011670-3/SCA-PTU, anunciou que "face à decisão do STF, tem-se que todos os processos disciplinares que envolvam inadimplência de anuidades perderam seu objeto, devendo ser declarada a extinção do feito na instância em que tramitarem".

Com efeito, esse novo cenário impede a OAB de instaurar processo disciplinar contra o advogado inadimplente. Resta, agora, apenas a cobrança judicial do débito, cabendo observar, ainda, o disposto no artigo 8º da Lei 12.514/11, segundo o qual a ação só pode ser ajuizada quando o valor do débito atingir o montante mínimo correspondente a quatro anuidades (confira-se, a respeito disso, a decisão proferida pelo STJ nos autos do REsp 1.814.337).

Certa ou errada, a decisão do Supremo tem caráter definitivo e o que se faz relevante agora é analisar o impacto prático que causará ao funcionamento do sistema OAB, o qual, repita-se, é mantido fundamentalmente pela contribuição compulsória pagas pelos advogados.

Há, sem dúvidas, um cenário preocupante no horizonte. Os efeitos concretos serão sentidos no próximo ano, em 2021, mas é possível, desde logo, prever o aumento considerável do inadimplemento das anuidades da OAB, conduzida por dois fatores.

Primeiro, o fato de que alguns advogados resistem à obrigatoriedade da contribuição anual. Defendem que a contribuição, quando muito, deveria ser facultativa, a exemplo do que ocorre atualmente com a contribuição sindical. Prova dessa resistência é o PL 1.885/19, em trâmite na Câmara dos Deputados, que pretende alterar a Lei nº 8.906/94, estabelecendo a não obrigatoriedade de pagamento de anuidade à OAB. A possibilidade de continuar advogando mesmo sem estar quite com suas anuidades na OAB tende a fazer com que os advogados contrários à obrigatoriedade da contribuição migrem para o inadimplemento.

Segundo, o fato de que a advocacia foi duramente afetada pela crise econômica instalada no país e pelas reformas legislativas já consumadas e em andamento. A reforma trabalhista, por exemplo, reduziu em quase 50% o estoque de ações da Justiça do Trabalho e também reduziu consideravelmente o seu conteúdo econômico. A reforma tributária tende a reduzir em igual ou maior proporção o contencioso tributário. Acrescente-se a isso o fato de existir atualmente no Brasil mais de um milhão de advogados disputando esse mercado em retração. Enfim, um cenário extremamente convidativo ao inadimplemento.

Essa realidade, embora preocupante, pode — assim se espera — significar um ponto de mutação na forma como a OAB conduz a sua missão. Não é excesso de otimismo acreditar que a decisão do STF ajude a redirecionar os rumos da OAB e a torná-la uma entidade mais retributiva àqueles que a sustentam. Isso porque, a partir da decisão do STF, a OAB, desprovida do poder de suspender o advogado inadimplente, terá de incentivar o pagamento da anuidade por meios não coercitivos. A OAB precisa, definitivamente, mostrar o que ela tem a oferecer. Sim, arregaçar um pouco mais as mangas. Isso não faz mal a ninguém.

E não faltam soluções para isso, algumas já em andamento, como, por exemplo, o Programa Anuidade Zero (um clube de benefícios), implantado há muitos anos em algumas seccionais. Nesse programa, o advogado pontua através das compras realizadas em estabelecimentos conveniados, pontos que se revertem em desconto na anuidade, podendo, inclusive, zerá-la. A OAB, com seus mais de um milhão de advogados, pode negociar condições vantajosas perante os mais variados fornecedores de produtos e serviços. Nesse sentido, a OAB pode criar programas de compra coletiva, sobretudo para a aquisição de insumos como livros, computadores, materiais de escritório etc. Alguns serviços essenciais, prestados através de convênios, como plano de saúde, de previdência, de acompanhamento de publicações etc., já estão em andamento, mas precisam ser renegociados junto aos fornecedores, pois não apresentam vantagens expressivas. As caixas de assistência, por sua vez, ainda muito ineficientes em algumas seccionais, têm de rever seu portfólio de serviços e política assistencial. Os serviços de coworking têm de ser implantados ou ampliados pelas seccionais ao menor custo possível com a finalidade de amparar a jovem advocacia que ainda não tem condições de bancar escritório próprio. No mais, talvez seja uma boa hora para a OAB reavaliar determinados custos, como de passagens aéreas pegas pelas seccionais e, sobretudo, pelo Conselho Federal, dando prioridade para a realização de sessões virtuais, como vem sendo feito em vários órgãos da administração pública. Transparência na gestão dos recursos e rígida prestação de contas continua sendo essencial e, para tanto, seria de bom tom que a ao OAB não se limita-se à publicar balanços, disponibilizando a todos os inscritos acesso ao detalhamento de suas despesas e receitas.

Isso tudo sem descuidar de seu nobre e relevante papel institucional, em defesa da Constituição, da ordem jurídica, da democracia, dos direitos humanos e da justiça social. Em tempos de polarização política, a OAB, como nunca, deve conduzir os destinos da advocacia com firmeza e sabedoria, posicionando-se com a cautela necessária para não se contaminar pelas extremidades cegas que estão conduzindo, dentro e fora do poder, o destino do país. Mais do que sua missão institucional, essa equidistância da OAB em relação ao maniqueísmo político é condição necessária para a preservação de sua legitimidade e, consequentemente, para a preservação da adimplência de seus inscritos.     

Em verdade, a sustentabilidade econômica da OAB, sobretudo a partir do julgamento do RE 647.885, dependerá fundamentalmente do fortalecimento de suas ações em favor da advocacia e da sociedade. Assim fica mais justo para quem está pagando.

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