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Sistema de Justiça e machismo estrutural: uma reflexão necessária

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16 de novembro de 2020, 8h01

Por motivos distintos, três situações polêmicas referentes ao crime de estupro chamaram a minha atenção. A primeira, o "caso Mariana Ferrer". A segunda, com menos repercussão, mas também discutida nos meios de comunicação social, a decisão de Câmara do TJ-SP de que só há estupro de vulnerável quando ocorrer "penetração", exigindo-a para a configuração do "ato libidinoso" no tipo de estupro, diverso do "ato libidinoso" da importunação sexual. A terceira (segue com seu segredo de Justiça preservado) discute se laceração vaginal e hemorragia (com cirurgia de reconstrução da parede vaginal, do períneo e hímen da vítima) seria ou não prova suficiente de violência e não consentimento da vítima para o ato sexual.

Poucos discordam, em razão dos números [1], que vivemos em uma sociedade estruturalmente machista [2]. As vítimas (de todos os gêneros e idades) não se sentem confortáveis em denunciar crimes cometidos contra sua liberdade sexual ou em razão de gênero. Sentem-se culpadas, não acolhidas, desrespeitadas e preferem, na maioria das vezes, sofrer caladas.

O valor que a jurisprudência atribui à palavra da vítima nos crimes praticados contra a liberdade sexual deve-se, principalmente, ao fato de raramente possuírem testemunhas e, muitas vezes, sequer deixarem vestígios. Poucos são os casos em que se provou que a vítima mentiu, embora tais situações tendam a ganhar repercussão social e reforçar a cultura machista. A própria formalidade e a ritualização do processo penal termina por impor a revitimização e são, em si mesmas, um desestimulo à notificação do crime.

O Direito vem tentando amenizar essas posturas formais que trazem novo sofrimento às vítimas, tanto adotando protocolos multidisciplinares em seu apoio (independentemente da condenação do suposto algoz), quanto através de novas legislações voltadas para a descoberta da verdade com menor dano ao fazer a vítima contar a violência sofrida [3]. Exige-se que à vítima seja garantida a "preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem…" [4].

Por outro lado, embora a palavra da vítima tenha relevância, não é prova absoluta ou suficiente para condenação do acusado, não podendo ser contrária às demais provas dos autos. Isso não se apresenta como machismo, mas como garantia à ampla defesa e ao contraditório, independentemente dos gêneros do agressor e da vítima.

Mas é possível olvidar que a maioria das vítimas, nos crimes de estupro, é mulher, com menos de 13 anos de idade [5]? Nosso olhar para a formação de juízos de valor sobre as provas, construções teóricas e jurisprudenciais pode estar contaminado pelo machismo sem que sequer nos demos conta?

No contexto das hipóteses que chamaram a minha atenção, o primeiro aspecto (que se afina com o valor dado à palavra da vítima) a se considerar é que o estupro exige intenção. "Não existe estupro culposo". O crime culposo exige previsão legal e não houve.

Diante disso, perceber o desejo do agressor no momento do ato é importante para sua condenação (ou não). Sua palavra e sua versão, nesse momento, são importantes. Todavia, seus atos, as circunstâncias externas ao ato e outros elementos presentes no processo é que darão às partes a ideia sobre a intenção do acusado.

Há um grau de subjetividade na valoração do que está posto como prova. De igual modo, na construção legislativa, teórica e jurisprudencial sobre o tema. E isso nos obriga a pensar se o machismo estrutural colaborou para essa construção, desmerecendo a liberdade sexual da vítima [6].

Uma questão que, em tese, seria mais objetiva (vítima menor de 14 anos) [7], pois já se sabe que a vítima não possui maturidade biológica para dar seu consentimento, ainda gera discussão. Ao se exigir dolo direto nos crimes contra a liberdade sexual, é preciso saber se o agente queria cometer o crime, tendo ciência, no caso do estupro de vulneráveis, da incapacidade da vítima para consentir.

Não é incomum a absolvição, mesmo com vítimas menores de 14 anos [8], admitindo-se que o réu não tinha como saber a idade da vítima que “aparenta” maturidade. Como conciliar a ciência de que a imaturidade que o tipo penal protegeu é a biológica com a exclusão do dolo eventual?

Não há a obrigação do homem ou da mulher de ter a certeza de que seu parceiro está dando consentimento legítimo e válido para a relação sexual? Não é essa a pergunta que, como sociedade, precisamos nos fazer? Quem queremos proteger?

Não interessa à sociedade punir quem assume o risco de manter relações sexuais com pessoas com as quais não tem certeza de estarem aptas a consenti-las, ou se importa tão pouco com a vítima que não se interessa pela qualidade de seu consentimento? Que bem jurídico estamos preservando?

O artigo 227 da CF, ao atribuir à sociedade o dever de assegurar a crianças e adolescentes dignidade e integridade (entre outros direitos), não traz a obrigação de não se assumir o risco de violar sua liberdade sexual?

Ao exigir dolo direto, estamos jogando a responsabilidade pelo ato sexual para a vítima. E o pior: para vítimas vulneráveis.

Esse raciocínio não seria decorrente mais do machismo estrutural do que da defesa do princípio in dubio pro reo? Vale a reflexão!

Se no mundo jurídico, com um ordenamento em que nenhum profissional conhece todas as normas, não é admitido alegar, em sua defesa, o desconhecimento da lei, por que admitimos o desconhecimento da vulnerabilidade da pessoa com a qual se mantém relação sexual como forma de se eximir da responsabilidade?

A pergunta vale, inclusive, para que se discuta, especificamente no estupro de vulnerável, a possibilidade de punição por crime culposo (com a devida alteração legal, evidentemente), quando negligentemente, por exemplo, a pessoa deixar de perquirir a idade da vítima, presumindo-a maior de 14 anos.

Os argumentos jurídicos que evitam a punibilidade dos autores de crimes contra a liberdade sexual são muitos. A reflexão que proponho é sobre o motivo que nos levou a essas escolhas.

Na cruel realidade de relacionamentos imaturos comuns em nossa sociedade, muitas vezes, a relação entre vítima menor de 14 anos e autor ocorre com consentimento dos pais. Quando a "Justiça" se depara com a situação, a despeito da obrigação das unidades de saúde notificarem qualquer sinal de violência sexual contra criança e adolescente, a vítima já tem até filhos com o suposto agressor.

Os julgadores se indagam, então, o que fazer: legitimar a situação de violência que a lei pretende extinguir e cumprir o papel transformador do Direito? Ou reconhecer a realidade cultural machista e perpetuar a noção de que o casamento do agressor com a vítima é meio reparador da violência? A resposta pode até parecer óbvia, mas não é, apesar do teor da Súmula 593 do STJ [9]. São os casos de "exceção Romeu e Julieta" [10].

Novo argumento que serviu para amenizar a pena do réu acusado de crime contra a liberdade sexual de pessoa menor de 14 anos foi o de que para distinguir a importunação sexual do estupro, há de se exigir, no último, penetração [11]. Se o réu põe a vítima (criança) no colo, vestida, masturba-se com movimentos de sobe e desce e apalpa seus seios, mas não a penetra, não há estupro. Foi o que entendeu, recentemente, a 12ª Câmara de Direito Criminal do TJ-SP, apesar da jurisprudência majoritária em sentido oposto.

Com a descrição da figura típica "praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso", o artigo 215-A do CP aproxima-se do seu artigo 217- A. No entanto, como bem vem compreendendo a doutrina e jurisprudência majoritárias, o artigo 217-A trata de sujeito passivo próprio, não cabendo a desclassificação.

No tocante à laceração, as questões postas foram: a violência sofrida pode ter sido decorrente de relação consentida? Apesar de a vítima afirmar que não consentiu para o ato e da violência constatada, a negativa do réu é suficiente para gerar dúvida razoável?

Se o leitor tiver dúvida na resposta, o acusado deve ser absolvido. Essa é a regra em processo penal. De fato, é preferível cem culpados soltos do que um inocente preso. In dubio pro reo. Não obstante, indago: será que o machismo estrutural, introjetado em nosso inconsciente, não tem parte na percepção da dúvida?

Não é uma questão de técnica, mas de ética, a merecer profunda análise, autocrítica e discussão para que se possa, de fato, proteger a liberdade sexual das vítimas, sem violar a presunção de inocência dos réus.

 


[2] Eduardo Soulveigh, sobre machismo estrutural, explica: Todos nós somos socializados de uma mesma forma, certo? Adquirimos, por meio da cultura, da educação, do convívio (…) uma série de informações consolidadas socialmente. Essas informações nos dizem como classificar e hierarquizar coisas, ideias, pessoas (…). Isso nos faz enxergar quais são os comportamentos do que é ‘ser um homem’ e do que é ‘ser uma mulher’”. In https://salthe.com.br/machismo-estrutural-x-patriarcado/ Se o mundo em que nascemos e vivemos parte da identificação dos papéis sociais a partir do sexo e evidencia a compreensão de que o sexo masculino é superior (forte – positivo) ao feminino (emotivo – negativo), sem percebermos, nossa autoimagem é introjetada com essa compreensão e nossos julgamentos partem dela.

[3] Artigo 201, §§2º, 4º, 5º e 6º, do CPP, Lei nº 13.431/2017, entre outros.

[4] Artigo 201, §6º, do CPP.

[6] Em regra, homem.

[7] Artigo 217 – A do CP.

[9] Súmula nº 593: "O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente". (Súmula 593, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 25/10/2017, DJe 06/11/2017)

[10] TJ-GO. Apelação Criminal, APR 441713720148090095. DJ 2296, 28.06.2017.

[11] ANGELO, Tiago. Estupro de vulnerável só ocorre quando há conjunção carnal, diz TJ-SP. Consultor Jurídico – conjur.com.br. 1 de novembro de 2020, 9h46.

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