Opinião

Senso comum teórico dos juristas e razão pública: para que serve a laicidade?

Autores

  • Phablo Freire

    é doutorando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) bolsista Prosuc/Capes mestre em Psicologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) pós-graduado em Gestão Pública pela Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina (Facape) e em Direito Constitucional Aplicado pela Damásio Educacional e autor dos livros "Laicidade Ficta Democracia Urgente" e "Ética Laicidade e Alteridade: Desafios Contemporâneos para os Direitos Humanos".

  • João Paulo Allain Teixeira

    é advogado professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco membro do Instituto Publius e pesquisador do Grupo Recife Estudos Constitucionais (REC).

16 de novembro de 2020, 6h34

No último dia 27, uma decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo chamou a atenção da comunidade jurídica e da sociedade civil brasileiras. Parcela da sociedade, Judiciário e academia entenderam ser o conteúdo decisório uma afronta a diversos fragmentos normativos do sistema jurídico brasileiro, às liberdades de expressão, de associação e, com mais ênfase, às liberdades de consciência e crença, sendo a violação a estas últimas ataques ao sentido normativo da laicidade. A decisão em questão determinou que a ONG Católicas Pelo Direito de Decidir (que defendem a liberdade de escolha pelo aborto legal e promovem o debate nacional sobre o tema) não poderiam ter em sua designação o termo "católicas". O conteúdo decisório reacendeu uma série de debates no país sobre direitos individuais, razão pública e laicidade. Impelindo-nos a discutir a necessária relação existente entre estes três constructos jurídicos, mirando o amadurecimento do nosso sistema democrático.

Em linhas gerais, a laicidade pode ser compreendida como uma norma jurídica, um comando normativo garantidor dirigido ao Estado com repercussão no exercício dos direitos de toda a sociedade, a saber, na experiência de direitos dos indivíduos religiosos e não religiosos.

Assim, o termo "laicidade" tem seu uso jurídico historicamente relacionado ao desenvolvimento das sociedades modernas, implicando a separação (secularização) entre o poder político estatal e o poder religioso [1]. Tal separação diz respeito à autonomia para legitimação do Estado em bases racionais e públicas, autônomas à conteúdos religiosos.

Consideradas as diferenças que existem entre indivíduos e grupos, uma sociedade é sempre um campo de contínuas tensões pela distribuição e exercido do poder. Uma sociedade cujo imaginário social, ou seja, seu campo de referências (e sistema simbólico) é configurado a partir da hegemonia de uma religião, tende a priorizar este credo em desfavorecimento (violento, e por vezes) de grupos que estejam socialmente posicionados fora desse repertório. São elaborados, assim, marcadores sociais que estabelecem relações de estima e estigma social, diferenciando os grupos a partir do elemento religioso.

O elemento religioso (que forjou o imaginário social) é posicionado nessas sociedades como uma totalidade a partir da qual as representações interações e identificações [2] são viabilizadas, isto é, o modo como os indivíduos vão compreender o mundo, agir-reagir com os outros sujeitos e como iram identificar e ser identificados, desdobrará desse repertório, desse imaginário. A interação pode ainda ser mais assimétrica quando alguns grupos ou sujeitos são posicionados pela narrativa religiosa como "inimigos".

Por isso, uma sociedade com essas características tende a estigmatizar tudo que seja diferente da religião, estranhando-o e posicionando-o fora do lugar de legitimidade e reconhecimento. Isso deveria ser corrigido pelos processos de secularização, que seriam suficientes para produzir condições dialógicas de igualdade para os sujeitos de outras religiões ou não religiosos nas interações sociais, isso porque os parâmetros de interação e reconhecimento social não seriam mais aqueles internos à uma religião (todas as noções de certo/errado, bom/ruim, bem/mal de uma determinada narrativa religiosa) mas outros, de caráter público, configurados por todos os atores sociais a partir de processos dialógicos de interação.

A sociedade democrática secular não seria aquela que opera a estigmatização do religioso [3], pelo contrário, repararia as estigmatizações historicamente produzidas e naturalizadas por discursos religiosos contra sujeitos e grupos de outras religiões ou não religiosos, possibilitando a elaboração de condições equivalentes/igualitárias de interação social.

Evidentemente, uma sociedade secular só se faz necessária (e legítima) naqueles contextos históricos em que a religião esteve em lugar de hegemonia e controle da distribuição e exercício do poder. Em que a assimetria produzida a partir do elemento religioso encontra(va)-se impregnada no imaginário social e, em razão disso, naturalizada nas práticas de representação, interação e identificação [4]. A secularização de uma sociedade diz respeito à produção da simetria entre todos os sujeitos religiosos e entre as religiões e os não religiosos. Nesse sentido, a secularização configura-se como um processo indispensável àquelas sociedades outrora teocráticas ou cuja religião veio a ocupar espaços de poder político.

Ao qualificar a atuação da ONG em defesa do direito ao acesso ao aborto legal (as hipóteses de aborto amparadas juridicamente) como ilícita e ilegítima, abandona-se o ordenamento jurídico em favor de uma moralidade estritamente privada. É indiscutível — pelo teor mesmo da ação — que a divergência existe não apenas socialmente, mas propriamente dentro do grupo católico (que entre os cristãos é apenas uma das muitas divisões possíveis). Por isso, os interesses em conflitos podem ser posicionados, ambos, no campo religioso dogmático, vez que discute o direito de valer-se do título de "católicas" para exercício de direitos fundamentais (à expressão, à organização, à manifestação política, à crença, à pluralidade). No entanto, no plano jurídico, um destes interesses se dirige ao cerceamento de direitos legítimos, em um movimento indubitável de abuso.

A decisão subverte a lógica jurídica esperada exatamente ao manifestar a sobreposição de uma doutrina abrangente desarrazoável [5] em relação ao ordenamento que assegura o exercício dos direitos da ONG.

Tem-se ai uma indisfarçável interferência abusiva do Estado no direito fundamental ao exercício da crença e esta interferência somente se opera em razão da persistência de uma outra, mais antiga e já naturalizada, a presença silenciosa do religioso no imaginário social, movendo o senso comum, ou, como diria Luis Alberto Warat, o senso comum teórico dos juristas.

Quando da exposição dos motivos decisórios, são manejados termos como "moral", "bons costumes", "bem", "interesses públicos" e "sociedade", intenta-se a construção de um sentido e alcance orientado implicitamente pela priorizar a moralidade de um grupo especifico dentro do catolicismo (em contraposição ao outro grupo de católicas e ao ordenamento jurídico). Não se opera uma produção dialética recíproca de sentidos, mas, antes, tem-se a veiculação de uma doutrina abrangente desarrazoável (uma perspectiva privada que se pretende geral) pautando ao arrepio da lei a produção interpretativa do sentido e alcance para a norma.

Tal movimento se torna possível quando o agente público que deveria viabilizar a instrumentalização da razão pública deixa de fazê-lo, aderindo no momento da elaboração dos fundamentos jurídicos a um dos posicionamentos privados. Quando em lugar de viabilizar a razão pública, acampa uma das doutrinas abrangentes. Deixa de ser condutor do debate público para ecoar uma das vozes privadas que, desarrazoavelmente, sustentam uma das posições em disputa.

Tem-se um controle (cerceamento) das liberdades individuais pelos interesses de um grupo, sob a escusa de "exercícios ilegítimos de direitos"; observa-se o uso do aparato estatal para tanto — que, em lugar de proteger as liberdades fundamentais e equilibrar as assimetrias, legitima violências explicitamente contrárias ao ordenamento jurídico; flagra-se o controle estatal do direito de identificar-se religiosamente com um dado credo.

Nesses contextos, enxergamos o preço de uma laicidade reticente e inefetiva: uma sociedade não secular, em que os interesses religiosos contaminam os espaços esperados públicos e a emergência da razão pública, comprometendo o exercício de liberdades fundamentais e individuais, propiciando a manutenção histórica de assimetrias desde o repertório simbólico até as práticas sociais concretas e, entre elas, as decisões jurídicas. 

Talvez aqui as católicas tenham entendido mais sobre república e laicidade que o representante estatal, ao separarem sua persona religiosa (privada) da pública, defendendo o direito de "decidir", uma das máximas privadas dos direitos fundamentais e individuais, atrelado propriamente à consciência de cada um (observadas por óbvio as normas jurídicas postas). Já o agente público que decide ao valer-se de fundamentos e argumentos explicita e implicitamente religiosos, constrange, em primeiro plano, o ato de identificação religiosa das mulheres que integram a ONG, cerceia a manifestação privada do credo. Constrange também o ordenamento jurídico quando avança tal qual tutor da religião e veda a possibilidade de identificar-se como católicas e estigmatiza o exercício regular de direito, ecoando em seus motivos uma voz nitidamente particular.

As linhas que separam a razão pública do arbítrio privado, os motivos e interesses públicos dos eminentemente particulares são continuamente borradas na experiência jurídica brasileira no tocante à seara laica. O uso meramente retórico dos instrumentos jurídico normativos implica uma prática decisória desprovida de critérios e de controle. Expondo um sistema normativo marcado por diversas insuficiências internas (insuficiência dogmática que elabore a sistematicidade normativa da laicidade) e externas ao Direito (saber social necessário ao controle externo).

 


[1] Ari Pedro Oro. A laicidade na América latina: uma apreciação antropológica, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p.81.

[2] Os termos "representações", "interações" e "identificações" integram a categoria teórica "ordem do discurso" na teoria crítica do discurso elaborada em "Discurso e Mudança Social" de Norman Fairclough.

[3] Prática que alguns autores vão chamar de "laicismo" ou Estado laicista que não se confunde com Estado laico.

[4] Vide Norman Fairclough, Discurso e mudança social. Brasília: Editora UnB, 2001.

[5] De acordo com a teoria de Justiça de John Rawls uma doutrina abrangente desarrazoável seria um conjunto de valores que se pretende como regra para toda a sociedade desconsiderando as diferenças e as outras possíveis doutrinas existentes numa democracia.

Autores

  • é doutorando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), bolsista Prosuc/Capes, mestre em Psicologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), pós-graduado em Gestão Pública pela Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina (Facape) e em Direito Constitucional Aplicado pela Damásio Educacional e autor dos livros "Laicidade Ficta, Democracia Urgente" e "Ética, Laicidade e Alteridade: Desafios Contemporâneos para os Direitos Humanos".

  • é líder do grupo de pesquisa Recife Estudos Constitucionais (REC), professor-adjunto da Universidade Federal de Pernambuco, professor do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professor do curso de graduação em Direito e do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, bolsista de produtividade em pesquisa (PQ-CNPq), doutor em Direito pela UFPE, mestre em Direito pela UFPE e master em Teorias Críticas do Direito pela Universidad Internacional de Andalucía, Espanha.

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