Opinião

Os limites para a aplicabilidade do acordo de não persecução penal

Autor

16 de novembro de 2020, 17h43

Desde o advento da Lei nº 13.964/2019, o acordo de não persecução penal (ANPP) tem suscitado controvérsias no mundo jurídico. Recentemente, dois posicionamentos do Superior Tribunal de Justiça deram novos contornos ao debate. A 5ª Turma do STJ entendeu que, embora o ANPP possa retroagir, ele não abrange os processos que já tenham denúncia recebida [1]. A 6a Turma, por sua vez, entendeu que a retroatividade do instituto não deve ser obstaculizada, admitindo-o até o trânsito em julgado (atenção, aqui não há dúvidas sobre o que significa trânsito em julgado) [2]. Tema, pois, para uniformização da jurisprudência da corte superior e que, ademais, se encontra também ao aguardo de decisão do Pleno da Suprema Corte, sob relatoria do ministro Gilmar Mendes (HC 185.913/DF).

Pois bem. Em linhas gerais, o debate hoje posto envolve as seguintes questões: o ANPP é admissível para fatos anteriores à entrada em vigor da novel legislação? Uma vez recebida a denúncia, é possível iniciar tratativas para o acordo? O ANPP é cabível para processos em grau recursal? Em suma: quais os limites à aplicabilidade do ANPP? Todas são questões pertinentes e atendem ao grau de imprevisibilidade quando se coloca uma lei em vigor. Não se espera, afinal, que o legislador possa se antecipar a todas as perguntas. As perguntas emergem da concretude. E, já desde Carlos Maximiliano, sabemos que a "clareza da lei" não cessa a interpretação. Fosse o contrário e não precisaríamos de técnicas interpretativas, como a interpretação conforme a Constituição e a nulidade parcial sem redução de texto. O problema é, assim, hermenêutico: o que fazer para conformar as lacunas da novel legislação?

Conforme já vimos, parcela dos juristas tem defendido que o ANPP — ainda que retroaja a fatos anteriores, por sua natureza jurídica mista — não pode ser oferecido após o recebimento da denúncia. Para isso, invoca-se, basicamente, o apego à mens legis e à literalidade do nome do instituto. "Mundo, mundo, vasto mundo; se eu me chamasse Raimundo; seria uma rima, não seria uma solução". E a rosa perderia o seu perfume acaso rebatizada (para homenagear Romeu e Julieta)? Ora, o nome das coisas não as define por essência. O argumento, ademais, flerta com um retorno à doutrina exegeta do Direito, em que o trabalho de exegese das normas assumia contornos objetificantes no esforço de lhe encaixotar os sentidos. Quanto à mens legis… Bem: teria a lei, afinal, um "espírito", ou uma "vontade"? Ela deseja algo? Há um método para acessá-la? Aliás, o que vale mais, o "espírito da lei" ou o "espírito do legislador"? As perguntas são, evidentemente, retóricas [3]. Há, ainda, quem sustente o critério econômico, que não perde o seu viés consequencialista: a vigorar tal entendimento, o ANPP ficaria restrito a processos lentos, custosos e onerosos à máquina pública, perdendo a sua pertinência em processos rápidos e de baixa complexidade. Não parece ser por aí. Por fim, quedaria sempre a pergunta: vamos tabelar os custos dos processos? Passaremos a efetivar direitos por conveniência econômica?

Para além disso, a solução tampouco parece satisfazer ao conjunto de questões: ficar-se-á à mercê de overcharging na denúncia? Como se procederia quando o réu é absolvido de imputações na sentença e passa, então, a fazer jus ao benefício? Idêntico problema se colocaria quando, a partir da instrução processual, viesse a se apurar, por exemplo, que as circunstâncias delitivas não eram tão gravosas quanto se delineavam ao tempo da inicial acusatória.

Mas não para por aí. Por que o investigado — sem saber se será ou não denunciado — deveria se colocar à disposição da acusação para as tratativas de ANPP? Vamos privar o réu da legítima confiança na sua inocência? Teria ele de se antecipar ao Estado na sua própria confissão, e em favor da sua própria persecução? Por outro lado, aguardar que o Ministério Público ofereça a denúncia tampouco resolveria o problema, uma vez que não evitaria exageros, equívocos e que tais, que, ao fim e ao cabo, subtrairiam ao acusado a justa análise do benefício. E isso, evidentemente, para não se falar de uma prática que tem sido cada vez mais comum: denúncias que são oferecidas em sigilo — por vezes, sem sequer ouvir o investigado — e que somente vêm a púbico por ocasião do seu recebimento, frequentemente acompanhado de ordens de busca e apreensão e de uma série de medidas constritivas. Problemas, problemas e mais problemas.

Para uma segunda parcela dos juristas, o ANPP — por se tratar de norma de natureza jurídica mista — retroage em benefício do acusado e isso deve ocorrer no estágio em que o processo se encontrar. Trata-se, afinal, do advento de lei mais benéfica, cuja retroatividade não deve ser obstaculizada (artigo 5º, XL, CR) e cuja incorporação no sistema deve atentar a critérios de coerência e integridade, na tentativa de harmonizar as soluções de nosso sistema jurídico. Nesse sentido, o artigo 4º da LINDB dá uma pista ao afirmar que as lacunas devem ser supridas, por exemplo, por meio da analogia. E não é novidade que o novo instituto insere-se na lógica da ascendente tendência negocial da Justiça brasileira, já antecipada pela Lei nº 9.099/95. À época, o instituto da suspensão condicional do processo também provocou dúvidas, e a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu a retroatividade da novel legislação, fazendo-a alcançar aqueles processos que já se encontrassem em fase recursal (REsp 123.169/SP, Rel. min. Felix Fischer, 5a Turma, j. em 23/6/1997, DJ 8/9/1997, p. 42543). A Suprema Corte, por seu turno, disciplinou a aplicabilidade da suspensão condicional do processo até a prolação da sentença [4].

No âmbito do ANPP, por se tratar de negócio jurídico extrajudicial (submetido à homologação judicial), há uma outra instância que se afigura relevante ao debate. Trata-se da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, instância revisora do MPF para os fins do artigo 28-A, §14, CPP, que, na desafiadora tarefa de disciplinar a aplicação do instituto, emitiu a Orientação Conjunta nº 03/2018, revisada e ampliada a partir da Lei 13.964/2019, prevendo expressamente o cabimento do instituto em ações penais em curso, hipótese em que deverá ser sobrestada a ação penal. No mesmo sentido, é o Enunciado nº 98, elaborado pela 2ª Câmara de Coordenação e de Revisão do MPF, que estabelece ser "cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal no curso da ação penal, isto é, antes do trânsito em julgado, desde que preenchidos os requisitos legais, devendo o integrante do MPF oficiante assegurar seja oferecida ao acusado a oportunidade de confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal, nos termos do art. 28-A da Lei n° 13.964/19, quando se tratar de processos que estavam em curso quando da introdução da Lei 13.964/2019, conforme precedentes".

Ou seja, delineia-se, inclusive, um dever de o integrante do MPF oficiar nos autos, assegurando ao acusado a oportunidade de confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal, sempre que preenchidos os requisitos objetivo e subjetivo, salvaguardando-se, assim, a isonomia. Entendimento semelhante também foi adotado pelo Egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que não apenas assegurou a aplicação do acordo de não persecução penal aos processos com denúncia já recebida, como também determinou a suspensão processual de ações penais em grau recursal e o seu retorno à origem para análise do cabimento do acordo (TRF-4, 4ª Seção, EINF nº 5001103-25.2017.404.7109/RS, j. 21/5/2020). E é preciso reconhecer que, nos feitos que já se encontrem em âmbito recursal, com conformação jurídica melhor definida, há maior ônus argumentativo do Ministério Público em apor eventual recusa àquelas hipóteses em que o acusado, à toda vista, satisfaça os critérios legais objetivos e demonstre adimplir satisfatoriamente os requisitos subjetivos exigidos pelo ANPP.

Tudo isso, portanto, para se dizer que é à luz da coerência e da integridade do sistema que deve ser conduzida a interpretação do novel instituto. E que isso deve se dar mediante fundamentos compatíveis com a moldura do Estado democrático de Direito e segundo critérios doutrinários rigorosos, a fim de que a norma seja auscultada, lida e interpretada de acordo com as consequências sociais e os fins que a orientam, em harmonia com a ciência processual e com os princípios balizadores de nosso ordenamento. Ou, então, que nos rendamos em definitivo à Síndrome de Bartleby, famoso escrivão de Herman Melville, que se limitava a responder: "I would prefer not to" (Eu prefiro não).

 


[1] AgRg na PET no AREsp 1664039/PR, Rel. min. Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, julgado em 20/10/2020, DJe 26/10/2020; AgRg no REsp 1826584/SC, Rel. min. Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, julgado em 22/9/2020, DJe 29/9/2020; EDcl no AgRg nos EDcl no AREsp1.681.153/SP, Rel. min. Felix Fischer, 5ª Turma, julgado em 8/9/2020, DJe 14/09/2020.

[2] AgRg no HC 575.395/RN , Rel. min. Nefi Cordeiro, 6ª Turma, julgado em 8/9/2020, DJe 14/09/2020.

[3] Sobre o tema, ver STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

[4] HC 75518, Rel. min. Carlos Velloso, 2ª Turma, julgado em 4/11/1997, DJ 02/05/2003. Destaque-se, por oportuno, a sensível distinção que é realizada entre os institutos da suspensão condicional do processo e da transação penal no HC 74305, Rel. min. Moreira Alves, Tribunal Pleno, julgado em 9/12/1996, DJ 5/5/2000.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!