Freios e contrapesos

"A toga precisa exercitar a autocontenção"

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15 de novembro de 2020, 9h40

Spacca
"O poder simbólico e real do voto caiu em desgraça", conforme analisa o deputado federal Fábio Trad (PSD-MS). De acordo com o parlamentar, a política representativa está num limbo e precisa sair dele, mas para isso é preciso que o Poder Judiciário também faça sua parte: um exercício de autocontenção.

"A caneta judicante, não raras vezes, tripudia sobre a legitimidade do sufrágio popular quando desrespeita, monocraticamente, o valor republicano do ato político de quem votou e de quem foi votado", disse, em entrevista exclusiva à ConJur. E acrescentou: "É a democracia que está em risco quando o espaço legítimo de um poder é ocupado pelo abuso de outro".

Um exemplo foi o da suspensão de liminar pelo ministro Luiz Fux, no caso do traficante conhecido como André do Rap. Segundo o parlamentar, neste caso, "o Judiciário ultrapassou o limite da interpretação" e "o Poder Legislativo foi derrotado". Ele atribui toda a discussão a um o erro do juízo de 1º grau, que não analisou a manutenção da prisão preventiva no prazo de 90 dias, conforme estabelece o artigo 316 do Código de Processo Penal.

"A autoridade claudicante saiu vencedora com o prêmio do esquecimento", disse Trad, que entende que o caso só tomou proporção nacional porque atingiu um acusado conhecido. "Fosse uma dessas milhares de vítimas seletivas do sistema criminal tradicional, talvez o dispositivo não fosse subvertido em sua essência", afirmou.

Ele também é crítico das últimas intervenções do Supremo, que criaram o precedente de afastamento monocrático de parlamentares antes mesmo do oferecimento da denúncia, como aconteceu com o senador Chico Rodrigues (DEM). De acordo com o deputado, essa questão deve ser discutida com urgência pelo Poder Legislativo de forma a "subordinar as intervenções judiciais nos mandatos eletivos em curso a condições taxativas que não ignorem o valor político intrínseco de um mandato popular".    

Trad é relator da PEC 199/2019 na comissão especial na Câmara — a proposta é fixar a prisão após condenação em 2ª instância, revertendo o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal. Com a epidemia do coronavírus, os trabalhos nas comissões foram temporariamente suspensos. Mas a PEC está madura para votação na comissão e, segundo o parlamentar, há expectativa de votar o tema ainda neste ano. 

A PEC não é bem recebida entre parte mais garantista da comunidade jurídica. Criminalistas que se posicionaram contra entendem que emenda constitucional não pode alterar cláusula pétrea: a presunção de inocência é da Constituição, afirmam. Mas Trad rebate. Diz que diversos criminalistas também concordam com a proposta e defendem sua conformação constitucional com a presunção de inocência. Para ele, a PEC "prestigia o princípio do duplo grau de jurisdição" e "plenifica o direito à reanálise".

Já sobre a execução imediata da pena após sentença do Tribunal do Júri, diz que deve ser declarada inconstitucional pelo Supremo. Está suspenso o julgamento do recurso extraordinário que discute o tema na corte. Até agora, há dois votos pela prisão imediata e um contra. 

Com 51 anos, Fabio Trad é formado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Foi presidente da OAB de Mato Grosso do Sul de 2007 a 2009. Também presidiu a Comissão do Novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados.

Leia a entrevista:

ConJur — Em que fase está a PEC da prisão após condenação em 2ª instância? 
Fábio Trad —
A PEC da efetividade da justiça brasileira está madura para discussão e votação na comissão especial. Aguardamos apenas a deliberação do plenário da Câmara para reinstalar os trabalhos da comissão.

ConJur — Diante de um sistema carcerário extremamente congestionado, há terreno para mandar prender após condenação em 2ª instância?
Trad —
A crise do sistema carcerário brasileiro precisa ser enfrentada. A crise da falta de efetividade do nosso sistema de justiça também. Uma e outra precisam ser enfrentadas de forma complementar, jamais excludente. Para constitucionalizar o sistema carcerário brasileiro, a medida menos eficaz é investir na perpetuação de um sistema processual disfuncional, irracional e anacrônico que viola sistematicamente o princípio da duração razoável do processo. A estrutura judiciária brasileira não pode continuar sendo financiada pelos cidadãos contribuintes para que sua disfuncionalidade seja instrumentalizada por quem atua para impedir sua efetividade.

ConJur — Diversos criminalistas criticam a PEC por entender que emenda constitucional não pode alterar cláusula pétrea. O senhor concorda? 
Trad —
Diversos criminalistas também concordam com a PEC e defendem a sua conformação constitucional com o princípio da presunção de inocência. A PEC prestigia o princípio do duplo grau de jurisdição e revela este compromisso em duas situações: garante ao réu absolvido na primeira instância e condenado na segunda o direito de recorrer, via recurso ordinário, ao tribunal superior para a análise fático-jurídica da condenação; e nos casos de julgamento em última ou única instância assegurando o direito ao reexame da matéria. A PEC plenifica o direito à reanálise.

ConJur — Como o sr. avalia o Tribunal do Júri atualmente? E a ideia de prisão imediata após sentença do Júri? 
Trad —
O Tribunal do Júri é uma garantia constitucional do cidadão. Ser julgado por um colegiado de iguais tem o status de proteção. Avalio que a prisão imediata após sentença do júri deve ser declarada inconstitucional pela Suprema Corte. No entanto, ela não tem semelhança com o conteúdo da PEC, uma vez que a emenda constitucional disciplina efeitos jurídicos decorrentes do trânsito em julgado.

ConJur — Muitas leis levadas ao Supremo Tribunal Federal são declaradas inconstitucionais. A que se deve?
Trad —
Creio que se deve a uma relativa insuficiência na filtragem prévia de constitucionalidade pelos órgãos legislativos em sua atividade legiferante, que tendem a hipertrofiar o componente político em detrimento da juridicidade na elaboração de leis, mas não excluo a extensa gama de dispositivos constitucionais dotados de largo espectro interpretativo como um dos fatores que contribuem para a declaração de inconstitucionalidade.

ConJur — A que erro o senhor se referia quando disse, nas redes sociais, que "o Legislativo fez uma lei com texto claro"? "Aí, vem um membro do Judiciário, não aplica a lei e provoca tumulto. Por conta disso, o erro judicial é usado para "ditar uma outra lei" no lugar daquela feita pelo Legislativo. E quem errou, descumprindo a lei, sagrou-se vencedor."
Trad —
O parágrafo único do artigo 316 do CPP contém um mandamento de natureza imperativa. A primeira instância claudicou e descumpriu o mandamento legal. Disso decorreu a série de desdobramentos que culminou com uma espécie de "revogação tácita" do dispositivo. O Poder Legislativo foi derrotado. E a autoridade claudicante saiu vencedora com o prêmio do esquecimento.

ConJur — O Judiciário tem invadido a competência legislativa?
Trad —
Neste caso em particular, o Judiciário ultrapassou o limite da interpretação. E isso ocorreu porque o erro perpetrado pelo juízo de 1º grau atingiu acusado conhecido. Fosse uma dessas milhares de vítimas seletivas do sistema criminal tradicional, talvez o dispositivo não fosse subvertido em sua essência.

ConJur — Em outro momento, o senhor disse defender a legitimidade das decisões do STF como árbitro dos conflitos institucionais, mas questionou suas últimas intervenções. A que se referia?
Trad —
  Aos precedentes de afastamento monocrático de autoridades constituídas pelo voto popular antes mesmo do oferecimento da denúncia. Esta questão deve ser urgentemente discutida pelo Poder Legislativo à guisa de subordinar as intervenções judiciais nos mandatos eletivos em curso a condições taxativas que não ignorem o valor político intrínseco de um mandato popular.    

ConJur — O senhor concorda com a afirmação do ministro Gilmar Mendes de que a política precisa retomar seu protagonismo, buscando menos o poder decisório do Judiciário?
Trad —
Concordo. O poder simbólico e real do voto caiu em desgraça. A caneta judicante, não raras vezes, tripudia sobre a legitimidade do sufrágio popular quando desrespeita — monocraticamente — o valor republicano do ato político de quem votou e de quem foi votado. A política representativa derivada do mandato eletivo precisa sair do limbo a que foi relegada. A toga precisa fazer um exercício de autocontenção. É a democracia que está em risco quando o espaço legítimo de um poder é ocupado pelo abuso de outro.

ConJur — O deputado já disse que a mídia privilegia o espaço para acusação em detrimento da defesa. Isso se sobressaiu em especial nos casos do mensalão e da operação "lava jato".
Trad —
Não vejo nada que indique mudança neste cenário. A mídia precisa vender emoção para sobreviver. Uma denúncia criminal impacta muito mais que uma defesa prévia. Acusar lucra, sob a ótica midiática, porque atrai e impacta a atenção de mais pessoas. Algo atávico se encontra nesta morada. A defesa, por vezes, é mero detalhe protocolar para grande parte da mídia. Uma espécie de rito jornalístico a ser cumprido pelos manuais éticos de redação. Contraditório e ampla defesa são tão reais para a mídia quanto boitatá. Dez minutos de bem produzida reportagem para a acusação; um texto frio e esquálido de trinta segundos para a defesa. Este é o procedimento padrão da grande mídia. Nesta questão, estou pessimista.

ConJur — A votação da Reforma do CPP estava prevista para o primeiro semestre deste ano, mas teve de ser adiada devido à epidemia do coronavírus. Quais são as principais mudanças necessárias em sua opinião?
Trad —
Dependendo de alguns fatores políticos como o perfil político do próximo presidente da Câmara, acredito que em 2021, o Novo CPP pode chegar ao plenário. O relator João Campos tem se revelado disposto a impulsionar os trabalhos e eu, como presidente da comissão, aguardo apenas o retorno das atividades das comissões para avançar.

Sobre as mudanças que se anunciam, destaco a normatização expressa dos princípios constitucionais do Processo Penal com efetivo compromisso com o sistema acusatório e a previsão de meios alternativos de natureza consensual e dialógica à solução de conflitos. Tudo indica que será um diploma jurídico avançado em termos de efetividade, garantia de direitos ao acusado e à vítima e com fina sintonia com a Constituição.

ConJur — As reformas trazidas pelo pacote "anticrime" acerca das delações foram suficientes para tornar o instrumento mais seguro?
Trad —
O parlamento disciplinou o que estava sendo normatizado pelos tribunais e pensado pela doutrina. Só isto já é um avanço considerável. Consignou-se expressamente que a colaboração premiada não é prova; mas meio de obtenção de provas. O Legislativo ousou e disciplinou pormenores das vicissitudes do instituto, incorporando avanços que conferem mais segurança jurídica aos colaboradores e delatados. Claro, ainda há espaço para aperfeiçoamentos, mas o mérito da atuação legislativa é inegável.

ConJur — Em entrevista à revista da Perícia Federal, o senhor criticou que as instituições estejam mais preocupadas com suas corporações do que com a visão panorâmica dos problemas. Isso se mantém?
Trad —
Cada vez menos há Brasil no debate público. Mas sim milhares de "Brasis" que se engalfinham em luta renhida pela conquista de sua ilhota particular. Existem bancadas de quase tudo na Câmara (agro, igreja, arma, bancos etc). Não vi ainda a bancada do Brasil e da Constituição.

Lamento dizer, mas a atomização dos interesses setoriais e corporativos no parlamento reduz o debate público a uma disputa de interesses menores. O resultado é o avanço da mediocridade na política brasileira com a profusão de personagens folclóricos que se escoram na política pela conveniência dos cargos e não por imposição vocacional.

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