Diário de classe

Uma proposta de análise da teoria dos espaços dogmáticos

Autor

  • Pietro Cardia Lorenzoni

    é advogado professor de Direito Público do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF) doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) diretor jurídico da Associação Nacional de Jogos e Loterias e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

14 de novembro de 2020, 8h00

O debate público brasileiro está se acostumando a discutir questões relacionadas ao Poder Judiciário. Atitudes dos órgãos de justiça e das demais instituições essenciais a ela são discutidas, a relação entre o Poder Judiciário e o Poder Executivo é criteriosamente examinada e as decisões judiciais e as suas influências no Legislativo estão em evidência. Tudo isso contribui para identificarmos uma preocupação, objeto de constante estudo pela crítica hermenêutica do Direito, que é: "quais são os limites do Poder Judiciário?".

O Diário de Classe de hoje preocupa-se justamente com isso. Para tanto, dedica-se a apresentar uma teoria que visa oferecer algumas respostas para essa indagação. Trata-se da teoria dos espaços dogmáticos, de Robert Alexy. O autor alemão, conhecido pela sua formulação do princípio da proporcionalidade, pode contribuir, também, em questões mais amplas sobre o relacionamento entre os três poderes e, com isso, a definição da fronteira entre o político e o jurídico. A reflexão estruturar-se-á em dois pontos, quais sejam: o primeiro aborda a citada teoria alexyana e o segundo analisa-a a partir da crítica hermenêutica do Direito.

A teoria dos espaços dogmáticos
A dogmática dos espaços, segundo Alexy, visa a atingir uma justa medida entre o espaço de conformação política do legislador e a atuação do Judiciário. Tal relação deve ser estruturada de modo que não comprometa o princípio formal da democracia. Esse, por sua vez, é compreendido nos seguintes termos: "o legislador democraticamente legitimado deve decidir a maior quantidade possível de casos importantes para a sociedade"[1]. A ideia é otimizar a função legislativa como forma de solução geral e abstrata para casos de relevância social.

Indubitavelmente, esse equilíbrio é uma das questões mais polêmicas para a Teoria do Direito e para a Teoria Política. A delimitação da competência, por vezes conflitante entre o legislador e os tribunais ordinários e constitucionais para a interpretação e aplicação dos direitos fundamentais, gera uma tensão que pode ser ilustrada pela aparente contradição entre um princípio democrático — que atribui ao Legislativo o papel de desenvolver, harmonizar e restringir direitos fundamentais, ponderando interesses e bens no espaço político pátrio — e uma Constituição tutelada pela Suprema Corte — que atribui ao Judiciário o dever de controlar atos legislativos que violem a Constituição e os direitos fundamentais.

 Aparentemente há uma definição de igual competência para dois poderes distintos. Uma rápida análise do problema poderia levar a superficial resposta de que preponderaria ao Poder Judiciário o papel de dar a última palavra — o Supremo Tribunal Federal, no caso brasileiro. Certamente essa será a posição do realismo jurídico.

Contudo, a teoria de Alexy busca um equilíbrio mais apurado. Para tanto, o autor defende um modelo em que a Constituição funciona como uma ordenação-quadro, que traça ao legislador três hipóteses distintas, quais sejam: 1) proibição de algo; 2) ordenação de algo; e 3) liberação de algo (liberdade para escolher o que é melhor).  Assim, o proibido é o impossível, o ordenado é o necessário e o liberado é o possível jurídico-constitucionalmente. O possível delimita o conteúdo da margem de atuação dos poderes constituídos; o ordenado e o proibido determinam os seus limites.

Os espaços supramencionados configuram âmbitos de conformação ou de atuação do legislador deixados livres pela Constituição. Esses âmbitos são de dois tipos: espaços substanciais e espaços epistêmicos. A fronteira do âmbito de competência livre para o legislador termina quando começa o constitucionalmente proibido ou obrigado. Os espaços correspondem à discricionariedade política dos Poderes representativos para inovarem na ordem jurídica ou criarem políticas públicas.

Destarte, o legislador tem liberdade para atuar quando estiver dentro de seu espaço de discricionariedade. Nessas hipóteses, o Judiciário não terá competência para desfazer os atos políticos dos outros poderes. Se o fizer, haverá uma violação ao princípio formal de democracia. A delimitação é, abstratamente clara, mas se afigura possível – e necessário – um detalhamento dos justos espaços de atuação. Nessa linha, os âmbitos de livre conformação podem ser divididos em espaço substancial de discricionariedade e espaço epistêmico de discricionariedade.

O espaço substancial de discricionariedade está relacionado com aquilo que a Constituição não demanda e tampouco proíbe que o legislador faça; são os espaços que a Constituição libera para a conformação política do legislador. Não há controle constitucional porque não há normatividade material definitiva da Constituição.

Diferentemente, o espaço epistêmico de discricionariedade do legislador é menos perceptível. Ele versa sobre a competência de decidir sobre o espaço substancial de discricionariedade, ou seja, de decidir quando há um espaço livre ou não. Em outras palavras, o espaço epistêmico de discricionariedade versa sobre em que momento o legislador decide o tamanho de seu espaço de discricionariedade substancial. A extensão desse espaço depende da quantidade de desacordos racionais sobre se o espaço de discricionariedade política existe ou não.

Dentro dessa teoria, esse espaço de discricionariedade deve ser dividido em duas espécies — empírico ou normativo — a depender de a incerteza recair em premissas empíricas ou normativas. O espaço epistêmico, portanto, permite intervenções em direitos constitucionais com base em premissas fáticas discutíveis, ou seja, incertas. O espaço normativo, por sua vez, possibilita a intervenção em direitos constitucionais mesmo com a existência de desacordos jurídicos racionais sobre se a intervenção é constitucionalmente permitida ou não.

Esse âmbito normativo cria um espaço prima facie de liberdade de ponderação dos Poderes Políticos. Em outras palavras, ele dá preferência para os poderes políticos representativos.

Explica-se melhor cada um dos espaços. Cada um desses espaços cria parcela de limitação do controle judicial, uma vez que atribui legitimidade política ao legislador para fazer opções políticas de intervenção em direitos fundamentais com bases em premissas empíricas e normativas mais flexíveis que as permitidas para a atuação jurisdicional. Esse é um dos pontos fundamentais, qual seja: a análise jurisdicional terá um ônus argumentativo maior do que o poder político para criar intervenções em direitos constitucionais. Exige-se um grau de certeza maior do Judiciário que do Poder Executivo e do Poder Legislativo, uma vez que os últimos estão legitimados pelo voto.

No âmbito do espaço epistêmico empírico, Alexy[2] entende que há três graus variáveis referentes à segurança da suposição empírica, são eles: seguro, plausível e não evidentemente falso. Neste sentido, a corte constitucional não pode interferir na discricionariedade do legislador apenas por este se pautar em suposições incertas[3], visto que há uma prevalência do princípio formal da democracia[4] sobre a possibilidade do controle judicial. O Poder Legislativo é o poder legítimo para tomar decisões coletivas vinculantes em nome da maioria. As hipóteses de controle judicial e, portanto, de decisões contra legem dependem de que o Judiciário se paute em suposições empíricas seguras que demandem uma solução diferente da dada pelo legislador.

Alexy adota uma regra para verificação da atuação do legislador dentro do seu espaço epistêmico empírico. Basicamente, quanto maior a intensidade de intervenção de uma medida legislativa em um direito fundamental, maior deve ser a intensidade do controle jurisdicional sobre o espaço de ponderação do legislador.

O âmbito do espaço epistêmico normativo de discricionariedade está relacionado com o peso dos direitos fundamentais em colisão, ou seja, ele versará sobre o que é deixado na ponderação para as valorações próprias do legislador. A incerteza, nesse espaço, versa sobre a intensidade da intervenção sobre um direito fundamental ou sobre o quanto efetivamente pesa essa intervenção no direito fundamental.

Nesse ponto, também existe um espaço epistêmico normativo para a livre ponderação do legislador. Há de se atentar que cada espaço epistêmico normativo constitui uma redução do controle judicial-constitucional pelo Judiciário. O espaço epistêmico normativo se compatibiliza com a limitação do legislador com a Constituição Federal na medida em que ele só surge quando há uma incerteza normativa quanto à aplicação dos direitos fundamentais. Se não há incerteza sobre ela, não há espaço epistêmico normativo do legislador e há controle judicial-constitucional.

Algumas considerações a partir da crítica hermenêutica do Direito
Essa redução do controle judicial-constitucional deve ser explicitada para não gerar confusão. Os Poderes Políticos representativos continuam vinculados à Constituição e o Poder Judiciário mantém a sua competência de revisão constitucional. A redução do controle não significa, por exemplo, que o Supremo Tribunal Federal brasileiro não vá conhecer de uma ação de controle concentrado de constitucionalidade em razão da incerteza normativa na suposta colisão de direitos fundamentais. Na prática, esse espaço visa delimitar quais são os argumentos legítimos que o Supremo Tribunal Federal pode utilizar na análise do, por exemplo, caso prático no controle concentrado de constitucionalidade.

De forma mais geral, pode-se afirmar, com Klatt[5], que o judicial review se mantém e o que se altera é a profundidade e a natureza dos argumentos que constroem as decisões. A Autoridade do Direito depende do controle judicial e esse, por sua vez, dependerá de uma justificação interna e externa da decisão judicial. Algo trabalhado pela CHD a partir da coerência e da integridade e abordado por Alexy como exigências de um discurso jurídico racional. A justificação interna busca estabelecer a racionalidade interna da decisão, isto é, se ela está correta segundo as premissas levantadas por ela mesma. A justificação externa, por sua vez, analisa se os argumentos utilizados são corretos dentro do ordenamento jurídico.

A "redução" do espaço do controle judicial-constitucional deve ser compreendido como uma maior exigência da segurança do argumentos jurídicos utilizados na justificação externa, ou seja, como um acréscimo do ônus argumentativo do Tribunal em casos que possam afrontar a discricionariedade política e, na dúvida, a posição pela autocontenção deve prevalecer. Com efeito, a dúvida sobre a correção jurídica da ação política deve, segundo essa teoria, privilegiar a legitimidade democrática.

O que se procura demonstrar com isso é que o espaço de conformação política do legislador deve ser respeitado, visto que ele é o ente legítimo e constitucionalmente competente para tanto. O óbvio precisa ser dito: processos políticos não devem ser reduzidos a algo sem significado.

A Autoridade do Direito reside na legitimidade da sua criação que, por sua vez, depende da manutenção das promessas constitucionais, nas quais a nossa democracia está estruturada. Para a continuidade desse projeto constitucional, a resolução de desacordos morais, pelo menos na sua maior parte, pelo Poder Legislativo é fundamental.

Intervenções injustificadas do Poder Judiciário na discricionariedade política podem trazer riscos consideráveis para o Estado Democrático de Direito — mesmo que sob o alegado manto do controle de constitucionalidade. Nesse sentido que a teoria dos espaços dogmáticos, apresentada nesta coluna, pode contribuir para identificar intervenções e analisar os argumentos legítimos que as fundamentam.


[1] ALEXY, Robert. Formal principles: Some replies to critics. In International Journal of Constitutional Law. Vol. 12, I. 3, Julho de 2014. p. 516.

[2] ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. 4.ed. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 150

[3] ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. 4.ed. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 150.

[4] ALEXY, Robert. Formal principles: Some replies to critics. In International Journal of Constitutional Law. Vol. 12, I. 3, Julho de 2014, p. 511-524. p. 521.

[5] KLATT, Matthias; SCHMIDT, Johannes. Epistemic discretion in constitutional law. I-Con. 2012. Vol. 10, no. 1, pp. 69-105.

Autores

  • é advogado, professor de Direito Público do Centro Universitário Ritter dos Reis (Uniritter/RS) e do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP/DF), doutorando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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