Opinião

A autonomia universitária e a democracia no âmbito institucional

Autores

  • Maria Lúcia Barbosa

    é professora adjunta da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) membro do Grupo de Pesquisa REC (Recife Estudos Constitucionais) secretária da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB-PE membro do grupo de pesquisa Asa Branca UFPE mestre e doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

  • Felipo Bona

    é advogado professor assistente da UPE — Campus Arcoverde co-coordenador do programa de extensão Escritório de Defesa da Mulher (EDM) coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas Transdisciplinares sobre Meio Ambiente Diversidade e Sociedade (GEPT) e mestre em Direito pela UFPE.

14 de novembro de 2020, 13h12

Este texto pretende oferecer uma reflexão ao aprofundamento das ideias sobre autonomia universitária. O que se coloca ao debate é um caminho trilhado a partir do processo de organização e formação da lista tríplice para escolha dos reitores e reitoras das instituições de ensino superior no Brasil, estabelecido no artigo 16 da Lei nº 5.540/68.

As instituições de ensino superior são espaços de produção de conhecimento científico. Assumem a fundamental tarefa de promover a formação profissional, científica, humanística, tecnológica e cultural das pessoas, apoiadas sob os pilares do ensino, da pesquisa e da extensão, expandindo o saber humano através da reflexão crítica sobre teoria e prática.

A comunidade acadêmica é integrada e composta do conjunto de pessoas que trabalham em funções técnico-administrativas, assumindo a responsabilidade de movimentar a máquina institucional na consecução de suas finalidades; também por quem exerce o magistério, ministrando aulas e estabelecendo pontos de partida, desenvolvendo teorias, experimentos e tecnologia na pesquisa, pesquisas e expandindo a comunicação com outros saberes na sociedade através da extensão; e, ainda, pelo corpo discente, cuja renovação periódica dos quadros oxigena o corpo institucional pela movimentação das ideias tão diversas quanto os interesses particulares de cada uma e cada um.

As instituições de ensino superior, as comunidades acadêmicas, os locais produtores de conhecimento científico são, desde o princípio, espaços de colocação de teses à crítica, no sentido de que absolutamente toda ideia é na sua origem uma hipótese, submetida permanentemente à comprovação ou à refutação. Há certeza na exata medida da comprovação e da ausência de refutação, até que as condições históricas nos permitam novas circunstâncias ou nos revelem os problemas do conhecimento até então estabelecido.

Para a consecução das finalidades das instituições de ensino superior, é fundamental que se articulem as atividades administrativas, de ensino, de pesquisa e extensão em espaço democrático que respeitem as subjetividades sobretudo quando na crítica. A discordância só é possível na certeza da responsabilidade reflexiva exercida com a liberdade da crítica radical (no sentido de raiz). A configuração do ambiente acadêmico, portanto, deve ser construída para compreender a complexidade da pluralidade da comunidade acadêmica e, por isso, o procedimento de escolha dos gestores dessas instituições é tão importante. É importante porque nos dá a tonalidade da existência da autonomia universitária e do nivelamento da democracia.

No Brasil, o processo de organização da lista tríplice para escolha de reitor(a) e vice-reitor(a) das instituições de ensino superior no Brasil está regulamentado pelo artigo 16 [1] da Lei nº 5.540/1968 e contou com duas alterações legislativas significativas, a saber: 1) originalmente a lista era sêxtupla; e 2) foi inserida a realização de consulta prévia à comunidade acadêmica (docentes, discentes e corpo técnico-administrativo da IES) de maneira não paritária. Enquanto práticas administrativas [2], podemos relacionar três muito importantes: 1) a realização de consultas prévias paritárias; 2) o posicionamento pelo Conselho Universitário [3], que é o colégio eleitoral, do(a) candidato(a) mais votado(a) na consulta prévia, cujo resultado é não vinculante; e 3) a nomeação pela Presidência da República do candidato mais votado.

Essas alterações legislativas e as práticas reiteradas dirigem-se no sentido de incrementar a democracia institucional e a autonomia universitária, na medida em que ampliam e aprofundam a participação da comunidade acadêmica, além de incrementar o respeito às escolhas das propostas político-administrativas vencedoras dos pleitos eleitorais. As alterações e práticas, sem dúvida, são circunstâncias que aperfeiçoam as condições anteriormente existentes, consolidam conquistas democráticas fruto dos movimentos coletivos de estudantes, professores e pessoal técnico-administrativo.

A redução do número de nomes disponíveis para escolha da Presidência da República, de seis para três, reduziu à metade a discricionariedade do chefe do Executivo, evitando a escolha de pessoas menos representativas dos interesses institucionais em disputa no processo eleitoral interno. E a prática administrativa de nomear o primeiro nome da lista, aquele mais votado consagra o posicionamento autônomo da IES limitando a arbitrariedade discricionária da nomeação de outra pessoa, ainda que constante na lista.

A inserção da consulta prévia apresentou-se como uma instância de verificação de colocação do projeto de administração da IES pelas candidaturas perante os corpos docente, discente e técnico-administrativo. Consiste num mecanismo de aferição de legitimidade do projetos político-administrativos propostos pelos(as) candidatos(as).

Quando no órgão máximo institucional, as conselheiras e os conselheiros votam no(a) candidato(a) vencedor(a) da consulta prévia, embora não vinculados ao seu resultado, e a Presidência de República nomeia o(a) candidato(a) mais votado(a), consolida-se o reconhecimento do resultado do processo eleitoral interno nas IES. Evitando-se a nomeação de pessoas sem respaldo da comunidade acadêmica, ainda que constantes da lista encaminhada ao Executivo.

Alguém poderia dizer que a democracia estaria cumprida pela regularidade do procedimento e que qualquer escolha pelo presidente, entre os três nomes indicados na lista tríplice, seria suficiente para licitude do ato. Esta parece-nos ser uma conclusão apressada e equivocada porque democracia não é apenas procedimento. Há substância na democracia, respeito às subjetividades, participação popular e respeito às escolhas. A verificação da legitimidade popular das candidaturas na consulta prévia e a eleição no Conselho Universitário não podem ser ignoradas. É dizer, haverá alguém que aglutinará maior quantidade numérica de votos e será a proposta político-administrativa vencedora na IES. Essa pessoa tanto deveria assumir a administração institucional como adequar politicamente (ou seja, mediante negociação, cujas barganhas dependem da correlação de forças internas) a sua condução.

Por essa razão, desenvolveu-se costume institucional nos governos passados de nomear aquela pessoa que tivesse conquistado a maior quantidade de votos. Até agora, porque, como se tem visto, a Presidência tem optado pelas candidaturas menos votadas, intervindo negativamente nas correlações de forças internas das IES. Negativamente porque vemos isso como a colocação de projetos administrativos com baixa ou nenhuma legitimidade no comando, dando preferência às candidaturas menos votadas, rechaçando as subjetividades majoritárias, inferiorizadas nas suas escolhas e decisões. Desprezando-se os incrementos democráticos das últimas décadas.

Uma coisa é a candidatura da maioria assumir o cargo e, por óbvio, negociar a condução da máquina pública com a oposição. Outra situação é a candidatura minoritária ou nula fazê-lo. A primeira hipótese explicita a garantia da subjetividade minoritária, mas a segunda impõe o rechaço à subjetividade majoritária, antidemocrática, portanto.

Essa interferência do Executivo federal nas IES viola a autonomia universitária, estabelecida no artigo 207 [4] da CF e regulamentada no artigo 56 [5] da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, porque sujeita o projeto político-administrativo da IES ao projeto político administrativo temporariamente escolhido para o Executivo Federal. Não faz sentido falar-se em autonomia universitária se houver sobreposição de um projeto político-administrativo pelo outro, notadamente se ele for criado artificialmente. Tanto não poderia ser assim que o início dos mandatos da Presidência da República e das reitorias não se alinham temporalmente. Caso o constituinte originário não desejasse a autonomia universitária, estabeleceria o início dos mandatos de reitores e reitoras das IES no ano de início do exercício do mandato da chefia do Executivo.

Deve-se ter em conta, ainda, que a escolha da candidatura mais votada tem sido conduta socioinstitucional reiterada dirigida pela certeza de sua obrigatoriedade, cumprindo ambos requisitos caracterizadores do costume jurídico. Não se admite o costume fonte do direito estabelecido contra legem, mas a hipótese sob análise não vai de encontro ao procedimento, mas se adequa a ele e o aprimora do ponto de vista democrático.

Para concluir o texto e permitir o diálogo aberto e transparente, é importante sintetizar algumas considerações provisórias para contribuir com o debate sobre autonomia universitária:

a) As instituições de ensino superior são espaços privilegiados de produção de conhecimento científico, que funcionam a partir da reflexão crítica sobre fenômenos e ideias, e, por isso, exigem ambiente democrático apto à dialética de construção do saber.

b) Democracia consiste no sistema político de respeito às subjetividades, que assegure o diálogo entre as pessoas, permitindo a colocação de ideias e confrontamento entre elas. Ideias negadoras de subjetividade não podem ser admitidas no âmbito democrático, sob pena de contradição lógica e extinção material do exercício democrático.

c) As alterações legislativas e as práticas administrativas são produto das demandas sociais que importaram no aprofundamento democrático das instituições (Executivo federal e IES), mediante a ampliação e a qualificação da participação da comunidade acadêmica na escolha das gestões e na garantia de respeito às suas decisões.

d) Escolher as candidaturas mais votadas não é mera discricionariedade do ponto de vista substancial da democracia no processo de escolha das gestões das IES, é uma exigência constitucional e administrativa.

e) A Presidência da República deve nomear a candidatura mais votada constante da lista tríplice organizada pelo Conselho Universitário, em termos de procedimento porque o costume jurídico se estabeleceu em complementação à norma positivada; em termos de substância porque garante a subjetividade majoritária e minoritária.

f) A autonomia universitária contempla e informa este processo de formação do ato jurídico complexo de escolha para reitoria das IES, sendo a escolha de candidaturas minoritárias verdadeira intervenção do Executivo federal que sobrepõe o projeto político-administrativo do governo federal ao da IES.

g) A gestão antidemocrática das IES compromete o desenvolvimento das pesquisas nelas executadas, que correspondem a mais de 95% da produção nacional, inviabilizando a promoção da formação profissional, científica, humanística, tecnológica e cultural das pessoas.

 


[1] "Artigo 16 — A nomeação de reitores e vice-reitores de universidades, e de diretores e vice-diretores de unidades universitárias e de estabelecimentos isolados de ensino superior obedecerá ao seguinte: (Redação dada pela Lei nº 9.192, de 1995).
I. o reitor e o vice-reitor de universidade federal serão nomeados pelo presidente da República e escolhidos entre professores dos dois níveis mais elevados da carreira ou que possuam título de doutor, cujos nomes figurem em listas tríplices organizadas pelo respectivo colegiado máximo, ou outro colegiado que o englobe, instituído especificamente para este fim, sendo a votação uninominal; (Redação dada pela Lei nº 9.192, de 1995).
II. os colegiados a que se refere o inciso anterior, constituídos de representantes dos diversos segmentos da comunidade universitária e da sociedade, observarão o mínimo de setenta por cento de membros do corpo docente no total de sua composição; (Redação dada pela Lei nº 9.192, de 1995).
III. em caso de consulta prévia à comunidade universitária, nos termos estabelecidos pelo colegiado máximo da instituição, prevalecerão a votação uninominal e o peso de 70% para a manifestação do pessoal docente em relação à das demais categorias; (Redação dada pela Lei nº 9.192, de 1995) (…)".

[2] CTN. "Artigo 100 — São normas complementares das leis, dos tratados e das convenções internacionais e dos decretos: (…) III. as práticas reiteradamente observadas pelas autoridades administrativas".

[3] O Conselho Universitário é órgão máximo da IES e possui grande representatividade entre os que formam a instituição, inclusive comunidade externa, por isso a Lei nº 5.440/68 o incumbiu da elaboração da lista tríplice.

[4] "Artigo 207 — As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão
§ 1º. É facultado às universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma da lei. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 11, de 1996)
§ 2º. O disposto neste artigo aplica-se às instituições de pesquisa científica e tecnológica. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 11, de 1996)".

[5] Lei n.º 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional): "Artigo 56 — As instituições públicas de educação superior obedecerão ao princípio da gestão democrática, assegurada a existência de órgãos colegiados deliberativos, de que participarão os segmentos da comunidade institucional, local e regional".

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    é professora adjunta da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), membro do Grupo de Pesquisa REC (Recife Estudos Constitucionais), secretária da Comissão de Estudos Constitucionais e Cidadania da OAB-PE e doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

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    é advogado, professor assistente da UPE — Campus Arcoverde, co-coordenador do programa de extensão Escritório de Defesa da Mulher (EDM), coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas Transdisciplinares sobre Meio Ambiente, Diversidade e Sociedade (GEPT) e mestre em Direito pela UFPE.

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