Opinião

Distinção entre moedas eletrônicas e virtuais e as consequências tributárias

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13 de novembro de 2020, 18h07

A diretoria colegiada do Banco Central do Brasil (Bacen) publicou, no último dia 26, a Resolução BCB nº 24/2020, que introduziu relevantes modificações na Circular nº 3.885/2018.

Entre as mudanças implementadas pela resolução, destacam-se duas, a saber: 1) a criação da figura do "iniciador de transação de pagamento", inserida pela resolução no artigo 4º, inciso IV, da Circular nº 3.885; 2) a instituição do dever das instituições de pagamento cuja atividade enquadra-se na categoria "emissor de moeda eletrônica" de obter, a partir de 1º de março de 2021, autorização de funcionamento junto ao Bacen, obrigação esta prescrita pelo artigo 6-A, inciso II, e 6-B da referida circular.

Em relação à primeira questão, de acordo com as novas regras do Banco Central, o iniciador de pagamento [1] é a instituição de pagamento que presta o serviço de começar uma transação de pagamento ordenada pelo usuário final, relativamente à conta de depósito ou de pagamento, comandada por instituição não detentora da conta à instituição que a detém, mas que não gerencie a conta de pagamento, nem detenha, em momento algum da operação, os valores transferidos na prestação do serviço.

A segunda alteração, referente à obrigatoriedade dos emissores de moedas eletrônicas obterem autorização de funcionamento perante o Bacen, por sua vez, acabou induzindo algumas pessoas à ideia equivocada de que quem opera com criptomoedas e moedas virtuais no Brasil passará, a partir de 2021, a ter sua atividade condicionada à prévia autorização do Banco Central.

Trata-se de pensamento equivocado e que advém da confusão taxonômica envolvendo os termos "moedas digitais", "moedas eletrônicas", "moedas virtuais" e criptomoedas [2].

As moedas digitais, enquanto gênero, são um "tipo de ativo que proporciona, de diversas formas, a circulação de valor por meio eletrônico (de forma intangível) ou via internet" [3], independentemente de sua unidade de medida ser ou não equivalente a uma moeda fiduciária.

Moedas eletrônicas, enquanto espécie das moedas digitais, representam um valor de moeda fiduciária (como o real, o euro e o dólar, por exemplo) armazenado de forma eletrônica. Trata-se de uma alternativa eletrônica à moeda física (papel ou metal) [4] emitida por um governo soberano e, portanto, centralizada.

As moedas virtuais [5], também espécie de moeda digital, como já definido pelo próprio Fundo Monetário Internacional [6], são representações digitais de valor, denominados em sua própria unidade [7] (tokens) e, normalmente, altamente divisíveis. Diferentemente das moedas eletrônicas, são emitidas por desenvolvedores privados, podendo ser descentralizadas ou centralizadas, e não existem no mundo físico, de forma que a obtenção, armazenamento, acesso e transações respectivas ocorrem apenas em ambiente virtual.

Por sua vez, como subespécie das moedas virtuais, estão categorizadas os famosos criptoativos, os quais, se utilizados como meio de pagamento na aquisição de bens e serviços, assumem a nomenclatura de criptomoedas, as quais podem ser definidas como uma espécie de moeda virtual, denominadas em sua própria unidade (ex: Bitcoin, Thether e XRP etc.), que não são criadas por instituições não bancárias e utilizam-se de criptografia e, via de regra, são emitidas usando a tecnologia blockchain [8].

Os criptoativos, portanto, são uma subespécie de moeda virtual universal, descentralizada, criptografada, de fluxo aberto e com conversibilidade bidirecional na moeda fiduciária em curso em um dado território.

As moedas virtuais amparadas por tecnologias criptográficas e embasadas em sistemas de registro distribuído (os criptoativos), consequentemente, a depender do modo como são utilizadas e por quem são emitidas, assumem uma condição de verdadeiro token, o qual pode ser definido como um ativo programável ou, ainda, também como um direito de acesso a uma tecnologia, podendo ser regulado por um contrato inteligente (smart contract).

Nesse sentido, países como Suíça, Cingapura, Reino Unido, Áustria e Liechtenstein adotaram, para fins tributários, uma tricotomia para caracterização de tokens, que engloba payment tokens, utility tokens e security (or asset) tokens, apesar de formas híbridas também serem admitidas. Essa mesma caraterização foi adotada pela OCDE em trabalho recentemente publicado [9].

Os payment tokens, como o próprio nome sugere, são tokens (portanto, moedas virtuais em seu sentido amplo) utilizados como meios de pagamento na aquisição de bens e serviços, por exemplo. Esse conceito, por conseguinte, engloba as criptomoedas. Por serem totalmente decentralizadas, transações de pagamento transfronteiriças ocorrem em um espaço muito mais curto de tempo, com custos reduzidos, quando em comparação com as taxas cobradas por instituições bancárias.

Já os utility tokens são emitidos com a finalidade principal de coletar fundos para financiar um projeto. Em troca, o investidor que adquire o utility token pode acessar ou consumir o produto ou serviço fornecido pela empresa emissora. Imagine-se a seguinte situação: a empresa X irá lançar uma plataforma concorrente no mercado para conectar usuários a motoristas parceiros. Para financiamento do projeto, utility tokens serão emitidos. Cada um deles custará R$ 100 e, em troca, o investidor receberá um voucher de R$ 80 para usar os serviços fornecidos pela plataforma da empresa X.

Por fim, os chamados security tokens [10], também emitidos com o objetivo de financiamento, garantem ao investidor direitos como pagamento de dividendos ou de juros, direito de voto e assim por diante, podendo representar, dessa forma, função similar a uma ação ou debênture (valor mobiliário). Existem duas subespécies principais: security token com caráter patromonial (equity character), que garante ao investidor o direito ao recebimento de dividendos, e o security token com caráter de dívida (debt character), assegurando o direito ao recebimento de juros.

É evidente, portanto, que as moedas eletrônicas, mencionadas pela Circular 3.885/2020, com redação atualizada pela Resolução BCB 24/2020, nada têm a ver com as  moedas virtuais e, consequentemente, não equivalem a criptoativos (tokens em geral) ou criptomoedas.

Estabelecidas as diferenças conceituais entre as duas espécies de moedas digitais (eletrônicas e virtuais), pode-se identificar a primeira conclusão deste texto, qual seja o fato de que as moedas virtuais e os criptoativos permanecem fora do âmbito de regulamentação da Resolução BCB 24/2020 e da Circular 3.885/2020, daí porque as novidades trazidas por essa resolução não estabeleceram qualquer obrigatoriedade de cadastramento ou obtenção de autorização para funcionamento perante o Banco Central do Brasil para os operadores de moedas virtuais (criptomoedas e tokens) no Brasil.

Consequentemente, toda a regulamentação atualmente existente no Banco Central é restrita às moedas eletrônicas, tendo em vista que estas são uma derivação (i.e., representação digital) das moedas fiduciárias [11].

A importância da distinção taxonômica acima referida não deriva seus efeitos apenas sobre a Resolução 24/2020 do Bacen. Para além disso, seus impactos em âmbito tributário são relevantes e devem ser levados em consideração. Ou seja: é importante que os signos moedas digitais, moedas eletrônicas, moedas virtuais e criptoativos (com todas as suas subclassificações em tokens advindas do seu uso) sejam levadas em consideração pelo Fisco.

A Receita Federal do Brasil, por meio da Instrução Normativa RFB nº 1.888/2019, tem avançado no sentido de impor deveres instrumentais para operadores de moedas virtuais (o que abrange as criptomoedas), equiparando esta espécie de moeda virtual aos ativos financeiros, razão pela qual incidiria o imposto sobre a renda na modalidade ganho de capital nas operações com realizadas com tais ativos.

Tal postura, a nosso ver equivocada, deixa de levar em consideração as peculiaridades inerentes a cada tipo de criptoativo, na medida em que insiste em qualificar, de forma estanque, as moedas virtuais como se ativos financeiros fossem.

O ideal, a nosso ver, tanto sob a ótica regulatória quanto sob a tributária, seria uma abordagem pragmática e focada no tipo de uso do criptoativo. Assim, ao invés de qualificarmos as moedas virtuais e os criptoativos para então definirmos os tributos sobre eles incidentes, melhor seria tributar as moedas virtuais e os criptoativos de acordo com os usos que podem ser atribuídos a tais ativos pelos usuários, de modo que a "finalidade, e não a qualificação jurídica do ativo, definiria a tributação, tal como já ocorre com o ouro".

O advento da Resolução BCB 24/2020, apesar de alcançar apenas as moedas eletrônicas, e não afetar os emissores de moedas virtuais, como esclarecido neste artigo, revigora o debate relativo à importância da adequada taxonomia envolvendo as moedas digitais e justifica a criação de diretrizes tributárias mais adequadas a cada espécie de ativo, haja vista sua natureza camaleônica.

Ariene Reis
Claudia Orrico 
Daniel de Paiva Gomes 
Leandro Araújo 
Lucas Orione 
Tacio Lacerda Gama

Pesquisadores do Instituto de Aplicação do Tributo (IAT)

 


[1] A figura do iniciador de transação de pagamento foi criada pelo artigo 4º, IV, alíneas "a" e "b", que foram acrescidos à Circular nº 3.885/2018 pela Resolução BCB nº 24. Trata-se de uma nova modalidade de instituição de pagamento, que, consoante definem os dispositivos citados, corresponde às instituições que prestam serviço de iniciação de transação de pagamento: 1) sem gerenciar conta de pagamento; e 2) sem deter em momento algum os fundos transferidos na prestação do serviço. De acordo com o §4º do artigo 4º da circular, com a redação conferida pela referida resolução, "iniciação de transação de pagamento" deve ser compreendida como "o serviço que inicia uma transação de pagamento ordenada pelo usuário final, relativamente à conta de depósito ou de pagamento, comandada por instituição não detentora da conta à instituição que a detém".

[2] Em síntese, a diferença entre "moedas virtuais e moedas eletrônicas reside no fato de que estas  possuem  referibilidade  direta  à  moeda  fiduciária,  ou  seja,  são  denominadas  em  moeda fiduciária, enquanto que as moedas virtuais possuem 'forma própria de denominação, ou seja, são denominadas em unidade de conta distinta das moedas emitidas por governos soberanos', consoante previsto no Comunicado nº 25.306/2014" (Cf. GOMES, Daniel de Paiva. Bitcoin: a tributação de investimentos em criptomoedas [dissertação de mestrado]. FGV Direito-SP. 2020, p. 31. Disponível em: <https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/28065> Acessado em: 30/10/2020).

[3] GOMES, Daniel de Paiva. Bitcoin: a tributação de investimentos em criptomoedas [dissertação de mestrado]. FGV Direito-SP. 2020, pp. 25-42. Disponível em: <https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/28065> Acessado em: 30/10/2020).

[4] FIRPO, Janine, E-Money — Mobile Money — Mobile Banking — What’s the Difference?, World Bank Blogs, 21 de janeiro de 2009, disponível em https://blogs.worldbank.org/psd/e-money-mobile-money-mobile-banking-what-s-the-difference (acessado em 28 de outubro de 2020).

[5] São exemplos de moedas virtuais os pontos de programas de fidelidade, itens virtuais inseridos em games e jogos eletrônicos, dentre outros.

[6] HE, Dong He, HABERMEIER, Karl, LECKOW, Ross, HAKSAR, Vikram, ALMEIDA, Yasmin, KASHIMA, Mikari, KYRIAKOS-SAAD, Nadim, OURA, Hiroko, SEDIK, Tahsin Saadi, STETSENKO, Natalia, e VERDUGO-YEPES, Concepcion, Virtual Currencies and Beyond: Initial Considerations, IMF Staff Discussion Note, Janeiro de 2016, disponível em https://www.imf.org/external/pubs/ft/sdn/2016/sdn1603.pdf (acessado em 28 de outubro de 2020).

[7] Por não estarem embasadas em moeda fiduciária, não são, verdadeiramente, moedas, na medida em que carente os atributos do curso legal e curso forçado.

[8] ADRIAN, Tobias e GRIFFOLI, Tommaso Mancini, The Rise of Digital Money, IMF Fintech Notes, 15 de julho de 2019, disponível em https://www.imf.org/en/Publications/fintech-notes/Issues/2019/07/12/The-Rise-of-Digital-Money-47097 (acessado em 28 de outubro de 2020).

[9] OCDE, Taxing Virtual Currencies: An Overview of Tax Treatments and Emerging Tax Policy Issues, 12 de outubro de 2020, p. 12, disponível em https://www.oecd.org/tax/tax-policy/taxing-virtual-currencies-an-overview-of-tax-treatments-and-emerging-tax-policy-issues.pdf.

[10] No âmbito da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), é reiterado o entendimento de que criptomoedas não se enquadram como nenhum dos valores mobiliários listados nos incisos I a VIII do artigo 2º da lei 6.385/1976. No entanto, os criptoativos (i.e. tokens ou moedas virtuais, seguindo denominação adotada nesse texto) podem, "a depender das suas características, configurar um contrato de investimento coletivo, cuja oferta pública no Brasil, por consequência, estaria sujeita ao registro ou à dispensa de registro na CVM". Por exemplo, vide recente julgado no bojo do Processo Administrativo Sancionador CVM nº 19957.003406/2019-91, datado de 27/10/2020, onde há referência às Deliberações CVM no 785/2017; 821/2019; 826/2019; 828/2019; 830/2019; 831/2019; 837/2019; 839/2019.

[11] Vide Comunicado BCB nº 31.379/2017. Ademais, também a legislação de meios de pagamento, na qual a Resolução BCB nº 24/2020 está inserida, restringe sua aplicação às moedas eletrônicas, as quais não se confundem com criptomoedas e demais tokens.

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