Opinião

A multa tributária de 100% é confiscatória?

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13 de novembro de 2020, 7h11

O Supremo Tribunal Federal tem afirmado há tempos que, regra geral, é confiscatória a multa tributária que exceda 100% [1].

A verificação da jurisprudência do STF indica que a fixação de 100% é o limite por basicamente dois motivos: 1) caráter pedagógico da sanção, reconhecida a possibilidade de aplicação da multa tributária em percentual mais rigoroso [2]; 2) deve ser respeitada a proporcionalidade e não violência ao princípio da proibição ao confisco, artigo 150, IV, da Constituição Federal [3].

Nosso interesse aqui é colocar um início de discussão sobre a fundamentação da afirmação judicial de que 100% é porcentagem adequada e razoável. Quais as razões bastantes de que se ocupa o STF no dimensionamento desta afirmação, que tem efeitos panprocessuais.

Fixemos que o confisco seria a indevida apropriação de patrimônio do contribuinte através de exigência tributária excessiva. O ponto é justamente este: em que momento podemos falar em excessividade da procura estatal de imposição, no caso, de multa tributária. Cem por cento é muito? É pouco? Quanto é pouco? Quanto é muito?

Contudo, nos julgados que pudemos investigar, não encontramos nenhum desenvolvimento do princípio da proporcionalidade para explicitar e justificar a razoabilidade da multa de 100%, através da fundamentação dos requisitos necessários da proporcionalidade que, se fosse possível resumi-los na lei do sopesamento do professor alemão Robert Alexy [4], seriam: 1) adequação; 2) necessidade; e 3) proporcionalidade em sentido estrito [5].

Tampouco verificamos a figuração da fundamentação pela proibição do excesso (Übermassverbot), dado que tal é um desdobramento ou componente da proporcionalidade, para a maioria da doutrina nacional e estrangeira [6], basicamente como ferramenta para verificar a constitucionalidade de violações estatais sobre direitos fundamentais.

O que podemos verificar nos julgados é a afirmação de que a multa de 100% é razoável e proporcional, conforme precedentes elencados, mas nenhum que possua fundamentos objetivos e passíveis de teste, de maneira a dar a impressão de que a aferição da razoabilidade dos tais 100% da multa está sendo realizada por discricionariedade [7] e opinião pessoal do julgador, e não pelas máximas da proporcionalidade.

A utilização da proporcionalidade ou da proibição do excesso exigiria a fundamentação a partir de demonstração de "colisão entre princípios" e, diante disso, seria necessário amealhar todos os socorros à solução dada pela aplicação da proporcionalidade. A afirmação pura e simples de que a multa de determinada porcentagem está dentro da razoabilidade ou proporcionalidade não pode ser aceita, pois vai de encontro à necessidade de fundamentação das decisões judiciais e à impossibilidade de julgamento em face de discricionariedade [8].

Para o caso, sequer colisão entre princípios pode ser aventada. O princípio do não confisco e o da garantia da propriedade [9] não estão em jogo. Na verdade, esses princípios caminham de mãos dadas como direitos fundamentais. O ponto é: 100% é confisco? E 30%? E 3.000%? Por outra: qual a porcentagem que seria razoável ou atenderia à proporcionalidade e, desse modo, não violasse ambos os princípios do não confisco e da garantia da propriedade? Esse é o ponto. Não há colisão entre princípios.

Se não há colisão entre princípios, não há aplicação da máxima de sopesamento de Alexy. Não se trata de proporcionalidade, nessa ordem de ideias.

De outro lado, o argumento dos julgados do caráter pedagógico da sanção de 100% e, como consequência, os contribuintes não infringiriam mais as leis tributárias, não parece resistir à realidade, já que as execuções fiscais seguem firmes, conforme estatística oficial [10] "Justiça em Números 2019".

Cremos que a fixação de um perfil confiscatório da multa tributária deva ser fundamentada no que o sistema legal brasileiro oferece como um todo, inclusive na legislação civil, até porque a estanqueidade entre Direito privado e Direito público já não resiste a maior enfoque doutrinário, mas certamente sem abreviar a prevalência do interesse público para o caso.

 


[1] Em textos nesta ConJur de 2013, aqui, e atualizado em 2020, aqui, Celso de Barros Correia Neto sempre buscou parâmetros para compreender o máximo aceitável para as multas tributárias, apontando a diversidade de tipos de multas e bases de cálculo. Vale a leitura.

[2] Exemplo: ARE-AgR 938538, rel. min Roberto Barroso, com indicação de diversos precedentes.

[3] Exemplo: o mesmo julgado acima.

[4] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

[5] E na pesquisa, vimos que desde 2005 LFS Difini já afirmava que "não há, em nenhum dos casos, o exame diferenciado da tríplice dimensão (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) do princípio da proporcionalidade. Em consequência, o STF recorre ao princípio da proporcionalidade (…) em situações em que nem mesmo envolvem solução e colisões entre princípios concorrentes." ob. cit. p. 131.

[6] Vasta doutrina estrangeira é alinhada, na obra de fôlego lusitana de Vitalino Canas, entre aqueles que entendem ser "proporcionalidade" e "proibição do excesso" sinônimos, e outros que as distinguem: CANAS, Vitalino, O princípio da proibição do excesso na conformação e no contrato de atos legislativos, Almedina, Coimbra, 2017, p.40- .

[7] A chamada discricionariedade: "A decisão do caso concreto já não depende das racionais leis da lógica, mas da vontade do juiz", Mário Losano citado pelo prof. Lenio Luiz Streck, que semanalmente nos brinda com sua coluna na ConJur nos dando suas chineladas jurídicas sobre isso, se nos permite a graça.

[8] Aqui entendida a palavra discricionariedade nos termos da nota 7 retro.

[9] Tidos como violados por Luiz Felipe Silveira Difini, que invoca também possibilidade de colisão com o livre exercício de qualquer trabalho (artigo 5º, XIII, CF) e o respeito aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (artigo 1º, III, CF).  Proibição de tributos com efeito de confisco, tese apresentada na UFRGS em 2005, em https://lume.ufrgs.br/handle/10183/7315 .

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