Prática Trabalhista

O teletrabalho e o dimensionamento da Cipa

Autores

  • Ricardo Calcini

    é professor advogado parecerista e consultor trabalhista. Atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs TST e STF). Coordenador trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP) do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • Filipe Rodrigues Costa

    é advogado trabalhista na Companhia de Tecnologia da Informação do Estado de Minas Gerais (Prodemge) e especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

12 de novembro de 2020, 8h01

1) Introdução
A necessidade do cumprimento do distanciamento social, imposta pelas autoridades governamentais em razão da pandemia da Covid-19, fez com que muitas empresas implementassem o regime de teletrabalho emergencial ou provisório.

Apesar dessa implementação abrupta, o regime de teletrabalho tem se mostrado vantajoso tanto para empregadores em razão da redução dos custos de funcionamento das empresas e de manutenção ou elevação nos índices de produtividade quanto para empregados em razão da redução de custos e do tempo despendido com deslocamentos e alimentação fora de casa [1].

Hodiernamente, o teletrabalho está regulamentado pelos artigos 75-A a 75-E da CLT. E, mais, é sabido que algumas empresas têm analisado com seriedade a possibilidade de implementação do regime de teletrabalho de forma definitiva para parte dos empregados [2].

Esse cenário impõe discussão a respeito do assunto até porque ainda não regulamentado pela legislação específica, qual seja, o critério a ser adotado para dimensionamento da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (Cipa) nas empresas que possuem empregados em regime de teletrabalho "definitivo".

A obrigatoriedade de existência da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (Cipa) está prevista nos artigos 163 a 165 da CLT. Lado outro, a Norma Regulamentadora nº 5 da atual Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Governo Federal dispõe, em seu no item 5.6, a respeito do dimensionamento da Cipa: "NR-05, 5.6 A Cipa será composta de representantes do empregador e dos empregados, de acordo com o dimensionamento previsto no Quadro I desta NR, ressalvadas as alterações disciplinadas em atos normativos para setores econômicos específicos".

O Quadro I da NR-05 estabelece o número de empregados no estabelecimento como o critério para o cálculo do número de membros efetivos e suplentes de cada empresa. Contudo, com a implementação definitiva do regime de teletrabalho, qual deve ser o critério para dimensionamento da Cipa?

Neste breve manuscrito analisaremos qual o método de intepretação mais adequado para a resolução do problema apresentado.

2) Método literal
O primeiro método de intepretação a ser analisado é o literal.

Como já exposto no item anterior do presente trabalho, os artigos que implementaram o regime de teletrabalho nada dispuseram sobre o dimensionamento da Cipa. Por sua vez, o critério vigente na NR-05 para o dimensionamento da Cipa é o número de empregados no estabelecimento empresarial.

Com a adoção do teletrabalho de forma definitiva, o número de empregados no estabelecimento empresarial será significativamente menor. A utilização do método literal resultará, por óbvio, na aplicação da literalidade da disposição contida na NR-05, o qual, ao final, implicará no menor número de integrantes da Cipa ou mesmo na ausência de obrigatoriedade de sua existência.

Imagine-se uma empresa que possui 300 empregados, dos quais 290 concordaram em adotar o teletrabalho de forma definitiva. De acordo com o método literal de intepretação, tal empresa nem sequer necessitará ter a Cipa constituída.

A defesa pela utilização desse método se fundamenta no respeito estrito ao texto da regulamentação aplicável (NR-05) e no fato de que o número de membros da Cipa é suficiente para o efetivo cumprimento de seu mister.

Uma crítica cabível à utilização de tal método diz respeito à perda real do poder de fiscalização dos empregados quanto ao cumprimento das normas de segurança pelos empregadores.

3) Métodos histórico e lógico-sistemático
Outra possibilidade de intepretação é por meio da utilização dos métodos histórico e lógico-sistemático.

Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco explicam o conceito desses dois métodos:

"(…) De outro lado, os dispositivos legais não têm existência isolada, mas inserem-se organicamente em um sistema, que é o ordenamento jurídico, em recíproca dependência com as demais regras de direito que o integram. Desse modo, para serem entendidos devem ser examinados em suas relações com as demais normas que compõem o ordenamento e à luz dos princípios gerais que o informam: é o método lógico-sistemático.
Além disso, considerando que o direito é um fenômeno histórico-cultural, é claro que a norma jurídica somente se revela por inteiro quando colocada a lei na sua perspectiva histórica, com o estudo das vicissitudes sociais de que resultou e das aspirações a que correspondeu: é o método histórico. (…) [3]".

Historicamente, as primeiras movimentações organizadas de trabalhadores para a reivindicação de melhores condições de segurança no trabalho ocorreram na Europa pós-revolução industrial. Já no Brasil, a primeira legislação da matéria consta no artigo 82 do Decreto-Lei nº 7.036, de 10 de novembro DE 1944 [4].

"Artigo 82 — Os empregadores, cujo número de empregados seja superior a 100, deverão providenciar a organização, em seus estabelecimentos, de comissões internas, com representantes dos empregados, para o fim de estimular o interesse pelas questões de prevenção de acidentes, apresentar sugestões quanto à orientação e fiscalização das medidas de proteção ao trabalho, realizar palestras instrutivas, propor a instituição de concursos e prêmios e tomar outras providências, tendentes a educar o empregado na prática de prevenir acidentes".

Portanto, é relevante o fato de que a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes existe no Brasil desde 1944, ou seja, há 76 anos, não sendo razoável que a ausência de regulamentação específica para o regime de teletrabalho imponha a drástica redução de tamanho da Cipa, ou, pior, ameace sua própria extinção.

Comprovada a relevância histórica da matéria em discussão, a utilização do método lógico-sistemático ganha relevo.

Nesse sentido, a proteção da saúde e da segurança do trabalhador no ambiente de trabalho está expressamente prevista no inciso XXII do artigo 7º da Constituição Federal:

"Artigo 7º — São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(…)
XXII
redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança".

E, no ponto, o professor e desembargador do TRT/MG da 3ª Região Sebastião Geraldo de Oliveira assim explana sobre o tema:

"(…) O princípio constitucional de que a saúde é direito de todos e dever do Estado (artigo 196), adaptado para o campo do Direito do Trabalho, indica que a saúde é direito do trabalhador e dever do empregador. Para isso, a Constituição garantiu no artigo 7º, XXII, a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança. A segurança visa à integridade física do trabalhador e a higiene tem por objetivo o controle dos agentes do ambiente de trabalho para a manutenção da saúde no seu amplo sentido. Pela primeira vez, o texto da Constituição menciona 'normas de saúde', e, por isso, não pode ser relegada a segundo plano a amplitude do conceito de saúde, que abrange o bem estar físico, mental e social. A conclusão que se impõe é que o empregador tem obrigação de promover a redução de todos os fatores (físicos, químicos, biológicos, fisiológicos, estressantes, psíquicos etc.) que afetam a saúde do empregado no ambiente de trabalho. Em sintonia com esse princípio da redução dos riscos, a alternativa de utilização dos equipamentos de proteção individual só deverá ser implementada quando tiverem sido adotados todos os meios conhecidos para eliminação do risco e este, ainda assim, permanecer (…)" [5].

Os métodos histórico e lógico-sistemático possibilitam a defesa de que o dimensionamento da Cipa deve ser feito por meio da intepretação mais favorável à manutenção e alargamento do número de membros da comissão.

Bem por isso, ainda que a empresa possua empregados em regime de teletrabalho, tal regime seria desconsiderado para efeito da contagem do número de empregados, ou seja, o dimensionamento da Cipa seria feito considerando-se que todos os empregados trabalham a favor da empresa. A crítica a tal critério reside no fato da necessidade de utilização da ficção jurídica para a resolução do problema, como também na dificuldade de "enquadramento" presencial dos empregados em regime de teletrabalho no caso da empresa possuir mais de uma sede.

4) Possibilidade de negociação coletiva
De mais a mais, cabe dizer que o problema apresentado pode igualmente ser resolvido por meio da negociação coletiva.

É bem verdade que o inciso XVII do artigo 611-B da CLT proíbe a formalização de negociação coletiva para a redução ou supressão de direitos relativos à segurança do trabalho.

"Artigo 611-B  Constituem objeto ilícito de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho, exclusivamente, a supressão ou a redução dos seguintes direitos:
(…)
XVII
normas de saúde, higiene e segurança do trabalho previstas em lei ou em normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho".

Contudo, como atualmente não existe norma que regulamenta a questão, tanto assim que o presente trabalho apresentou dois métodos distintos possíveis de intepretação, é plausível e desejável que se faça a defesa da negociação coletiva como forma efetiva de resolução do problema.

Francisco Ferreira Jorge Neto e Jouberto de Quadros Pessoa esclarecem a relevância da negociação coletiva:

"(…) A negociação coletiva está na base da formação do direito do trabalho como uma das suas fontes de produção. As normas jurídicas trabalhistas resultam da atuação do Estado, da qual resultam os Códigos, as leis esparsas e outros atos. Porém, não se esgotam com as normas jurídicas estatais. Há o direito positivo trabalhista não estatal. A negociação coletiva é a sua principal fonte. Se há uma instituição que é característica do direito do trabalho.
(…)
Pela negociação, os interesses antagônicos entre o capital e o trabalho, num ato de intercâmbio, ajustam-se, estabelecendo regras que aderem aos contratos individuais de trabalho, dentro do âmbito de representação dos atores sociais participantes. (…)" [6].

A negociação coletiva é instrumento efetivo para a resolução do dimensionamento da Cipa no caso de empregados em regime de teletrabalho, haja vista que possui como princípios norteadores, entre outros, a preservação dos interesses comuns e a boa-fé.

Portanto, se os agentes coletivos negociarem as condições de dimensionamento da Cipa, significa dizer que tais condições pactuadas são as que melhor preservam os interesses de empregadores e empregados, o que se apresenta como fundamento relevante para sua manutenção.

5) Conclusão
Por todo o exposto, conclui-se que o método literal respeita o texto da norma legal existente (NR-05), mas pode ser criticado por propiciar perda real de poder de fiscalização dos empregados; os métodos histórico e lógico-sistemático garantem a relevância da Cipa e privilegiam a segurança dos empregados, mas têm como crítica a utilização de ficção jurídica e a dificuldade de enquadramento dos empregados no caso de empresa com mais de uma sede; a negociação coletiva pode ser utilizada como instrumento efetivo de resolução da questão, em razão da ausência de norma expressa e pelo fato de respeitar os princípios da preservação dos interesses comuns e da boa-fé.

 


[1] Notícia: 94% das firmas aprovam home office, mas 70% vão encerrar ou manter em parte. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/07/28/94-das-empresas-aprovam-home-office-mas-75-nao-o-manterao-apos-pandemia.htm#:~:text=Cerca%20de%2094%25%20das%20empresas,de%20Covid%2D19%20tiver%20terminado. Acessado no dia 30 de setembro de 2020.

[2] Notícia: No Brasil, 30% de empresas devem manter home office depois da pandemia. Disponível em: https://economia.ig.com.br/2020-06-11/no-brasil-30-de-empresas-devem-manter-home-office-depois-da-pandemia.html. Acessado no dia 30 de setembro de 2020.

[3] CINTRA, A.C.A.; GRINOVER, A.P.; DINAMARCO, C.R. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Editora Malheiros. 20ª edição. 2005. p.103.

[4] A ORIGEM DA Cipa NO BRASIL E NO MUNDO. Disponível em: https://www.fea.unicamp.br/sites/fea/files/cipa/CipaDOC_AORIGEMDACipaNOMUNDOENOBRASIL.pdf. Acessado no dia 30 de setembro de 2020.

[5] OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Estrutura normativa da segurança e saúde do trabalhador no Brasil. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. Belo Horizonte, v.45, n.75, p.107-130, jan./jun.2007, p.111. Disponível em: https://www.trt3.jus.br/escola/download/revista/rev_75/Sebastiao_Oliveira.pdf. Acessado no dia 30 de setembro de 2020.

[6] JORGE NETO, F.F.; CAVALCANTE, J.Q.P. Direito do trabalho. São Paulo: Atlas, 2019. 9. ed. p.1699,1702.

Autores

  • é mestre em Direito pela PUC-SP; professor de Direito do Trabalho da FMU; especialista nas Relações Trabalhistas e Sindicais; organizador do e-book digital "Coronavírus e os Impactos Trabalhista" (Editora JH Mizuno); coordenador do e-book "Nova Reforma Trabalhista" (Editora ESA OAB/SP, 2020); organizador das obras coletivas "Perguntas e Respostas sobre a Lei da Reforma Trabalhista" (Editora LTr, 2019) e "Reforma Trabalhista na Prática: Anotada e Comentada" (Editora JH Mizuno, 2019); coordenador do livro digital "Reforma Trabalhista: Primeiras Impressões" (Editora Eduepb, 2018); palestrante e instrutor de eventos corporativos "in company” pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos, especializada na área jurídica trabalhista com foco nas empresas, escritórios de advocacia e entidades de classe.

  • é advogado trabalhista na Companhia de Tecnologia da Informação do Estado de Minas Gerais (Prodemge) e especialista em Direito do Trabalho pela UFMG.

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