Opinião

A nulidade absoluta no caso de Mariana Ferrer

Autor

  • Soraia Mendes

    é doutora em Direito Estado e Constituição pós-doutora em teorias jurídicas contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestra em ciência política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul com atuação e obras reconhecidas no Supremo Tribunal Federal e na Corte Interamericana de Direitos Humanos.

12 de novembro de 2020, 9h12

Muito se fala sobre o viés inquisitorial do processo penal. Contudo, pouco se diz que essa feição inquisitória é (e sempre foi) a única definição deste em relação às mulheres vítimas de violência, em especial de violência sexual. De fato, muito ainda precisa ser dito e (re)pensado quanto ao depoimento da vítima quando "o medo faz calar" ou quando "sua voz e comportamento" impõem a inexistente "carga" de ter de provar ser merecedora de proteção.

Humilhar, vexar, agredir, impor dor e sofrimento está no DNA do processo para as mulheres enquanto vítimas. A isso damos o nome de revitimização. E o caso de Mariana Ferrer, recentemente tornado público, é, com muita tristeza, um bem acabado exemplo atual do cotidiano das mulheres que sobrevivem à violência e resistem ao sistema de Justiça criminal. De outro lado, quem sabe também seja ele um norte para refletirmos sobre fatos como os ocorridos e entendermos que estes precisam ter consequências não só correcionais, mas também processuais penais.

Muito mais há de ser (re)pensado no processo penal no que concerne às garantias das vítimas (em especial, as mulheres) de serem tratadas como sujeitos de direitos. Uma delas, como já tive oportunidade de escrever no "Processo Penal Feminista" (Ed. Atlas, 2020), diz respeito à nulidade em processos nos quais a dignidade da pessoa, mola propulsora do complexo constitucional, é violada.

Sem dúvida alguma, um dos mais tormentosos temas da processualística penal é o sistema de nulidades. Por certo muito em razão da matriz de inspiração de nosso Código de Processo Penal no (fascista) Código de Rocco. Mas também pela escancarada cultura político-criminal punitivista (por suposto sexista, racista e LGBTIfóbica) que, na superfície ou no subterrâneo, representa sempre um freio a qualquer avanço rumo a um processo penal, no mínimo, formalmente democrático: ou seja, a um processo guiado pelas regras do jogo constitucional.

Daí porque ser justamente na prevalência do conjunto de valores, garantias e direitos previstos na Carta de 88 que precisamos iniciar o debate a respeito do significado e, repito, da resposta processual penal a ser dada no caso da Justiça catarinense como, sobretudo, desejo eu, um paradigma para outros tantos. 

A dignidade da pessoa humana impõe ao Estado um dever de realizar ações positivas no sentido de assegurá-la. E, entre essas ações, está o dever de proteção que, na linha do que ensina Alexy, outorga ao indivíduo o correspondente direito de exigir do Estado que este o proteja por meio de normas penais, de normas procedimentais, de atos administrativos ou até mesmo por uma atuação concreta dos poderes públicos. É, assim, exigível (mais do que meramente recomendável) que a postura dos sujeitos do processo em seu contato com a vítima, muito especialmente no momento do depoimento (mas não só!), guie-se,pelo respeito e pela garantia da dignidade humana e dos compromissos internacionais que a tomam como central e dos quais o Brasil é signatário.

A Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres (adotada pela Resolução 48/104 da Assembleia Geral das Nações Unidas) insta os Estados-membros, entre outras obrigações, a prover mecanismos e procedimentos jurisdicionais acessíveis e sensíveis às necessidades das mulheres submetidas a violência e que assegurem o processamento justo dos casos (10, "d").

De igual sorte, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994 (incorporada ao nosso ordenamento jurídico pelo Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996), determina como dever do Estado não somente que este estabeleça procedimentos jurídicos justos e eficazes para a mulher sujeitada à violência, inclusive, entre outros, medidas de proteção, juízo oportuno e efetivo acesso a tais processos (artigo 7, "f"); mas, antes de tudo, que aja positivamente para modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher (artigo 7, "e").

Afastar-se de todo esse arcabouço é tomar distância da dignidade humana. É violar a Constituição. É desrespeitar a convencionalidade. E é, por consequência, macular com a nulidade absoluta todo o processo.

É preciso que magistrados/as e membros do MP, no exercício de suas funções, respeitem e garantam essa regra de ouro do jogo. E, em particular, que membros da advocacia e da Defensória Pública compreendam, definitivamente, ser possível realizar a defesa do réu sem violar ainda mais a vítima. Do contrário, a consequência processual há de ser a nulidade, pois toda a normatividade maior alcança pessoas rés, condenadas e também vítimas (!).

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  • Brave

    é advogada criminalista e especialista em direitos das mulheres no escritório Soraia Mendes, Marcus Santiago & Advogadas Associadas; pós-doutora em Teorias Jurídicas Contemporâneas (UFRJ), doutora em Direito, Estado e Constituição (UnB) e mestra em Ciência Política (UFRGS).

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